16 - SALVADORA
❝Ela será amada e temida. Aqueles que a amarem saberão que a morte a acompanha e saber disso os fara temê-la❞.
—𝕱𝖗𝖆𝖌𝖒𝖊𝖓𝖙𝖔𝖘 𝖉𝖔𝖘 𝕽𝖊𝖌𝖎𝖘𝖙𝖗𝖔𝖘 𝕯𝖗𝖚𝖎𝖉𝖆𝖘,
533 ɗ. Ƈ
Não há como esconder o medo para sempre. Não dá para fingir o tempo todo que sou impenetrável pelos terrores que sempre me assombraram. Descobri, já fazia um bom tempo, que quando adormecia, todos meus medos me encontravam. Nos meus pesadelos era quando estava mais vulnerável e todos meus monstros estavam lá... com as suas garras afiadas e devidamente prontos para me atacar. Entretanto, de todos os pesadelos que já tive, um especificamente foi o que mais me aterrorizou.
Era o quarto dia após minha sentença de morte ter sido decretada. Era mais um dia em que o odor repugnante da morte tanto em minhas mãos, quanto nas minhas costas me seguiam como uma marca invisível. Eu devia estar aterrorizada, no entanto, nada me perturbou mais do que aquele terrível pesadelo.
"Tudo estava escuro e assombrosamente silencioso. Eu estava sozinha em meio às sombras. Porém, não demorou muito até que as silhuetas de duas pessoas, começaram a tomar forma um pouco mais à frente de onde eu estava. Com muita cautela, aproximei-me das sombras daquelas pessoas e o susto foi grande quando dei-me conta de quem se tratavam... Lá estavam meus pais: minha mãe com o seu pescoço retorcido num ângulo agonizante e meu pai com a garganta degolada, respingando sangue em sua veste branca que toda manchada do mais vivido vermelho, e ao redor do pescoço, minava uma pequena correnteza de sangue que escorriam até sua barriga.
Dei um pulo para trás, pois aquela imagem de fato me aterrorizou. Papai esticou a mão em minha direção, como se quisesse me alcançar. Mamãe virou seu corpo de modo que seu rosto se voltasse para mim, seus olhos azuis — assim como os meus — estavam cheios de lágrimas.
— O que fizeram com você minha pequena? — ela sussurrou docemente.
Meus olhos se encheram de água. Eu sentia tanto a falta deles.
Dei alguns passos para frente, tentando alcançá-los, e quando de fato estava chegando próximo de ambos, seus rostos se modificaram e a face de Björn, bem como do fazendeiro, tomaram o lugar da de meus pais. Novamente, recuei dois passos para trás, completamente aterrorizada.
Ambos homens andaram até a mim, como se fossem predadores. Eu não fugi. Embora estivesse com medo, não fiz qualquer menção de fugir do ataque iminente. Ataque este, que não veio. Pois, os vikings apenas andaram em círculo ao meu redor, tentando — eu presumi — me acuar, me amedrontar e me aterrorizar... E estavam conseguindo.
— Quer saber como é a morte, Erieanna? — Björn sussurrou bem próximo ao meu ouvido.
Não respondi. Achei melhor não falar com os mortos.
— Logo saberá! — o fazendeiro declarou com um sorriso maldoso estampado em seus lábios.
Ambos homens soltaram uma gargalhada e sumiram como fumaça no ar.
Então meu coração voltou a bater num ritmo calmo. Mas a tranquilidade não perdurou por muito tempo, pois logo escutei a voz que há tanto desejava ouvir, e ela veio bem atrás de mim.
Virei em direção a voz daquele que andava ocupando minha mente e meu coração quase parou diante da cena a qual me deparei: Thorn estava ajoelhado, complemente machucado, ensanguentado e destruído ao lado das pernas de Ragad que o segurava pelos cabelos.
— Por favor não me mate! — ele suplicou num sussurro desesperado.
Senti uma fissura se abrindo no bloco de gelo do meu coração. Desejava mais do que tudo, savá-lo.
— Solte-o! — gritei para Ragad que voltou seu olhar para mim. — Solte-o! Você prometeu que não o mataria. — pedi completamente desesperada.
Ragad segurava firme o machado em sua outra mão. Parecia que estava pronto para usá-lo a qualquer momento.
— Diga-me Erieanna, você o ama? — o Jarl indagou com seriedade.
