Capítulo Três
Eu estava nua, realmente.
Naquele momento, enquanto encarava meu reflexo no espelho, as handark rastejavam pela pele oliva, serpenteando em tons de verde e laranja, buscando uma posição ideal sobre mim.
Eu, no entanto, só conseguia pensar em como o tempo passava rápido demais e que amanhã já era hoje, e logo, eu tinha um compromisso inadiável com o dever. Não que minha nudez tivesse muito a vez com isso, mas uma parte de mim definitivamente se impedia de colocar a túnica porque isso significava estar um passo mais perto daquele evento.
Suspirei, quando elas finalmente pararam, ondulando sobre os meus seios e enroscando nos braços. Pareciam agarrar minha nuca, garras circulares que encontraram e se cravaram ao maxilar rijo, as pontas brilhando como uma estrela avermelhada. Era até estranho pensar como o laranja era uma das poucas provas em mim sobre a identidade de alguém que eu sequer havia conhecido.
Dele, eu herdara o fogo e aquela cor adornando a pele, e de acordo com alguns, a personalidade agradável também...
Uma batida na porta me arrancou daquele possível início de divagação.
― Está pronta? ― a voz pertencia a Jason e eu somente lhe devolvi a minha negativa, insatisfeita.
E não era só por ter que ir a uma confraternização ridícula.
Minhas tentativas provocativas e incessantes para derrubar Frederick não haviam funcionado ― ele sentia algo por mim, certo? Eu tinha certeza de que traduzira a sensação corretamente, contudo, a dubiedade me abatera e não havia sido a toa. Era triste pensar que depois de um dia inteiro de investidas, só quando fui dormir, naquela mesma noite, que a reação dele bateu em mim como uma pedrada na cara tardia: não é pra tanto... você não é uma ótima fisionomista, e então eu entendi que estava lidando com uma droga de telepata. E ele não fazia ideia do quanto quis pular da cama para procurá-lo, onde quer que estivesse, e ceder à vontade crescente de estrangulá-lo.
Como conseguiria enganar alguém que tinha permissão ― porque eu duvidava que Kalanova tivesse o colocado ali sem a intenção de me decifrar; revolta não começava a descrever o que eu sentia ― para saber tudo o que eu pensava? Era duplamente difícil controlar o que vinha em minha mente, e eu não estava nem perto de conseguir descobrir a fraqueza de sua metade. De que modo poderia torná-los "maleáveis" (essa era a intenção no momento, porque se eles saíssem, outros viriam, de qualquer forma) sem sequer entender com plenitude o que me ajudaria nisso?
Bufei.
Desde a compreensão, eu havia tentado murar a mente, disposta a impedir Frederick de me ler assim, com tanta facilidade. Contudo, eu nunca teria certeza dos limites dos seus poderes e só me restaria especular sobre o que ele soubera ou não.
Meus olhos estavam fincados na porta ― eu nem notara ― então de volta para o espelho; por um segundo pude ver o rosto de Alafer no meu e contemplar a semelhança que tínhamos. Não era só eu que podia perceber aquilo: sempre havia alguém para me comparar a ela. Há um tempo, encarar ao meu reflexo teria sido um martírio, agora, nem tanto...
Por isso, fitei o traje. Até queria vesti-lo, não pelas razões necessárias. E sim porque era lindo e combinava perfeitamente com o meu tom de pele. Além disso, túnicas verdes me deixavam mais parecida com minha mãe. Desde que parecer com ela já não soava triste, eu amava fazê-lo, e não só porque para mim, Alafer de Landar era a criatura mais bela de toda Ambrosia. Com esse pensamento em mente, considerei a ideia de que ela não ficaria satisfeita em saber que eu estava procrastinando enquanto era esperada (era engraçado e um pouco triste agir como se ainda estivesse ali). E assim, peguei-o, enfiando-me dentro dele com todo o cuidado possível para não danificar aquele tecido tão frágil. Quando já o vestia, tratei de alisar os vincos com as mãos e me encarei no espelho; agora sim eu podia afirmar com plena certeza: a cada dia que passava eu ficava mais parecida com a minha genitora e isso era tão incrível, quanto assustador.
Tratei de ignorar qualquer outro pensamento que não fosse o de me apressar para que pudesse estar pronta a tempo e prossegui com a minha arrumação.
