18 - A VELHA
❝E no íntimo da sua essência, ela saberá que a bondade habita em seu coração. ❞.
—𝕱𝖗𝖆𝖌𝖒𝖊𝖓𝖙𝖔𝖘 𝖉𝖔𝖘 𝕽𝖊𝖌𝖎𝖘𝖙𝖗𝖔𝖘 𝕯𝖗𝖚𝖎𝖉𝖆𝖘,
533 ɗ. Ƈ
Nos últimos que se passarão, peguei-me questionando a respeito de qual tipo de pessoa havia me tornado: se eu era boa ou má. E a resposta de minha indagação silenciosa estava pendendo mais para segunda opção. O odor pungente de morte ocasionadas pelas minhas próprias mãos, arrastava-se as minhas costas, impedindo-me de acreditar na possibilidade de ainda existir bondade em meu coração amargurado. Nunca desejei me sentir daquela forma, mas não podia evitar que meus próprios pensamentos me recriminassem.
Entretanto, uma parte da minha consciência estava feliz por ter me vingado daqueles fizeram mal — não só a mim —, mas também as muitas pessoas que estavam sozinhas no mundo; pessoas que não seriam mais humilhadas e massacradas por aqueles que lancei nos braços da morte. Esse era um pequeno conforto que aliviava ao menos parcialmente o peso da culpa em meu coração.
Todavia, mal sabia eu, mas naquele mesmo dia em que o Jarl me levou para as masmorras — a prisão mais segura do clã —, ele também trouxe consigo uma visita que me fez repensar sobre todos meus conceitos acerca da maldade humana.
Eu até poderia ser uma pessoa má. No entanto, a velha que Ragad conduziu até minha cela, era mil vezes pior.
Senti a essência de sua alma sombria e vazia, assim que colocou os pés nas masmorras. Lembro que o ar entorno daquele ambiente se tornou pesado e uma sombra se espreitou ao redor da montanha em que nos encontrávamos.
De imediato, preparei-me para qualquer possível ataque e também construí um muro sólido em minha mente, algo dentro de mim dizia que havia necessidade de me proteger de um possível invasor.
Então ela chegou... Aos olhos de qualquer outra pessoa, ela parecia ser uma doce idosa com suas bochechas rechonchudas rosadas por conta da exposição ao frio. Seu cabelo grisalho trançado até o meio das costas conferiam-lhe um ar de ingenuidade. No entanto, aquele que porventura tivessem a coragem de olhar com a devida atenção para aqueles olhos castanhos envoltos por suaves rugas, poderia ver ali, discretamente, o terrível mal que ela carregava dentro de si.
Observei calada as ações de Ragad que sussurrou algo no ouvido da velha. A estranha criatura nada disse, apenas acenou com cabeça em sinal de concordância ao que lhe foi dito em segredo. Então o viking, sem proferir quaisquer palavras, abriu a cela e a deixou entrar. Por nenhum instante, Ragad olhou em minha direção, nem quando saiu e me deixou sozinha com o monstro.
— Olá, minha querida — A velha sorriu ainda representando seu papel de uma adorável idosa. — Estava curiosa para te conhecer. Os comentários que chegaram até a mim é de que seus dons são incríveis. — Forçou mais um sorriso amigável.
Achei melhor não lhe conceder a fala, apenas analisei minha inimiga, tentando furtivamente encontrar uma brecha na sua armadura. Ela semicerrou os olhos e me encarou por um bom tempo.
— Sabe... — tornou a dizer — Sou como você, também tenho dons. — Um leve sorriso surgiu em seus finos lábios enrugados.
Não tardou muito para que eu percebesse o verdadeiro motivo pelo qual a velha estava ali. Ragad queria bloquear meus poderes, ou ao menos ter o mínimo de controle sobre mim, e a criatura a minha frente era a chave para que seus planos pudessem ser concretizados.
— Não se deixe enganar por essa casca. — Ela percorreu as mãos pela extensão de seu corpo. — É só um disfarce. — Sorriu novamente, fazendo com que as marcas de expressões se acentuassem em sua face.
Meu riso repleto de escárnio escoou pela cela.
— Jamais me deixei levar por seu disfarce. Sei exatamente quem é desde que pisou nessa masmorra. — Arqueei a sobrancelha com ar de perspicácia.
Minha constatação apagou seu sorriso do seu rosto. A velha imediatamente mudou de postura, e para meu espanto, alterou a face revelando sua verdadeira forma.
