17 - O PEDIDO
❝Nenhum mortal será capaz de lhe impor medo, pois ela aprenderá a não temer aos homens, pois todos eles são, no fundo, tão fracos quando a vitalidade que correm em suas essências mortais❞.
—𝕱𝖗𝖆𝖌𝖒𝖊𝖓𝖙𝖔𝖘 𝖉𝖔𝖘 𝕽𝖊𝖌𝖎𝖘𝖙𝖗𝖔𝖘 𝕯𝖗𝖚𝖎𝖉𝖆𝖘,
533 ɗ. Ƈ
Estou dançando sobre o caos. Estou fazendo da ruína de minha vida, o elixir que me mantém viva para apreciar os terríveis dias que antecedem a minha partida. Finjo todos os dias que estou bem, mas não estou. Nunca estive. Encontrar a morte será como encontrar a paz. Estarei livre finalmente. Esse foi meu último pensamento ao adentrar na casa a qual Ragad havia me presenteado. Não consegui evitar que o peso do mundo e de minhas ações recaíssem sobre os meus ombros. Estava tão cansada. Mas ainda assim, tinha forças dentro de mim para continuar minha luta até que meu coração deixasse de bater.
Olhei para Sumoko. A mulher permanecia paralisada no meio da minha cozinha. Seus únicos movimentos que esboçava eram o piscar de olhos, assim como o subir e descer de seu peito, evidenciando sua respiração frenética.
— Essa conversa será breve, pois creio que logo virão atrás de mim. — Esperei qualquer reação de Sumoko, no entanto ela permaneceu calada na mesma posição que se encontrava desde que havíamos chegado.
— Vou ser direta e preciso que confirme que compreendeu tudo que vou lhe falar... — Aproximei nossos rostos de modo a ficar cara a cara com a mulher que começou a tremer apavorada. — Sei que anda dormindo com Ragad, o maldito precisou de uma nova escrava para me substituir em sua cama. Sendo assim, creio que só você poderá extrair dele a informação que preciso. — Dessa vez Sumoko lançou-me um olhar confuso, por isso eu completei: — O Jarl esconde um homem que é importante para mim e ninguém além dele sabe o local do esconderijo. Preciso que o encontre! — Fixei meu olhar nos belos olhos negros da mulher a minha frente — O viking que procuro é alto, de porte esguio e forte. Seus cabelos de um tom louro acobreado chegam a altura dos ombros. A barba tem a mesma tonalidade do cabelo. Os olhos são de um verde intenso e os lábios são finos, porém bem desenhados. Ele é o viking mais bonito que já vi. Vai saber que é o homem certo assim que colocar os olhos nele. — Encarei-a com mais intensidade. — Preciso que o encontre em menos de três dias. Nada menos que isso. Você entendeu?
Sumoko arregalou os olhos antes de responder temorosa:
— Por que eu faria isso? — Sua voz oscilou por conta do medo que a espreitava.
Sem mediar minhas ações, invoquei a magia que corria em meu sangue e lancei a mulher contra a parede, mantendo a presa ao meu domínio. Seus braços e pernas abertos que foram imprensados junto as pedras, ela não era capaz de mover um músculo sequer.
Movimentei minhas mãos, instantaneamente as chamas começaram a subir pelos pés de Sumoko e se estender, vagarosamente, em direção a suas pernas. O fogo não estava tão quente ao ponto de queimá-la, mas ainda assim era amedrontador.
— Fará o que lhe pedi, porque sua vida depende disso. — Fiz com que as chamas subissem até o seu tronco. A mulher começou a ficar apavorada. Lágrimas começaram a escorrer por sua face.
— Tudo bem! Eu farei o que quiser... Só me tire daqui. — suplicou em meio ao choro.
Apaguei as chamas que a espreitava e soltei seu corpo da parede. A mulher desabou no chão, encolhendo-se e chorando feito um recém-nascido.
Caminhei até Sumoko, que ao sentir minha presença tão próxima de si, encolheu-se ainda mais.
— Olhe para mim! — rosnei, incapaz de controlar minha fúria. A mulher olhou-me de imediato.
— Tem três dias para encontrá-lo. Se falhar... — Torci os lábios. — Então, morrerá antes de mim. — Exibi um sorriso sádico. Percebi, naquele momento, que apreciava ver certas pessoas sofrerem.
Sumoko balançou a cabeça de modo agitado em sinal de afirmação. Estava confirmando que acharia Thorn.
Afastei-me da mulher e ordenei:
— Levante-se.
Ela rapidamente pôs-se em pé.
Então eu sorri após encará-la dos pés à cabeça.
— Esperava mais de você. Para onde foi toda sua bravura, agora que não tem que a proteja? Você não passa de uma covarde que nunca soube se defender sozinha. — Caminhei até escrava e enxuguei as lágrimas em seu rosto de forma rude. — Tenha ao menos o mínimo de compostura. — proferi com desdém. — Agora vá e engula esse maldito choro. Ninguém precisa saber que eu te aterrorizei. — Abri um largo sorriso maléfico. — Pelo menos não ainda.
