3 - O ACORDO
❝Que a bondade lhe alcance a alma, pois toda dor ferirá o coração em que outrora havia amor.❞.
—𝕱𝖗𝖆𝖌𝖒𝖊𝖓𝖙𝖔𝖘 𝖉𝖔𝖘 𝕽𝖊𝖌𝖎𝖘𝖙𝖗𝖔𝖘 𝕯𝖗𝖚𝖎𝖉𝖆𝖘,
533 ɗ. Ƈ..
Escandinávia, ano de 852 d. C.
ⱮESMO QUE EU TENHA perdido meus pais. Ainda que, os vikings tenham me transformaram em escrava, e mesmo que eu tenha sido torturada, estuprada e obrigada a servir aqueles a quem odeio, eu não acho que o mundo seja um lugar ruim de viver.
Este lugar em que vivo é incrível e possui uma energia poderosa que alimenta meu espírito a cada manhã. A maldade está impregnada na essência daqueles que o habitam. Não há empatia para com o próximo e os escravos são considerados a escória da humanidade. Todos nos tratam como se não fôssemos humanos, como se a nossa massa corpórea fosse distinta. Parece que não temos um coração e nem que sangue corre em nossas veias. Somos menos que nada.
Pelo menos é isso que os vikings, todos os dias, tentaram fazer com que eu acredite. Entretanto, desde cedo, descobri que, para impedi-los de fazerem esquecer de quem eu realmente sou, tornou-se necessário demandar muita força de vontade para ir de contra a todos. No fim, só restaram duas opções: se resignar e virar uma escória, ou lutar até o fim e planejar uma vingança. Eu escolhi a segunda opção e nem os deuses poderão me parar.
Seria impossível lutar contra todo um povo sozinha. Todavia, eu tenho um trunfo escondido dentro de mim. Há exatamente três primaveras, a herança sanguínea de meu pai despertou em minha essência. Foi então que comecei a sentir a magia serpentear a minha volta, em cada sopro do vento, a cada vez que colocava meus pés descalços em contato com a terra, assim como em todas as vezes que me banhava nas águas do rio e do mar. Passei a sentir a energia da natureza, em todo canto.
Pouco tempo depois, meu pai apareceu em meus sonhos. E só então descobri o que fazia do meu pai um duidra poderoso. Na sua primeira visita ele me disse que somos descendentes de uma poderosa linhagem de feiticeiros e que o nosso propósito sempre foi servir e respeitar a Natureza. Nós fomos escolhidos entre os demais mortais como merecedores de poder manipular todos os elementos da Natureza, segundo a sua vontade. Em suas palavras, ele me explicou que foram os deuses que me presentearam com meus dons. O problema, é que eu não mais acreditava que qualquer divindade existisse. Seja o que, ou quem foi que me concedeu tais dons, não foram os deuses.
Com o passar do tempo, os sonhos se tornaram somente lembranças de lições sobre magia e o poder oculto na Natureza, e todos os ensinamentos de meu pai, voltavam a mim de forma inesperada, era como se alguém quisesse me preparar para algo. Sempre que sua voz se apossava de minha mente, eu sentia uma vontade avassaladora de chorar.
"Seja forte, Erieanna" a voz sussurrava antes de desaparecer por completo. E eu não derramava nenhuma gota de lágrima, porque os fortes não choram.
Ao longo da roda dos ciclos, a presença de meu pai em meus sonhos foi se tornando cada vez menos constante, até que desapareceram por completo.
Sem ele, tive de treinar meus poderes sozinha e escondida, longe dos perturbadores olhos claros dos escandinavos. Desse modo, quase todas as noites, quando as pessoas estavam dormindo, eu caminhava até as cavernas próximas ao mar, escolhia aquela mais escondida e praticava a incansavelmente a arte da magia. Conjurava o fogo, manipulava água e tudo que a Natureza me permitisse controlar. Era bom sentir a força mística dentro de mim. De alguma forma, quando estava praticando, sentia-me conectada ao meu pai. Tinha a sensação de fazer parte de algo. Ali, eu não era mais escrava: era somente Erieanna, e ninguém podia me atingir.
