15 - DIVIDAS
❝Haverá sangue em suas mãos, pois até mesmo a justiça é sangrenta❞.
—𝕱𝖗𝖆𝖌𝖒𝖊𝖓𝖙𝖔𝖘 𝖉𝖔𝖘 𝕽𝖊𝖌𝖎𝖘𝖙𝖗𝖔𝖘 𝕯𝖗𝖚𝖎𝖉𝖆𝖘,
533 ɗ. Ƈ
Desde de que havia descoberto que logo morreria, fiquei pensando se eu temia a morte. E não. Cheguei à conclusão que não tinha medo de morrer. A morte, no meu entendimento, deveria ser apenas uma longa viagem rumo ao desconhecido. Não deve passar de mais uma grande aventura. Aquele tipo de aventura que todos sabem que começa quando o nosso frágil coração interrompe as batidas e um último suspiro entrecortado sai de nossos lábios. Entretanto, homem algum tem o conhecimento do que ocorre no fim dessa viagem. E creio que nunca estaremos preparados para descobrir o que há por de trás desse mistério. Isso deveria me causar medo; mas, estranhamente jamais senti medo algum além de mim.
No segundo dia após saber da minha sentença de morte, eu procurei Thorn por todo o clã. Vasculhei aquele lugar como uma pantera buscando por seu filhote ferido. No entanto, onde quer que Ragad tivesse escondido o meu "amigo", ele tinha mantido esse segredo apenas consigo, pois ninguém naquela maldita ilha sabia onde Thorn estava.
Frustrada, concluí, portanto, a minha busca fracassada na casa do Jarl . Pensei que não existia melhor lugar para esconder alguém, do que aquele nas vistas de todos, ou onde parecia ser mais vulnerável. Porém, enganei-me terrivelmente. Nada encontrei naquela casa, além do viking que dizia me amar, e que, ainda assim, lançar-me-ia nos braços da morte.
Encontrava-me no meio do seu quarto vazio, procurando algum indício do homem que poderia estar escondido, quando meu captor, sem qualquer aviso, invadiu o seu dormitório.
— Soube que está à procura de seu companheiro de trepada? — escutei a voz de Ragad à minhas costas, que fez questão de não usar o termo "amigo" ao se referir a Thorn.
Voltei meu corpo na direção de Ragad. Ele encontrava-se apoiado ao lado do batente da porta com os braços cruzados abaixo do peito.
— Deveria saber que eu não desistiria sem tentar encontrá-lo. — afirmei com frieza.
— Claro que imaginei que tentaria. Foi por esse motivo que o escondi tão bem. — Ele não sorriu, pois sabia que estávamos no meio de uma batalha sem armas.
Ficamos nos encarando por tanto tempo; tive a impressão que a eternidade tinha repousado no meio de nós. Mil palavras poderiam ser ditas. Milhões de ações poderiam ser executadas. No entanto, o monstro do silêncio foi o único a dominar o espaço entre ambos — naquele momento— inimigos mortais.
— Por que Erieanna? — Franziu o cenho e engoliu a saliva. — Por que nunca engravidou de mim? — indagou finalmente. — Sei que toma aquela maldita poção que lhe impede de engravidar... Só quero saber o motivo pelo qual se recusou a carregar um filho meu. — Seu tom de voz revelou que estava deveras magoado.
Não esperava por aquele questionamento. Mas Ragad era assim, sempre conseguia surpreender-me com seu egoísmo.
Soltei um riso baixo que mais pareceu uma bufada de alguém contrariada.
— Por que eu condenaria um filho meu a ser um prisioneiro? Diga-me Ragad... — pronunciei seu nome com escárnio. — Por que colocaria um bastardo no mundo? — Fixei meu olhar cheio de ira, no viking que eu tanto desejava matar.