Olhei para Thorn que também voltou seu olhar esperançoso em minha direção. Meu coração batia forte em meu peito e ele quase deixou de bater antes de eu dilacerasse o seu coração e toda esperança que Thorn nele carregava com minha resposta:
— Não, eu não o amo! — não fui capaz encará-lo. Não suportaria ver a dor em seus olhos.
— Então não ficará triste por isso. — Em seguida, sem que eu pudesse evitar, Ragad passou a lâmina afiada do machado no pescoço de Thorn e sua carena exposta começou a jorrar sangue pelo chão ao seu redor.
Ele estava morto. "Morto!" Ragad havia o matado.
— NÃÃÃÃÃOOO! — berrei desesperada, correndo até o corpo sem vida de Thorn que desabava vagarosamente em direção ao chão.
Não consegui alcançá-lo. Não fui capaz de salvá-lo.
Então o pesadelo acabou e eu acordei flutuando acima de minha cama, com círculo de fogo flamejando ao meu redor.
Devia ter ficado aliviada por tudo não ter passado de um terrível sonho. No entanto, aquilo só me deixou mais perturbada. Eu não podia falar com Thorn. De todas as pessoas do mundo, ele era o único com quem eu me importava. Só deixaria aquele mundo quando tivesse a certeza de que ele estivesse livre. Ficaria então em paz.
***
Fazia um bom tempo que não ia até o casarão dos escravos. Quando Ragad finalmente me libertou daquela zona de tortura e desolação repleta de sonhos vazios e esperança dilaceradas, eu me recusei e a pisar os pés naquele maldito lugar. No entanto, ainda tinha dívidas a acertar e talvez aquela fosse a maior de todas as dívidas que eu cobraria. Eu morreria em paz quando a concluísse.
— Ora, ora, ora... Olha quem resolveu dar o ar da graça... — Sandric, o agora homem de meia idade que tomava conta dos escravos, falou em meio a um sorriso de deboche. — Não é todos dias que alguém que outrora foi escrava, resolve nos privilegiar com sua vista. Sentiu nossa falta? — ironizou, divertindo-se com aquela situação.
Sorri. Um sorriso de uma exímia predadora.
— Sim. — respondi num tom manso. — Senti falta do couro do seu chicote açoitando minha pele. — Esbocei um sorriso de canto e me aproximei de seu rosto de modo a sussurrar em seu ouvido. — Descobri que, se souber administrar sua força, as chicotadas podem ser bem prazerosas. — Forcei meu tom de voz a soar de um jeito incrivelmente sedutor.
Afastei meu rosto do homem que engoliu a saliva. Provavelmente tentava esconder o desejo obscuro que já havia penetrado em suas duas cabeças: a de cima e a de baixo.
— O que você quer aqui? — Ele trocou os pés mudando o peso do corpo. Sua voz não estava nem um pouco confiante.
— Quero brincar um pouquinho... — Fiz um beicinho e bati os cílios exageradamente. — com você e seu chicote. — completei docemente, percorrendo graciosamente os dedos pela extensão de seu tronco, subindo até o seu pescoço.
O homem pigarreou antes de exibir os dentes em uma espécie de sorriso mal-intencionado.
Mais um na minha teia. Homens são tão fáceis de manipular. Pensei satisfeita.
Entrelacei meus dedos nos seus e comecei furtivamente a levá-lo para o fundo do salão. O viking me seguiu em silêncio. Senti que a palma da sua mão começou a transpirar sob o meu toque, Sandric devia estar nervoso. Era provável que aquela seria a primeira vez em que se deitaria com alguém a qual não precisou forçar. Aquilo devia ser novo para ele. Todavia, ainda assim, como uma perfeita presa, ele seguiu-me sem pestanejar.
Estávamos prestes a chegar ao nosso destino, quando o homem estancou no meio do caminho.
— Essa não é uma boa ideia. — declarou com uma evidente insegurança. — Ragad não aprovaria que eu ficasse em você. — Balançou a cabeça de um lado para o outro de modo agitado.
Segurei seu rosto em minhas mãos e obriguei que olhasse em meus olhos. Assim que pareceu estar completamente concentrado em minha face, eu falei sedutoramente:
— Ragad não precisa saber. — Sorri maliciosa. Não deu certo, o homem continuou tenso. — Será nosso pequeno segredo... — Desci minha mão até seu membro encoberto pela calça e o acariciei com carinho. De imediato, rigidez se fez presente sob meu toque.