Foi nesse mesmo período de tempo, que criei o hábito de observar o nascer do Sol e contemplar o vasto mar que seguia em direção ao meu lugar de origem. Todas as manhãs, eu sentava no alto da colina e observa com serenidade, o mar revolto abaixo de mim. Ainda não sabia se queria voltar às minhas origens. Mas tinha certeza que desejava fugir daquele lugar frio e do povo bárbaro que nele vivia.
— Erieanna. — Levei um susto ao escutar a voz de Ragad atrás de mim.
Nunca, em todos aqueles anos, alguém me encontrara naquele meu refúgio.
— O que está fazendo aqui? — perguntei alarmada.
— Estava a sua procura e sabia que te encontraria nesse lugar. — Deu de ombros como se aquilo fosse algo natural. — Você pensa que pode se esconder de todos, só que está tão enganada. Faz um tempo que tenho te observado e noto que vem aqui todas as manhãs. Eu não me tornei um Jarl por coincidência, querida. Preciso saber o que acontece em meu clã.
Raiva começou a borbulhar dentro de mim.
— Fico feliz em saber que não tenha invadido minha privacidade durante esse tempo. Foi bom ter um lugar só meu. — Tornei meu olhar nas ondas do mar se agitando abaixo de nós.
Ragad se aproximou de mim, e sem perder qualquer permissão, sentou-se ao meu lado.
— Eu já te tirei tudo. Não poderia lhe arrancar mais nada. — proferiu, ele, enquanto me olhava com demasiada intensidade.
Encaramo-nos por algum tempo. Sempre ficávamos sem palavras nas raras vezes em que tínhamos a liberdade de conversar.
— Você cresceu tanto! — exclamou ao me analisar com atenção — Tornou-se uma linda mulher. — declarou, em um tom de voz rouco.
— O tempo faz isso com as pessoas. Ele nos muda, tanto fisicamente, quanto interiormente. Estamos em constante processo de mudança. Eu mudei, mas você também mudou. — Soltei um longo suspiro.
Ragad já não era o mesmo homem que cuidou de mim quando fui estuprada pela primeira vez. Seu semblante estava mais rígido, parecia-se mais com um verdadeiro Jarl . Um nítido guerreiro intimidador, não era à toa que as mulheres o devoravam com olhar sempre que ele estava por perto. Ragad foi forjado para ser imbatível, até o seu olhar poderia diminuir aqueles desprovidos de coragem.
— Você sempre tem as palavras corretas a dizer. Poderias se tornar uma excelente esposa, pois é a mulher mais inteligente que conheço. Queria poder te tomar como minha! Exibira-te com orgulho a todos os homens do clã. — Ragad não desviou por nenhum momento o olhar de mim, ao proferir aquelas palavras que provocaram um arrepio desconfortável na minha espinha.
Eu não poderia ser uma esposa. Eu era uma escrava. A escrava cujo corpo fora desfrutado pela a maioria dos escandinavos daquele clã.
— Pela primeira vez o fato de ser escrava serviu ao meu favor. Não me leve a mal, mas fico contente em saber que não pode me tomar como esposa. Não seria capaz de amar a pessoa responsável, mesmo que indiretamente, pela morte dos meus pais. — rebati, tentando manter um tom de voz neutro.
Eu era uma das poucas pessoas que tinha culhões para enfrentá-lo. Sempre que dialogávamos, mediamos forças para ver quem ganharia o duelo. Eu sempre ganhava e ele nunca me puniu por tal ação.
— Creio que nunca me perdoará por esse erro, não é?
— Creio que você já sabe a resposta e só está esperando que eu a confirme. — Arqueei a sobrancelha colocando a prova meu argumento.
— Não posso te culpar por me odiar. Sei que fiz por merecer que sinta raiva de mim. — Ele olhou para o céu e soltou um riso curto. — Os deuses às vezes são tão irônicos. De todas as mulheres do mundo eles fizeram com que eu te desejasse. Logo você a quem eu destruí a vida.
Ragad, mais uma vez, expôs com clareza seu total egoísmo.
— Não culpe os deuses e nem ninguém por suas ações. Você é o único que deve carregar o peso das escolhas erradas. Atribuí-las aos deuses apenas fará diminuir o fardo que carrega. Mas no fundo, Ragad, sei que sabe que os erros são totalmente seus. — acusei em tom ríspido.