— Nosso filho não seria um prisioneiro, tampouco um bastardo. Tudo teria sido diferente, se tivesse carregado um filho meu em seu ventre. — Olhou para minha barriga e depois seu olhar triste recaiu sobre meu rosto.
— Tarde demais para pensar em planos como esse. — Vagarosamente caminhei até ele e parei a poucos centímetros do seu rosto. Conjurei a minha voz mais fria sussurrei no seu ouvido:
— Nunca teria um filho seu. Jamais permitiria carregar um filho do homem que permitiu que me destruíssem. — Minhas palavras trasbordaram de ódio.
O viking ficou pasmo com a frase que saiu por meus lábios. Ele não fez movimento algum, apenas continuou imóvel enquanto eu saia daquele quarto, de dentro daquela maldita casa. Saia de sua vida e — quem sabe — do seu coração.
Ao passar pelo corredor em direção a saída, dei de cara com Lanyr. A mulher me olhou dos pés à cabeça. Seu olhar carregava uma repulsa genuína que não me abalou por nenhum mísero momento. Devolvi a viking meu sorriso mais malicioso incitando-a entender que eu e Ragad estávamos nos divertindo nos braços um do outro. O que era uma tremenda mentira.
Passamos uma do lado da outra e pude jurar que o chão tremeu sob nossos pés no momento em que nossos olhares — cheio de um ódio brutal—, encontram-se.
Infelizmente nada aconteceu. Queria que Lanyr me atacasse. Desejei apagar aquele brilho de seus olhos. Mas ela apenas passou por mim e tomou seu curso. E embora eu quisesse voltar e dilacerar a víbora viking, concentrei toda minha atenção em meus passos e obriguei-me a continuar seguindo em frente.
Não olhei para trás, porque se o fizesse, poderia queimar aquela moradia e todas as pessoas que ela abrigava; e algumas pessoas dali não mereciam a morte.
Como se o destino tivesse protegido Ragad e Lanyr de minha ira, assim que coloquei meus pés para fora da casa do Jarl, em meio aquelas pessoas que me olhavam com uma mistura de receio e desdém, encontrei um dos rostos que me assombrava em algumas terríveis noites.
Lá estava o fazendeiro, com aquela desgrenhada barba ruiva, com suas unhas impregnadas de terra e as mesmas rugas ao redor dos olhos. O homem estava negociando algumas das verduras de sua colheita por um par de botas, quando me aproximei de ambos fornecedores que trocavam argumentos fervorosos em prol de suas mercadorias. Com um sorriso em meu rosto, retirei de meu seio a moeda de prata que havia roubado de Ragad e a lancei para o sapateiro que a pegou no ar.
— Dê as botas ao homem. Ele é um fazendeiro, precisa de bons sapatos para cuidar do plantio e assim conseguir doar alguma parte de sua colheita ao povo. — Esbocei um sorriso sedutor, tornando impossível que o sapateiro negasse ao meu pedido.
Satisfeito, o homem de meia idade entregou as botas ao fazendeiro que o agradeceu e também retribuiu minha generosidade me lançando um largo sorriso.
— Eu não me esqueci de você! — Sorri de forma maliciosa assim que o sapateiro nos deixou sozinhos.
O mesmo sorriso amarelado apareceu na face do fazendeiro. Um sentimento de nojo de agitou em meu estômago fazendo com que minhas entranhas se contorcessem.
— Eu também não. Nosso breve encontro, naquela manhã gelada, deve ter sido bom para ti, já que me ajudou no dia de hoje. — Ele sorriu, e em seu olhar vi que ele deliciava ao trazer à tona a terrível lembrança do momento em que se apossou do meu corpo contra minha vontade.
Aquele dia não foi bom para mim, mas hoje será. Pensei antes de falar:
— Posso retribuir ainda mais. — falei docemente. — Está ocupado por agora? — Bati os cílios e mordi os lábios incitando o homem a me desejar.
— Para você não! — Um brilho selvagem ocupou seu olhar.