Olhando para mim estava uma senhora baixa de postura encurvada cujos cabelos brancos desgrenhados repousavam rente as coxas. Não se parecia nada com gentil senhora que entrou na cela. E o que mais me impressionou foram seus olhos que mudaram do suave tom amarronzado, para completamente negros, sem pupila. Aquela era a verdadeira imagem da criatura. O mal em pessoa. Eu deveria ter ficado com medo, mas me mantive firme. Permaneci em alerta para travar mais uma batalha. Talvez a pior de todas.
— Não sinto uma gota de medo em você... — sua voz era estridente e ao mesmo tempo sobrenatural. — Interessante! — exclamou, analisando-me dos pés à cabeça.
Não me mexi, nem desviei meu olhar do seu quando falei num tom neutro:
— Vamos começar com o que seja lá que veio fazer aqui. Hoje foi um dia muito agitado. Quanto mais cedo começarmos, mais cedo partirá e enfim poderei descansar.
A velha fuzilou-me com seus estranhos olhos negros como um abismo sem fim.
— Você não sabe com quem está lidando, criança. — proferiu em tom baixo e ameaçador.
— Que tal se me mostrar? — Tentei provocá-la para que baixasse a guarda e assim pudesse atacá-la. No entanto, ardilosa como eu presumi que fosse, ela não caiu na minha armadilha.
— Quando acabarmos, é provável que nem se recorde do próprio nome. — assegurou, convicta da sua vitória.
Não deixei que suas palavras me afetassem. Ela precisaria mais do que frases macabras para me assustar. Eu fui forjada pelo medo, não me abalava com facilidade.
Em questão de instantes, a cela se tornou um campo de guerra silencioso. O ar ficou sufocante e o ambiente pareceu até mesmo reduzir de tamanho enquanto nos encarávamos com muita intensidade.
Tão logo eu senti. Era roçar delicado e seguro de garras tentando penetrar as barreiras de minha mente. A velha não estava atacando, não ainda. Aquele foi apenas um habilidoso movimento tático que ela usará para reconhecer quão resistente era o meu escudo. Foi apenas um teste também serviu ao meu propósito.
Quando suas garras negras tentaram penetrar meu bloqueio mental, eu pude identificar, vagamente, com que tipo de força iria lutar. Os pelos de minha nuca ficaram ouriçados, pois sentiram mal acabara de me tocar com suas garras.
A criatura exibiu um sorriso maléfico. Provavelmente acreditou que tinha compreendido a extensão de meus poderes. Ela estava tão enganada. Nem mesmo eu sabia o quanto de força oculta existia dentro de mim. A velha não seria a primeira a descobrir.
Sem delongas a criatura começou a forçar seu ataque. Repetidamente suas garras negras arranharam meu escudo, tentando rasgá-lo, trincá-lo, rompe-lo de alguma forma.
Qualquer pessoa que passasse pela cela, não seria capaz de ver a batalha que ocorria naquele minúsculo local. Éramos apenas duas pessoas se encarando — talvez com o olhar vazio — completamente em silêncio. Entretanto, em nossas mentes, uma luta ocorria e está só teria uma vencedora.
Na medida que o tempo avançou, suas garras se tornaram maiores e mais agressivas. Ao invés de arranhar, esmurraram brutalmente meu escudo que por um instante, começou a falhar. Ela era forte demais, eu não sabia até quando conseguiria me manter firme ao ataque, talvez não fosse capaz de resistir por muito tempo.
Em meu corpo eu senti minhas mãos transpirarem. Meu coração bateu acelerado. Tive a impressão de que estava no meio de uma luta perdida e a velha pensava o mesmo, já que, bem no fundo da minha mente, eu a ouvi gargalhar.
Por um momento a criatura quase me venceu. Porém, como se minha mente tentasse me proteger, a face de Thorn surgiu em meus pensamentos e a sua imagem foi o suficiente para que eu resgatasse toda minha energia e reestruturasse com mais força meu equilíbrio mental.
A velha também sentiu a mudança em meu escudo, e sem pestanejar, continuou a me atacar incansavelmente com todo poder que tinha,
Senti o exato momento em que ela, por uma fração de tempo, baixou a guarda para tomar fôlego e voltou a esmurrar meu bloqueio. Só precisei desse curto intervalo para contra-atacar e invadir sua mente. A criatura não sabia, mas eu tinha vencido.
Penetrei seus pensamentos de mansinho, não tomei o controle de imediato, pois não queria que desconfiasse que eu estava dentro dela. Aos poucos fui adentrando naquele lugar sombrio que era sua mente. Cada vez mais me tornei parte de sua essência, e ao desbravar aquele lugar obscuro, vislumbres de lembranças e pensamentos terríveis passaram por mim. Quando cheguei no íntimo de seu ser, eu vi algo que me aterrorizou... Logo eu que nada temia, encontrei-me horrorizada com as lembranças que a velha guardava no seu íntimo.