— Você é uma mulher ou uma cobra com veneno na língua? — inquiriu com raiva.
— Está reclamando porque minhas palavras carregadas de verdade te machucaram? Olhe o que seu povo fez comigo. — Ergui minha veste e exibi as marcas de chicote em meus braços e pernas — Acho justo que eu possa te desferir um pouco de dor. — Sorri de forma maliciosa, na intenção de esconder a raiva que sentia por ele e por todos os vikings.
— Você pensa em voltar para seu povo? — Ragad rapidamente mudou de assunto, indicando a vastidão do mar com a cabeça.
— Eu não tenho povo. Não pertenço a lugar algum. Não tenho razões que me governe. Apenas deixo a Natureza me guiar, pois vim da terra e para ela voltarei. — Esforcei-me a parecer neutra. Não queria que o viking soubesse o quanto desejava encontrar um lar.
— Então por qual razão vem para cá todos os dias? — ele indagou com curiosidade.
— Porque gosto de pensar que estou indo embora desse lugar. Gosto de me imaginar dentro de um barco, partindo para longe daqui. — respondi, um tanto melancólica.
— Talvez nunca escape! Talvez eu não queira te deixar partir. — O modo como proferiu aquela sentença fez-me acreditar que havia muita verdade naquelas palavras, porém, não permiti que elas me abalassem.
— Talvez você não possa controlar meu destino e nem minhas escolhas. Talvez eu morra tentando, mas lutarei para escapar daqui. — afirmei, com toda convicção que consegui conjurar.
— Não quero que morra, pequena. Não quero te perder! — Sua voz não passou de um sussurro ao proferir aquele temor.
— Não pode me perder, Ragad, quando nunca me teve. — rebati, rispidamente, incapaz de permanecer apática ao seu egoísmo.
O ar ficou pesado. Por um momento, pareceu que até mesmo o vento agressivo, decidiu ficar em silêncio.
— É exatamente por essa razão que estou aqui. Já está mais do que em tempo de eu tê-la. — ele informou, de forma evasiva.
Raiva voltou e efervescer sob minha pele.
— Se vai me tomar contra a vontade, ainda assim não serei sua. — retruquei com raiva.
— Jamais te forçaria a nada. Quero que quando esteja comigo, seja por vontade própria. Eu tenho um acordo a te oferecer. — anunciou, mantendo uma certa cautela.
— Que tipo de acordo? — questionei curiosa.
— Como já havia dito, eu venho te observando, mas para lhe garantir ao menos o mínimo de privacidade mantenho-me afastado de suas atividades particulares. No entanto, sei que, através da observação do treinamento das mulheres e homens, você anda praticando técnicas de batalhas naquela caverna tão isolada onde o mar é mais agressivo. — Fixou os olhos em mim, tentando, eu presumi, deixar evidente que ele sabia de tudo que eu fazia.
Ragad estava tão engano se achava que sabia de tudo ao meu respeito. Pensei mantendo aquela informação em segredo.
— Você tem um bom olho, Ragad! Entretanto, não pode me culpar por eu querer buscar meios para me defender. Não sou um animal acuado, portanto, lutarei com tudo que tenho para me manter viva. — argumentei em tom duro.
— Não estou lhe acusando de nada, Erieanna. Apenas estou apontando um fato para que eu possa chegar ao objetivo do acordo que quero lhe oferecer.
Semicerrei os olhos em expressão de desconfiança, porém eu disse:
— Prossiga então.
Ragad assentiu com a cabeça em sinal de concordância e depois tornou a falar:
— Há boatos sobre suas incríveis habilidades na cama e confesso que estes têm me intrigado. — Sorriu de forma indecente — Esperei pacientemente por esse momento. Aguardei até que minha soberania no clã fosse inquestionável, e agora, tenho poderes o suficiente para propor que seja minha consorte. Eu te quero, Erieanna, e não posso mais ansiar por teu corpo junto ao meu. — Observei caroço em sua garganta subir e descer enquanto ele me olhava como se estivesse ávido para me devorar.