Mal sabia, o ingênuo fazendeiro, que acabará de cair na minha sedosa teia.
Peguei o caminho para aquela mesma trilha em que ele tinha me estuprado. Segui caminhando sem pressa alguma e o viking seguiu ao meu encalço. Poucos passavam por aquele trajeto que era o mais longo para o rio, por isso eu sempre o tomava. Detestava caminhar por onde os bárbaros frequentemente passavam. Rara eram as vezes em que as pessoas se aventuravam por aquele estreito caminho. Foi esse o motivo de ninguém ter me encontrado completamente violada, no meio da neve fria, apenas carregando um buraco enorme em meu corpo e alma.
Não tardou muito até que chegamos no exato ponto que em a trilha afunilava. Aquele ponto mais escondido no meio das árvores secas. O mesmo local em que o homem havia me violentado. Parei bem no meio do caminho e virei-me de modo a encarar o fazendeiro que, mais uma vez, exibiu seu sorriso amarelo ao caminhar lentamente em minha direção.
Permiti ele efetuasse alguns passos à frente, contudo, antes de fato me alcançar, levantei às mãos em um gesto que indicava "pare" e o homem ficou completamente imóvel no local. Ele não conseguia se mover para frente e nem para trás. Embora suas expressões faciais indicassem que estava lutando com afinco para escapar da força invisível que o prendia, seu esforço era absolutamente em vão. Nada o fazendeiro podia fazer para escapar de mim. Ele era minha presa.
— Já começou a recorrer suas preces para seus deuses? — indaguei com um sorriso felino em meus lábios.
— O que você é? O que está fazendo comigo? — perguntou alarmado.
Soltei uma gargalhada que se misturou com o ar frio e ecoou através da floresta gelada.
— Para você... — Fiz uma breve pausa e lancei ao homem um olhar predatório. — Eu sou a morte. — Completei num tom carregado de seriedade, fazendo com que os olhos do viking se arregalassem.
Aproximei-me do homem até que nossos rostos ficaram quase colados. Olhei em cada traço do rosto do bárbaro que um dia me fez mal, contemplei a sombra de medo primitivo que ocupou sua face e abri um largo sorriso, saboreando aquela sensação.
— Hoje acertarei minha dívida contigo. Hoje verei a vida sendo apagada de seus olhos. — Não havia qualquer traço de emoção em minha voz.
Fiz um gesto com a mão e logo o homem começou a flutuar no ar. Comecei a girar meu dedo indicador e o fazendeiro também começou a rodar vagarosamente acima do chão.
— Por favor... — implorou baixinho com a voz trêmula.
Eu o ignorei. Estava gostando daquilo, era tão bom saborear-me com seu pavor.
— Por favor... Eu tenho uma esposa e filhas que dependem de mim. — Voltou a implorar.
— Naquele maldito dia, você, nem por um curto momento, pensou na sua esposa quando estava cavado no fundo de meu corpo. — rebati furiosa.
O homem me ignorou e prosseguiu com sua súplica:
— Minha família é composta por quatro mulheres. Tenho três filhas pequenas que não darão conta de cuidar da lavoura, elas morrerão sem mim. Sobreviverão por no máximo três invernos antes que venham a morrer de fome. — Tentou convencer-me a poupar sua vida.
Morrer de fome. Aquelas palavras penetraram o vazio de meu coração. Quando morava sob o teto de Ragad, Lanyr quase me matou de fome. Passar por um inverno faminta foi a maior tortura que já senti. Ninguém merecia morrer de fome, nem mesmo a família do homem que me estuprou.
— Sua família ficará bem. Dou minha palavra. — afirmei, olhando diretamente para os olhos do fazendeiro, tentando fazer com que acreditasse em mim.
— De que vale a palavra da mulher que vai tirar o único meio de sustento de minha família? — ele rebateu com desdém.