A tiara de folhas, antes pendurada ao lado do espelho, foi parar sobre a minha cabeça, contrastando o tom prata com o castanho do meu cabelo.
Eu mais parecia uma elemental da terra em dias de festejo.
Sorri para mim mesma, embora no meu íntimo a vontade que então veio tivesse sido de socar aquele espelho, precisar ir para a enfermaria e não ter de ir a ritual nenhum.
― Agora eu espero que esteja pronta ― sem quase nenhum aviso, a cabeça de Jason apareceu por entre o vão da porta.
Torci os lábios e fiz que sim com a cabeça.
― Então vamos. Você não quer se atrasar para encontrar com seus amigos, não é?
A palavra amigos quase me tirou do sério e tudo o que pude fazer foi suspirar, caminhando em sua direção.
Seria uma longa noite.
Até porque a verdade era que os sacerdotes no geral eram quase como uma parte estranha da família: você não precisava se afeiçoar por eles, mas tinha de conviver. E quando eu dizia que a falta da necessidade de apreço era levada a sério, em definitivo, eu não estava brincando. Dos seis futuros representantes lunares de Ambrosia, eu só conseguia admirar Helena, por sua gentileza usual; aturar Lucien, quando cavalgávamos juntos e só; e realmente gostar de Pietro, que parecia um filhote de pássaro perdido e Alafer sempre me ensinara a cuidar bem destes. Os outros três... eu não era capaz de conservar sentimentos bons, nem de todo mal, apenas uma ideia (às vezes até mais do que isso) de que eles também não gostavam tanto assim de mim.
Ao andar pelo bosque com os ahnkalov ao meu lado, eu me sentia sendo levada à forca, sem estar pronta para ser abatida. Poderia até soar exagerado, mas era o meu estado de espírito do momento. Ainda mais com o vento que batia frio sobre a fina capa e me deixava congelando; aquilo só ajudava a me fazer odiar o miakdrir.
Tentei regular minha temperatura corporal para que a gelidez não me atingisse tanto quanto estava, contudo, não conseguia me concentrar direito. Sempre que ele vinha, eu precisava fazer uso daquela habilidade que não me era tão necessária nas outras estações e por isso, ficava um tanto enferrujada nesse quesito.
― Você está bem? ― Frederick pigarreou. Olhei para trás por um segundo e vi um tipo de preocupação pairando em sua expressão facial; ignorei-a.
― Estou sim, ― menti. Na verdade, eu estava congelando, mas tratei de fazer com que o meu corpo não revelasse isso escancaradamente. E lembrei de parar de pensar sobre tal fato. ― estou ótima.
Entretanto, não pareci nada convincente, porque logo que terminei de falar, fui coberta por algo que supus ser um casaco. Era grande demais para mim e tinha cheiro de árvore ― madeira, para ser exata, e soava mais inebriante do que eu desejava que fosse. Com o ato de ousadia, parei, girando sobre os calcanhares e encarei os ahnkalov, tentando expressar meu descontentamento o máximo que pudesse.
― O que foi? ― Jason cruzou os braços, uma das sobrancelhas se ergueu bem de leve. ― Ninguém precisa ser um telepata para saber que você não vai pedir ajuda, pirralha. ― Então, virou-se na direção do companheiro e o olhou por alguns segundos, sem dizer nada; ao menos, não para mim. Assim que Frederick riu e assentiu para ele, eu entendi: sua mensagem não me dizia respeito, e eu odiava se excluída propositalmente das coisas.
― Ótimo ― sussurrei, porém, a palavra mais parecia entalada na garganta e eu definitivamente não precisava de nada disso.
Puxei o ar forçosamente para dentro dos meus pulmões e dei as coisas para os dois, ansiando pelo momento em que estaria livre de suas companhias ― o fato de Frederick ter sido "parte" de minha vida num passado nem sequer importava mais. Até a ideia de estar com os sacerdotes e sacerdotisas me soava mais interessante, naquele ponto, e foi por isso que só parei quando atingi a clareira iluminada pela parca luz do luar e as chamas ardentes da pequena fogueira em seu centro.