Não precisei pedir duas vezes. Sumoko partiu assim que conclui a frase.
Aproveitei meus últimos momentos naquela casa fazendo uma sopa. Aquela era minha homenagem a Thorn e talvez fosse minha última refeição decente. Seria melhor que me preparasse para o pior.
Assim que o ensopado ficou pronto, sentei-me a mesa e iniciei mais uma refeição solitária. A calmaria antes do caos fez com que meu estômago se agitasse como as ondas do mar antes de uma terrível tempestade.
Não tardou para que o Jarl e seu bando viessem ao meu encontro. Ouvi seus passos quando ainda estavam muitos distantes e não tive medo, ao contrário, estava ansiosa por aquele momento.
Ragad abriu a porta com brutalidade e deu ordem para que seus homens aguardassem do lado de fora.
Permanecendo com a minha postura plácida, mantive a atenção voltada ao meu ensopado e sequer lancei um mísero olhar em sua direção. Sem proferir qualquer palavra, o Jarl, com muita prudência, iniciou uma curta caminhada ao meu encontro.
Levantei as mãos indicando que ele interrompesse os movimentos.
— Não ouse dar mais nenhum passo. — ameacei, sem desviar o olhar do meu prato de sopa.
O viking permaneceu imóvel. Não precisei o prender com a magia, pois ele sabia exatamente com quem estava lidando.
— Você matou cinco de meus homens hoje. — Suspirou pesadamente. — Eram bons homens. — proferiu entredentes.
Finalmente levantei meu rosto para olhá-lo. Ele parecia terrivelmente abatido.
— Tudo não passa de uma questão de perspectiva. — Arqueei a sobrancelha. — As cicatrizes em meu corpo, dizem que seus homens não eram tão bons assim. — repliquei rancorosa.
— Deve ter matado Björn também, já que ninguém nessa ilha é capaz de encontrá-lo. — Não foi uma pergunta, ele estava apenas apresentando um fato.
— Culpada, confesso! — assumi, em meio a um pequeno sorriso.
Ragad cerrou os punhos ao lado do corpo e direcionou-me um olhar furioso.
— Aquele fazendeiro encontrado morto naquela trilha reclusa... — Abri mais um sorriso maldoso. — Minha culpa também. — Levei uma colherada de sopa a boca.
Aquelas palavras fizeram com que o Jarl perdesse o controle. Tomado por uma irá brutal, ele partiu até a mim e lançou a mesa que nos separava pelo ar. O móvel quebrou ao se chocar contra o chão que por sua vez ficou molhado com o resto de minha sopa.
Nenhum mísero músculo do meu corpo se abalou. Nem minha respiração foi alterada. Eu era como um grosso bloco de gelo: frio e sem emoção. Não tinha medo algum de Ragad.
— Posso entender a morte dos cuidadores de escravo, assim como o Björn. — O homem balançou a cabeça de um lado para o outro. — Mas o fazendeiro... Que mal ele pode ter feito a você? — indagou confuso.
— Que mal ele pode ter feito para mim? — Aumentei meu tom de voz. — Ele me estuprou e me deixou largada naquela mesma trilha, apenas com o frio impiedoso como minha companhia. Ninguém veio ao meu encontro para me salvar, nem mesmo você. — Segurei meu olhar nos seus olhos azuis.
Tive a impressão que Ragad deixou de respirar por alguns instantes enquanto fitava-me sem reação alguma. Logo, lágrimas escorreram por seu rosto.
— Então tudo se trata de vingança? — questionou com a voz baixa.
Acenei com a cabeça em concordância. As palavras não eram o suficiente para expressar tudo que eu sentia.
— O que aconteceu com você? — Ragad sussurrou.
— Eu sou um monstro que você criou. — Abri os meus braços. — Aprecie a sua mais temida criação. — Um sorriso carregado de maldade surgiu em meus lábios. Um sorriso de um monstro.
— Tem mais alguém na sua lista de mortes?
Eu sabia que estava me sondando para extrair informações a fim de resguardar seu povo de mim.
— Sim... — Fiz uma breve pausa e o encarei com intensidade. — Você! — completei com absoluta frieza.
Tive a impressão que o Jarl levara um soco, pois minha resposta o fez dar um passo para trás.
— Sabe que não pode me matar. — Seus lábios se curvaram em um sorriso sarcástico.
— Há controvérsias acerca desse assunto. Nada está definido até que eu morra. — retruquei, tentando implantar a dúvida em sua mente.
Inesperadamente, o viking ajoelhou-se a minha frente e apoiou sua cabeça em minha coxa.
Continuei sentada. Não esbocei nenhum gesto, era como seu eu tivesse me tornado parte da mobília da casa.
— Nunca quis que terminássemos assim. — O poderoso líder de um clã derramou suas lágrimas em meu colo. Ele tinha sorte de a porta estar fechada e seus homens não poderem vê-lo naquele estado patético. — Eu só queria que me amasse. — concluiu, segurando os soluços que tentavam a todo custo escapar por seus lábios.