— Nunca prometo algo que não posso cumprir. Jamais volto atrás com minha palavra. Pagarei pela segurança de suas mulheres com minha própria vida. — Soltei um suspiro e olhei para o alto. — Daqui cinco dias, Ragad irá me sacrificar. Meu último pedido ao Jarl será o de que ele proteja e não deixe faltar nada as suas mulheres. — A forma convincente com que proferi aquelas palavras, revelou que eu não estava mentindo. Eu esperava que o homem acreditasse em mim, pois minhas verdades era tudo que eu tinha a lhe oferecer.
— Promete? — sussurrou com lágrimas escorrendo pelo rosto queimado pelo Sol.
— Prometo! Nenhum fio do cabelo de suas mulheres será magoado. — assegurei com convicção.
Os lábios do homem tremeram incontrolavelmente e continuaram a tremer quando ordenou num último resquício de coragem:
— Vá em frente. Acabe com isso... Estou pronto para morrer. — Suspirou profundamente e fechou os olhos.
Permiti encará-lo por um bom tempo antes de finalmente por um ponto final naquela história. Sonhei com aquele momento por anos e a realidade foi melhor do que eu havia idealizado em minha cabeça.
Estava pronta para matá-lo, mas interrompi minhas ações quando ele começou a cantarolar baixinho. Em profundo silencio, fiquei escutando a voz do homem sair por sua boca; ele permanecia com os olhos fechados enquanto entoava uma canção a Odin.
Deixei que cantasse e não demorou muito para que aumentasse o tom de voz, na esperança de que o deus soberano de Asgard pudesse escutá-lo e vir a seu socorro... Mas para sua infelicidade, nada aconteceu. Nenhum deus veio salvá-lo, ele fora ignorado também. Eu estava pronta para enfrentar a ira dos deuses se eles viessem ao auxílio do viking. Entretanto, as egoístas divindades, recusaram mais uma prece e aquilo não me espantou.
Ninguém lutaria pelo fazendeiro. Ninguém viria ao seu socorro. Portanto, fiz o que tinha de fazer. Sem qualquer remorso, girei os punhos torcendo minha mão, e no mesmo momento, o pescoço do homem que um dia me fez mal, girou de uma forma esquisita e dolorosa. Ouviu-se último estalo e a vida deixou de existir em seu ser. Então o libertei da magia que o segurava ao ar e o seu corpo vazio se estatelou desajeitadamente no chão. Por conta do impacto, uma densa quantidade de sangue saiu de seus lábios. O modo como caiu fez parecer que tudo não passou de um terrível acidente, que ele havia tropeçado e quebrado o pescoço ao se chocar com a raiz de uma árvore. Não que alguém se importasse se eu confessasse que que tinha o matado, ninguém levar-me-ia à justiça pelo simples fato de que eu era o grande sacrifício de Ragad. Aquilo ficaria impune e apenas a minha morte me condenaria ao Helheim.
Deixei o corpo do fazendeiro naquela trilha pouco usada. Foi assim que ele me deixou quando no dia em que me estuprou: completamente sozinha, estirada do meio da neve, esperando que alguém passasse para me ajudar. Alguém que não veio.
Não senti nada quando ceifei sua vida. Nenhum sentimento se apossou de mim quando deixei aquele corpo vazio ao relento. Os vikings haviam criado um monstro cuja sede por sangue crescia a cada dia. Pouco sobrara da menina que eu era antes de ser trazida como escrava. Pouco havia sobrado de mim.
Simplesmente não temia a morte. Aprendi da pior maneira que não havia o que temer quando não há nada a perder.
Ainda existia pessoas com quem teria de acertar minhas dividas antes de partir. Eu tinha cinco dias para concluir o maior plano de todos. Não morreria sem antes deixar minha marca cravada como uma ferida no meio daquele maldito clã.
Osvikings... Os malditos vikings, jamais se esqueceriam de mim. Jamais!
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