Virei a cabeça para trás uma última vez e vi os dois me encarando, à espera pro próximo passo. Mantive o olhar firme, estagnado, e o estômago se revirava sem dó, numa ideia que hora ou outra me ocorria quando as coisas estavam ruins ou não acabavam do jeito que eu desejava. Eles me sorriram e tudo o que eu quis antes de aceitar o que viria pela frente era abraçar a incessante vontade de buscar o colo materno no qual sentia falta sempre. Tudo que pude fazer, entretanto, foi seguir com a maré: aceitei, enfim, a "ajuda" proveniente de Jason e ajeitei pesado e fragrante casaco, removendo a capa sobre os ombros e, depois, passando os braços pelas mangas. Aquilo deve ter sido o suficiente para que eles entendessem que eu não pretendia ir ― minha resposta foram as costas de ambos, na evidente partida, sabe-se lá para onde, o que significava que não seria vigiada pelo menos ali. Suspirei com o alivio daquele breve sentimento reconfortante da liberdade; não durou muito, infelizmente.
Eles sequer me notaram ao dar um passo para me aproximar do calor do fogo, sorrindo como uma criança inocente. O som do crepitar era uma sinfonia amigável que eu tinha a sensação de ter ouvido por toda a minha vida, desde que aprendi a compreender as coisas. Criava uma falsa memória de ser embalada no colo pai que nunca conheci, amparada pelo nosso fogo ecoando ao redor do quarto. Às vezes o afeto do homem sem rosto parecia tão real que eu ficava com vontade de chorar e era mais ou menos nesse instante, que o transe terminava; dessa vez, eu ainda não estava tão envolvida assim, mas ele acabaria... Enquanto meus olhos brilhavam, flamejantes pela nostalgia, foi a minha vez de também não perceber que outras pessoas estavam ali.
O braço de Helena sobre meu ombro foi o suficiente para me acordar e desviar o foco para o que havia ali. Encarei seu sorriso amável, ainda um pouco absorta em mim e, graças a isso, sem palavras; claro que ela tinha o suficiente para nós duas.
― Kate! Tão bom te ver aqui, bem... Seu rosto está com um aspecto mais saudável, isso é ótimo ― e acariciou a minha bochecha, logo que havia se afastado um pouco para me olhar melhor. Aquilo me era um tanto incômodo, mas não me daria ao trabalho de falar e magoá-la por estar sendo uma pessoa bondosa. ― É realmente muito bom revê-la.
― Eu fico feliz por estar aqui ― devolvi, sorrindo. Às vezes, só às vezes, minhas palavras eram verdadeiras. Eu estava em um destes raros momentos.
O gesto pareceu satisfazê-la, afinal, não demorou para que me tomasse as mãos nas suas e as apertasse com uma animação palpável.
Helena era tão bela quando esbanjava felicidade que eu nem me importava em estar em sua companhia. Naquela noite, vestia uma túnica violácea magnifica, que contrastava com máxima perfeição com sua pele escura iluminada pelas chamas; ela, sim, parecia uma sacerdotisa de verdade, o resto de nós... Apenas fingidores. Uma coroa de prata com pequenas pedrinhas em tons de roxo parecia trançada em seus cabelos negros e eu suspirei, extasiada com a aura transcendental que ela tinha.
― Agora que está aqui, nós podemos começar ― mais uma vez, ela quebrou o transe e em seguida, soltou-me.
Finalmente pude contemplar a presença dos nossos companheiros de missão, um a um, em seus devidos cantos, também não tão satisfeitos em estar ali ― pelo menos alguns deles...
O primeiro olhar que senti queimar sobre mim ― e que de pronto devolvi, sem vontade alguma ― foi o de Lucien, meu safado companheiro de cavalgadas, que não conhecia a palavra "limite". Estava meio deitado sobre um tronco de árvore caído, vestindo uma túnica laranja, parecendo mais tranquilo do que de costume; ou pelo menos assim esperava. Notei que os fios escuros, quase pretos, ainda estavam compridos como sempre, batendo logo abaixo dos ombros. Enquanto torcia para que naquela noite estivesse menos cínico, ele arruinou meus anseios e sorriu, como o bom canalha que era; eu realmente tinha pena de seus seguidores.