— E eu só queria ser livre. — sussurrei, momentaneamente angustiada.
E foi naquele momento que eu soube que ambos morreriam sem aquilo que mais desejávamos.
Pela última vez, deixei que afogasse as mágoas em meu colo, não por pena ou caridade, mas porque precisaria amolecer seu coração para fazer meu último pedido.
Não sei dizer por quanto tempo ele ficou agonizando sobre mim, contudo, sei que em algum ponto suas lágrimas cessaram e Ragad levantou-se de forma desajeitada e recompôs-se logo a seguir.
— Eu sinto muito, mas terei que te levar daqui. As pessoas estão alvoroçadas com sua presença, e como não sei quem mais está nessa sua lista de vingança... — Torceu a boca em sinal de desagrado. — Pelo bem de todos do meu clã é melhor te afastar do vilarejo. — Ele tentou, com todo esforço, agir de forma séria e correta. — Prefiro não travar uma batalha contigo. Já perdi muitos homens hoje. — ponderou, visivelmente cansado.
Direcionei a Ragad um olhar de seriedade. Era fácil odiar Ragad quando me lembrava de seu egoísmo.
— Irei de bom grado contigo se concordar com meu pedido. — forcei o meu tom de voz a ficar calmo.
O Jarl lançou-me um olhar questionador antes de dizer:
— Desde que não me peça para te libertar, asseguro que esforçarei para levar em consideração o que tens a me pedir.
Acenei concordando, então pedi:
— Preciso que cuide da família do fazendeiro que matei. Dei a ele a minha palavra de que você cuidaria de suas mulheres, que as protegerá e não lhes deixará faltar nada. Assim, quero sua palavra afirmando que fará isso, que cuidará delas após eu partir.
Claro que eu estava com medo dele recusar, mas não deixei transparecer o quão difícil era estar naquela situação, dependendo exclusivamente da boa vontade de alguém.
— Por que prometeu algo que não cabe a você?
— Porque você me deve isso, Ragad. Vais tirar minha vida! Isso é o mínimo que pode fazer por mim, depois que já me tirou tudo. — bradei furiosa, já não era mais capaz de controlar minha raiva.
Ele alisou a barba loira como se estivesse pensando no meu pedido. A demora de sua resposta quase esgotou meu autocontrole.
— Por favor! — supliquei em meio a um sussurro. Eu odiava suplicar.
Ragad olhou-me surpreso, com certeza não esperava por aquilo. Então, comentou:
— Não consigo te compreender, Erieanna.... Jamais suplicou por você. Sempre se manteve tão fria e agora está implorando por pessoas que nem conhece? Isso acaba com minha capacidade de tecer qualquer raciocínio a seu respeito! — exclamou, evidentemente confuso.
— Não perca seu tempo tentando me entender, pois eu sou um enigma indecifrável. — Dei de ombros. Ele não precisava me compreender, precisava apena me ouvir.
O homem soltou um suspiro resignado, olhou para o alto e depois declarou:
— Tem a minha palavra de que protegerei a família do fazendeiro. Enquanto eu existir nessa terra, nenhum mal cairá perante tais mulheres. — Seu tom de voz carregou a mais exímia segurança. Ele falara a verdade.
Alívio tomou conta do meu coração e de minha alma cansada. Estava satisfeita, ao menos não deixaria aquela promessa à deriva do acaso. Aquilo era um conforto mais do que bem-vindo.
Rapidamente coloquei-me em pé, estufei o peito e alisei minhas vestes.
— Pois bem, leve-me para o lugar onde devo permanecer para que sua mente possa descansar tranquilo. — Eu era um poço de calma por fora, mas por dentro estava fervilhando em fúria.
Ragad virou-se de costas e eu o segui para fora da casa rumo ao frio e doloroso inverno. Partia de encontro aos vikings que tanto queriam me matar.
Ao sairmos pela porta, demos de cara com pelo menos dez homens empunhando machados e escudos. Notei que alguns seguraram firme as mãos no cabo das armas quando passei por eles lhes desferindo um olhar carregado de promessa de mortes.
Naquele dia não teve nenhum ataque. Por ora eu havia mantido minha palavra. Por ora estava tão dócil quanto uma cobra que se preparara para dar o bote. Por ora, estavam todos seguros.
Mas muito em breve, o mundo daqueles vikings iria ruir e todas as dívidas seriam exterminadas. Um mar de sangue estava por vir.
Eu sou Erieanna, por minhas mãos vingarei a todos que foram massacrados, que tiveram as esperanças destruídas. Todos que suplicaram pela liberdade que jamais veio. Tais palavras permearam meus pensamentos, à medida em que eu caminhava para meu destino desconhecido.
Morrerei em paz quando tudo finalmente acabar. Aquele foi meu último pensamento, antes de aceitar qualquer consequência que poderia vir. Eu apenas ansiava pelo fim.
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