Homens são todos iguais.
Levei o viking para o meio da mata. Não me distanciei muito do salão. Para que meus planos saíssem conforme o planejado, era preciso que eu permanecesse aos arredores daquele lugar.
— Posso ver seu chicote? — Não aguardei pela resposta ao levar as mãos sobre o instrumento de tortura.
— Melhor não. Deixaremos essa belezinha aqui para quem sabe lidar. — Um leve sorriso surgiu em seus lábios.
— Como quiser... — Dei de ombros e tomei distância do homem.
Por um curto espaço de tempo, nenhuma ação foi executada além de nos encarar em profundo silencio. Era notório que Sandric pensava estar no controle da situação. Mas ele estava tão enganado e logo tomaria ciência da dura verdade.
Observei com muita pacificidade o homem agitar o chicote em suas mãos a medida em que mordia seus lábios ressecados em demonstração de um desejo doentio.
— Vire-se. — ordenou com seriedade. Obedeci a seu comando sem questionar. — Tire a roupa. — Deu mais uma ordem, seca e direta.
O vento me abraçou quando tirei meu casaco de pele. Logo depois, senti o duro frio açoitando a pele de minhas costas ao abrir os botões de meu vestido que lentamente escorreu por meu corpo e passou a me cobrir apenas da cintura para baixo.
Sandric estalou o chicote no chão e eu não me abalei por nenhum momento com aquele gesto. Continuei imóvel, de costas para ele, sem nem ao menos encolher os ombros.
Então, por uma fração de tempo, o mundo começou a girar mais devagar. O viking lançou o chicote em minha direção, mas antes que o couro entrasse em contato com minha pele, eu imobilizei o homem e seu movimento.
Ao voltar em direção ao homem, a imagem a qul me deparei foi do chicote imóvel e inerte no ar formando de uma leve ondulação, e no rosto de Sandric, encontrava-se o mais letal olhar de um sádico.
De modo sereno, ergui meu vestido e cobri minha nudez. Com um meio sorriso nos lábios, agachei-me ao chão, peguei meu casaco e o depositei em torno de meu corpo, aquecendo-me da aspereza do frio nórdico.
O viking continuava imóvel. Devia estar se borrando de medo.
Andei em sua direção e retirei o chicote de suas mãos.
Primeiro, avaliei o peso do instrumento que era mais pesado que havia imaginado. Em seguida, rocei meus dedos no couro que tanto arrancou sangue e pele de pessoas inocentes e desprotegidas e senti a raiva brotar dentro de mim.
— Então é essa a sensação... — falei mais para mim do que para qualquer outra pessoa — Essa é a sensação de carregar algo que pode destruir alguém.
Naquele momento fitei o rosto paralisado do homem a minha frente. Lágrimas solitárias escorreram pelas rugas ao redor de seus olhos. Sempre me impressionava ao ver os bárbaros chorarem. Ele não iria para Valhalla. Somente os verdadeiros guerreiros conquistavam o direito de se banquetear com os deuses. Sandric não era um guerreiro, pois guerreiros não choram ao se deparar com a morte eminente.
— Vire-se. — Girei o corpo do homem de modo a deixá-lo de costas para mim. — Tire a roupa. — Suas vestes se abriram de forma bruta e a pele demasiada branca de suas costas ficou exposta.
Parei por alguns instantes e me permiti saborear o doce gosto da vingança. Soltei um longo suspiro ao dar-me conta que aquele momento de acerto das dívidas havia, enfim, chegado.
Com toda minha força, lancei o chicote sobre as costas de Sandric. Uma fissura de sangue se abriu em sua pele. Não me abalei. Continuei a chicoteá-lo uma, duas, três, quatro vezes. Chicotei por mim, por todas as cicatrizes em meu corpo e por todos que foram injustamente açoitados. Eu estava pagando nossas dívidas.
Nenhum som saiu da boca do viking até que eu ordenei:
— Grite!
Um urro de dor saiu de seus lábios. Aquele foi o maior grito de pavor que ouvi em toda minha vida. Foi um berro que veio de uma alma desesperada. Um último brado de esperança. Ouvi-lo foi tão assustador, quanto prazeroso.