A segunda pessoa que eu vi me encarar foi a Candice, com os seus olhos fúnebres e frios. Ela parecia uma princesa do gelo, usando uma peça azul nada simples, com cinco camadas e os cabelos soltos e cacheados. Essa eu tinha certeza que me odiava ― ela tinha inclusive sido bem enfática nessa afirmação quando éramos mais novas ―, aliás, devia odiar até a própria mãe, a infeliz que havia feito desgraça de colocá-la no mundo; definitivamente, se houvesse uma votação para saber que seria a pior sacerdotisa, ela venceria. Quando notou que eu tinha a atenção sobre sua pessoa, ergueu a taça para mim, e eu me obriguei apenas a assentir, sem vontade alguma.
Depois foi Amanda, com o seu simples traje amarelado que havia adornado com uma fita branca na cintura. Estava simples, mas linda. Ela sempre fora linda. De cabelos soltos ou presos, como estavam agora: a coroa prata emaranhada no tom lindo de chocolate trançado. Sua análise que recaia sobre mim naquele momento era impossível de ser definida, no entanto, costumava tratar os seguidores com... delicadeza, era muito inteligente, e apesar de me achar a pessoa mais inconveniente e desmerecedora, eu tinha que admitir que por um lado, ela estava certa. Mas não diria isso em voz alta.
Desviei o olhar e encontrei as chamas refletidas numa superfície vítrea.
Pietro me sorriu de maneira tímida por detrás dos óculos e eu não me contive em devolver, com um tanto de sinceridade. Ele realmente ficava lindo de anil e aqueles cabelos loiros grudados na pele dele por causa do suor... Com toda certeza, num futuro muito próximo, ele conquistaria um bocado de seguidores; agora ainda era só um menino magrelo que mal havia vivido quinze ciclos e que parecia desconfortável demais com tudo. E eu tinha certeza de que o rapaz ainda não havia alcançado todo o seu potencial.
Então, eu olhei para Caleb e ele nem ao menos mantinha contato visual comigo.
Óbvio que parecia maravilhoso, como sempre. Isso era inegável. De vermelho luxurioso (não havia quem combinasse tanto com aquela cor quanto ele) e aquele sorriso e o olhar repletos de altivez, como se fosse a coisa mais importante do mundo. Podia ser um babaca que só abria a boca para falar as coisas erradas, porém, era insuportavelmente atraente, ao menos para mim, só que por mais que sua figura me fascinasse, uma parte minha se inclinava a ideia de que não nos suportaríamos. E talvez ela estivesse certa.
Estava bebendo da sua wandar, em silêncio. Por fim, colocou as mãos sobre os cabelos loiros ou castanhos, eu sei lá; e me encarou.
Meu orgulho me falou para virar a cara e eu o fiz. E quando o observei novamente, seus olhos não estavam mais focados no meu rosto.
― Vamos beber um pouco ― Helena surgiu ao meu lado, com dois cálices nas mãos e me entregou um deles.
Pelo cheiro, era miraian, uma mistura de algumas ervas, frutas, que passava por um longo processo de fermentação e se tornava uma bebida adocicada, cuja capacidade de tornar a vida mais feliz agradava a todos. Antes que eu pudesse sorver um pouco do líquido e aproveitar a tontura leve que sempre me dava, ela pigarreou ao meu lado, atraindo para si a atenção de todos.
― Eu gostaria de brindar pelo nosso futuro ― a taça foi erguida e todos seguiram o movimento, inclusive eu. ― Alguns de nós estamos próximos de concretizá-lo, ― Seu olhar foi de Caleb, para mim, fazendo com que eu tremesse só de pensar na proximidade. ― outros, não tão perto assim, mas um dia chegaremos lá. Boa sorte a todos nós e que possamos honrar os deveres dos sacerdotes que vieram antes de nós e dos que virão depois. Ahai anai, wonteian piakheratai.
Assim que ela terminou o discurso, bebemos. O gosto doce rodopiou pela minha boca antes de traçar seu caminho pela garganta e se tornar um pouco quente.
Era uma sensação boa.
― Espero que o seu sorriso seja devido à minha presença agradabilíssima ― Lucien captou minha atenção; a alegria sumiu e deu lugar a franzida de sobrancelhas.