Todas as crianças que desapareceram sem deixar nenhum vestígio e que ingenuamente os escandinavos diziam ter sido levadas pelos deuses. Todas as dezenas delas foram brutalmente assassinadas por aquela criatura que jazia conectada a mim. Aquilo que vi em sua cabeça, era o mal no seu estado mais bruto. A monstro não só matava as crianças em nome do seu deus, mas também devorava suas carnes mortas, fazia dos inocentes o seu banquete. Eu não passava de uma ingênua mulher ao comparado com o ser desprezível que Ragad levou a minha cela. Era bem provável que nem o Jarl soubesse com quem estava lidando, porém, eu sabia. Decidi, naquele momento, que também a mataria. Deixaria o mundo livre daquele monstro. Não morreria antes de apagar sua existência em Midgard. Só assim descansaria em paz.
— Escute com atenção o que vou lhe falar... — Iniciei meus comandos para velha que agora estava com o olhar desfocado, completamente pronta para me obedecer. — Ao deixar essa masmorra, vai dizer a Ragad que eu estou sob o seu controle, dirá a ele que docilmente permanecerei presa até o dia de meu sacrifício, vais assegurá-lo de que entrou na minha mente e alterou o curso de minhas ações, e que, portanto, não sou mais um perigo. — Fiz uma breve pausa para que ela assimilasse tudo que acabara de lhe de transmitir. — Só poderá partir quando tiver a certeza de que o Jarl acreditou em você. Caso o contrário, pegará a adaga que ele carrega na bainha presa a cintura e cortará sua própria garganta, deixará esse mundo para sempre. — A velha continuou inexpressiva, apenas ouviu com atenção minhas palavras que estavam sendo registrada em sua essência.
Encarei a criatura com fúria. Tive que trazer à tona todo meu autocontrole para não matá-la ali mesmo, enquanto não podia se defender. Contudo, eu precisava dela para que meus planos dessem certo. Dessa forma, apenas ordenei:
— Mostre-me onde mora.
A velha rapidamente obedeceu a minha ordem e mostrou-me seu casebre que ficava bem no centro daquela parte da floresta que as pessoas não frequentam, pois alegavam que era amaldiçoada. Elas tinham razão, era de fato amaldiçoada: a maldição era a velha.
O mundo será um lugar melhor quando ela deixar de existi.
— Ótimo! — proferi satisfeita. — Agora sairá dessa cela e se lembrará de todos meus comandos. Também irá acreditar que me venceu e que de fato conseguiu me controlar. Depois não sairá de sua casa, nem para buscar lenha. Em breve voltaremos a nos ver. — conclui como uma promessa e rompi a conexão que me ligou a sua mente sombria.
A velha despertou do transe e soltou uma alta gargalhada que ecoou naquelas pedras frias.
— Achou mesmo que ia me vencer, criança? —ironizou, rindo. — Eu tenho mais de mil anos. Existo nessa terra antes de qualquer homem pisar sobre os gelos que a encobrem. Jamais me venceria. — Exibiu seu sorriso desdentado. — Embora devo reconhecer sua força. Você foi a pessoa que mais me deu trabalho. É uma pena que tenha de morrer. — Lamentou olhando para as unhas afiadas. — Poderia muito bem servir aos propósitos do meu deus. — Voltou seu olhar negro ao meu rosto. — Mas agora é tarde. Acredite, foi um prazer te conhecer.
Ela então voltou ao seu disfarce de uma boa senhora e partiu masmorra a fora, deixando-me sozinha com meus pensamentos.
Escorei meu corpo na parede de pedras e aguardei por um possível ataque que não veio. Ragad não adentrou em minha cela carregando uma irá mortal. Presumi, portanto, que a velha havia o assegurado sobre eu estar controlada. Meus planos deram certo afinal.
Ajeitei o travesseiro e me cobri com o grosso manto de pele de lobo que Ragad havia deixado. Ele jamais permitiria que eu passasse frio. O Jarl me amava — do seu jeito errado, é claro —, mas não poderia negar que seu coração só batia por mim.
A exaustão do dia e de todas minhas batalhas tomaram conta de meu corpo humano. Permiti-me, portanto, a ter um momento de descanso.
Minha luta ainda não tinha chegado ao fim. Meu grande plano estava só no começo. Contudo, naquela noite eu apenas descansaria. Todavia, antes que o dia raiasse eu estaria de pé, pronta para mais uma batalha.
Cada dia de vida era um dia a menos a caminho da morte. E o tempo — o maldito tempo — infelizmente, não parava. O que seria de mim no final?
Bạn đang đọc truyện trên: Truyen247.Pro