— E todos não querem meu corpo? Tu és apenas mais um dentre tantos homens desse clã que me desejam. Fico admirada por seu controle, não sei como não me tomou há tempos! — repliquei, deixando o rancor se expressar em meu tom de voz.
— Não a tomei, pois quero que isso seja bom para ambos. Nunca foi de meu desejo te obrigar a nada.
Naquele momento, percebi que havia sinceridade no modo como disse as palavras.
— Eu proponho te ensinar a arte das batalhas, desde que você se mude para minha casa, seja a escrava que auxilie minha esposa e deite-se comigo em algumas noites. — Ragad logo tratou de explicar seu plano.
— Creio que sua esposa não ficará contente com minha presença em seu lar. — Arqueei a sobrancelha em gesto de desconfiança.
— Ela pode esbravejar o quanto quiser! Só a mantenho ao meu lado, pela razão de ser a mãe de meus filhos. É a você quem desejo, e se Lanyr não puder lidar com minhas escolhas, ela que se divorcie de mim. Contudo, creio que essa possibilidade não ocorrerá, já que ela precisa de minha proteção, além de que, minha mulher está acostumada às regalias que meu poder no clã a oferece.
Notei, então, que ele estava tentando ao máximo se manter controlado enquanto tentava me convencer de seu acordo.
— Já passou por sua cabeça a possibilidade de que possa forjar uma arma contra as pessoas de seu povo? Que talvez eu esteja tentando aprender as habilidades de luta para me vingar de vocês, vikings? — incitei a repensar na sua perigosa proposta.
— Você sozinha não é capaz de destruir um povo. Por mais habilidosa que possa se tornar, ainda assim é apenas uma mulher contra centenas de homens. — rebateu, como se tivesse certeza absoluta de que eu não era uma ameaça.
Desviei meus olhos de Ragad e os fixei nas águas cinzentas do mar revolto abaixo de mim. Fiquei um bom momento refletindo sobre sua proposta, ponderando se devia ou não aceitar. E depois de pensar em todas as possibilidades de o acordo ser útil a mim, eu soltei um longo suspiro, cravei meus olhos nos do homem ao meu lado que esperava ansioso por minha resposta, e disse:
— Eu aceito seu acordo! — Suspirei pesadamente.
Ragad não hesitou por nenhum instante antes de aproximar seu rosto do meu e me beijar. Senti, primeiramente, os pelos de sua barba roçar a pele fria de minha face. Logo depois seus lábios se apossaram dos meus como se estivesse faminto.
Aquele foi o meu primeiro beijo e não foi doce, não senti um arrepio em minha espinha e nem borboletas se revirando em meu estômago. Não senti absolutamente nada, nem ao menos o bloco de gelo do meu coração batendo.
Fiquei aliviada quando seus lábios soltaram os meus. O vento gelado acariciou meus lábios inchados e eu o agradeci por seu conforto. A Natureza ainda estava ao meu lado e isso era mais do que eu poderia desejar.
— Nós temos um acordo, então! Hoje mesmo te levarei para minha casa. — Ragad sussurrou visivelmente alterado pelo nosso beijo.
Se percebeu que eu nada senti ao ser beijada por ele, não deixou evidenciar qualquer emoção em sua face.
Talvez eu fosse boa demais em fingir. Talvez ele não tenha pensado que o desejo era unilateral. Mas de um fato tinha certeza: eu jamais amaria Ragad.
Aprendi da forma mais difícil que tudo que acontece em nossa vida são a consequências de nossas escolhas. Certas ou erradas, são elas que determinam nosso destino.
Assim, o Jarl do clã não chegou a pensar na possibilidade de que, quando escolheu por deixar os desejos delinearem suas decisões, ele estava expondo sua maior fraqueza. No fim, o amor pode ser sua maior força e também sua maior falha. No final, todos somos vítimas de nossos próprios desejos.
Apenas uma escolha errada e tudo, desastrosamente, acaba. Portanto, entre o amor e o ódio, eu escolho o segundo, já que ele sempre me fez mais forte.
Espero que estejam apreciando a história da Erieanna!
Faça uma autora feliz, deixe seu voto!
Bjus Tia Lua
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