― Só nos seus sonhos ― soltei uma lufada de ar pelo nariz, graças a risada que não pude evitar de dar e revirei meus olhos, provando um pouco mais do miraian.
― Duvido. Por que não se senta aqui? ― e levantou-se, abrindo espaço ao seu lado.
― Não quero correr o risco de ficar grávida ― bufei. Algumas risadinhas abafadas acompanharam minha reação nada amigável.
Eu sequer me preocupei em saber quem havia rido.
― Eu não sou tão ruim assim ― ele parecia se divertir e logo estava fazendo biquinho, como se fosse uma coisa adorável que ninguém pudesse resistir.
― Não, meu bem... você é pior ― Candice murmurou após bebericar o conteúdo de seu cálice. O sorriso amável como sempre...
Não tinha saco para aturar Lucien sendo Lucien, ao menos não naquela noite e com isso, caminhei até onde Pietro estava sentado. No espacinho ao seu lado, fixei meu ponto, fitando os próprios pés descalços por alguns segundos ― estávamos todos assim, era costume antigo que considerava uma boa ideia para se conectar com a natureza. E automaticamente, com os deuses também.
A terra penetrava pelos dedos e por poucos segundos, oriunda da energia se parecia emanar do chão, correndo os calcanhares e pernas, acreditei que talvez estivessem certos, no entanto, a sensação sumiu não muito depois. Se eu tivesse herdado o dom de Alafer, talvez aquela ideia não fosse só uma ideia, e sim a minha realidade; quem sabe me ajudasse em outros assuntos...
― Eu soube que agora você anda sendo seguida ― ele me desviou a atenção para seu rosto, mal iluminado pela luz da fogueira. Tinha um sorriso fraco; ainda era tão adorável quanto quando criança. ― Os ahnkalov.
― Sim, aqueles dois idiotas ― suspirei, lembrando-me perfeitamente de ambas as figuras: Jason e seu cabelo mal cortado (que agora já não parecia mais tão ruim assim), e Frederick, que eu em definitivo ainda não entendera tão bem quando achava. ― Não creio que seja necessário eu ser perseguida como uma prisioneira.
― Já eu, acho que sim ― Amanda se aproximou de nós, do nada, e me deu praticamente um tapa na cara com suas palavras. Era ríspida em automático, quem me dera não fosse sempre assim comigo. ― Você não se importa com seus deveres de sacerdotisa. ― Agora todos naquele lugar olhavam para nós duas. ― Age como uma criança mimada e faz o que bem entende. Mas a vida não é assim; cresça.
Respirei fundo, cerrando os olhos para ela. Conseguiu me deixar furiosa, realmente.
E eu era uma bomba ambulante...
― Você acha que me...
Antes de poder sequer completar o que tinha para dizer, a mão de Helena tocou em meu ombro e um "Ei, não faz isso..." baixinho ecoou no ar ao redor de nós. Calei minha voz, sem fôlego para discutir, como se tivessem jogado água gelada na chama que me circundava. E talvez fosse isso mesmo.
― Vamos manter a paz. Isso é uma confraternização, gente ― Helena anunciou, acalmando os ânimos, como sempre. Você sabe que ela não está certa, então não perca seu tempo, pude ouvir então sua voz, mas dessa vez, não para todos, apenas dentro da minha cabeça.
E eu odiava quando ela fazia isso.
Respirei fundo e assenti, disposta a não deixar essas coisas pequenas me atingirem; não havia necessidade. No fim das contas, eu tinha de concordar que Amanda não estava certa e por isso, eu não precisava perder meu tempo.
Aliás, não perder meu tempo foi a expressão executada pelo resto da noite. Porque, caramba!, como eles estavam irritadiços e sedentos por uma discussão! Para uma pessoa com a minha paciência, ostentei um comportamento exemplar: mantive a calma impassível de alguém que não se afetava por nada. O resto dos sacerdotes, em compensação... A confraternização acabou antes do esperado ― ninguém estava alcoolizado o bastante para começar a cantar as belas canções épicas no vroisi falado antes mesmo de colonizarmos Ambrosia e ignorar a tempestade que parecia doida para se formar ―, com um momento de animosidade entre Amanda e Candice, no qual a primeira saiu bufando dali. E depois dela, foi-se sua oponente, então Pietro ― ainda devendo obediência ao toque de recolher da Academia ― e Caleb, que se disse cansado demais para continuar na clareira ao invés de em sua cama.