Passos começaram a se aproximar. Os outros companheiros de Sandric vieram correndo a seu socorro, assim como os escravos saíram do casarão e correram para ver o que acontecia ali.
Todos olharam para cena com uma mistura de desentendimento e medo. Sandri, incapaz de se defender ou me acusar, continuou paralisado, apenas gritando a pleno pulmões, sentindo a dor das feridas abertas em suas costas.
Ao analisar aquela estranha situação, quatro homens decidiram intervir ao socorro de seu comparsa e com demasiada cautela se aproximaram de mim, tomando cuidado de não chegar muito perto. Os abutres fecharam um círculo ao meu entorno. Creio que não sabiam ao certo se deviam me atacar. Não sabiam ao certo de forma eu me defenderia. Resolvi o impasse por eles. Observei friamente o rosto dos quatro e sorri para cada um dos bárbaros. Soltei uma gargalhada assombrosa antes de pronunciar:
— Fodam-se todos vocês. — Estalei meus dedos conjurando a magia do fogo incinerei os vikings que tentaram me acurar, bem como aquele que eu havia açoitado. Ninguém teve tempo de reagir. Estavam — para minha felicidade — todos mortos.
Alguns escravos gritaram de pavor, outros aplaudiram. A reação foi a mais diversa possível. Contudo, eu sabia que no fundo, todas aquelas pessoas estavam com me temiam.
Conforme esperado, quando tencionei a deixar aquele lugar impregnado de morte e desesperança, as pessoas que presenciaram o desfecho da minha vingança, certificaram-se de abrir o caminho para que eu passasse. Conhecia alguma delas e outras nunca sequer havia esbarrado. Escravos chegavam e partiam a todo momento, eu era uma das mais antigas dali.
— Fiquem tranquilos, não vos matarei. — Tentei olhar para cada rosto ali presente. Rostos de pessoas comuns que não mereciam ser tratados daquela forma. — Ao contrário... Eu vos libertarei. — Sorrisos começaram a se abrir pela multidão. A esperança, por mais cruel que fosse, vivia em todos os corações.
E foi esperança que eu via nos olhos de cada escravo, de cada pessoa, de cada ser humano forçado a ser menos que nada. Eu não deixaria aquela esperança morrer.
— Libertarei a todos.... Menos você! — Apontei meu dedo em direção a mulher de pele tão branca quanto a neve sob meus pés e olhos rasgados como de um felino. A escória ao menos tentou arregalar os olhos em sinal de pânico, mas não havia nada que pudesse poupá-la de seus erros.
Eu não havia me esquecido dela. Ah! Eu não me esqueceria de Sumoko, a escrava que dedurava a todos sem qualquer compaixão. A escrava que se deitava com os vikings para ter mais privilégios. A escrava que um dia me jogou nas mãos de dois homens e permitiu que eles me estuprassem. Ela era pior que os escandinavos, pior que Ragad e qualquer outro ser humano. Devia estar ao nosso lado, pois era como nós. No entanto, vendeu-se como uma mercadoria barata que facilmente é descartada. Sumoko escolheu ficar do lado errado e agora iria descobrir as consequências de sua péssima escolha.
Cravei meus olhos na mulher de longos cabelos pretos e olhos rasgados e ordenei:
— Você vem comigo.
Ela não se mexeu. Apenas permaneceu parada no meio das pessoas, devia estar amedrontada. Tomei a iniciativa por ela e usando a magia arrastei seu corpo até a mim.
— Tenho um trabalho para você e se não quiser morrer... — deixei meu tom de voz grave — Acho melhor vir comigo. — proferi bem perto do seu rosto.
A mulher rapidamente balançou a cabeça indicando que me seguiria.
Antes de deixar aquele lugar, voltei-me em direção às pessoas e anunciei:
— Quando o Jarl e seu bando vierem em busca de respostas, digam a eles que fui eu a responsável por tudo isso. Nenhum de vocês serão punidos, pois ele virá atrás de mim, apenas de mim. — Alguns assentiram em sinal de compreensão e outros permaneceram calados, como se temessem dizer algo errado.
Segui meu rumo em direção a minha casa com Sumoko aterrorizada ao meu encalço.
Eu ainda não tinha concluído meu plano, mas muito em breve colocaria um fim naquilo, e finalmente, poderia morrer em paz.
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