No fim, Helena, Lucien e eu ficamos sentados contemplando os resquícios da luz lunar e a beleza do céu estrelado daquela madrugada. Graças ao álcool, estávamos fora de nós o suficiente para conversarmos sem a hesitação que a dureza do ofício nos proporcionava; éramos só alunos rindo dos professores que menos gostávamos e brincando de trava línguas (isto e bebida não eram a melhor combinação). Tudo parecia um tanto... normal. Se é que algum dia experimentaríamos algo assim.
Com a chegada cada vez mais próxima de uma nova alvorada, também vinha a hora de terminar aquilo. Era estranho como, às vezes, eu esquecia que nem todo o grupo sacerdotal era tão detestável assim e que a presença daquele dois poderia ser até... divertida.
― Eu acho que bebi miraian demais, porque estou definitivamente sentindo que o melhor lugar para mim nesse momento é deitado no chão ― Lucien gargalhou, olhando para seu cálice e nós fizemos o mesmo, comprovando que o álcool deixava mesmo as pessoas fora de si. ― Parece que está na hora de ir para a caminha e quem sabe vomitar antes.
― Se você vai, eu te acompanharei. Você vai sozinha para o seu dormitório, ou os ahnkalov te esperam? ― Helena questionou com uma expressão extremamente safada, que, caso eu não estivesse tão... não eu, desaprovaria sem medo e com um pouquinho de irritação. Entretanto, tudo o que consegui fazer foi lhe sorrir sem qualquer pureza e dar de ombros, mostrando que não tinha certeza se sim, ou se não.
Depois que ele se foram juntos, eu tomei um segundo sentada, para recuperar meu fôlego, e apaguei o fogo que ainda crepitava à frente. Só quando tive certeza de que não cairia no chão, levantei-me com muita delicadeza e voltei para onde Frederick e Jason antes me deixaram. Eu não sei porque fiquei surpresa ao ver que eles não estavam ali e assim que uma corrente gelada me atravessou e bagunçou meus cabelos, senti que era hora de ir e que, obviamente, não havia problema algum em fazê-lo sozinha.
Os primeiros passos que dei para longe dali foram bastante cambaleantes. Não era nada fácil andar e se equilibrar quando se estava descalça e com frio. Tropecei umas duas vezes e decidi que era melhor parar e tomar um pouco de ar antes de prosseguir; coladas as costas em uma árvore, parecia que aquele dia não teria mais nada de interessante.
Foi quando eu vi.
Uma bola ardente de fogo, lá longe, aproximando-se de mim em uma velocidade crescente. O calor veio antes de eu mesmo perceber que a figura em chamas assemelhava-se a um pássaro; uma fênix. Geralmente, essas aves eram amigáveis ao redor de elementais do fogo e muitos as domesticavam, mantendo-as junto às suas famílias por gerações. Mas aquilo não era uma delas, eu notei, logo que estava perto demais. Não era apenas agressiva: era chama pura ― sem carne, ossos ou penas.
Eu sequer consegui gritar, somente arfei e me joguei ao chão, quando ela passou por mim planando em sua quentura. Um enjoo me acometeu e eu senti que iria vomitar, contudo, sufoquei o mal-estar e me foquei no que havia de importante: a localização daquilo. Ao olhar para os lados, encontrei-a à alguns metros, parada no ar; asas batendo, os olhos inexistentes vidrados em mim. Teria sido tocante se eu não estivesse bêbada, acuada e com um pouco de medo, porque aquilo significava algo; um elemental do fogo estava brincando comigo. Ou pior: me ameaçando.
Por isso, no momento em que a criatura começou a se aproximar de mim (já não tão rápido quanto antes), o medo gritou mais alto e eu finalmente tomei uma atitude. Por instinto, a transformei em nada; o fogo sumiu e os ventos gelados oriundos de todos os cantos voltaram a me sufocar.
Não só eles...
― Kate! ― ouvi alguém gritar; um ruído fora de órbita, como se não estivesse lá realmente. Só tive plena certeza de que não era fantasia ao sentir as mãos me tocando os ombros e o rosto próximo ao meu. Era Jason. ― Você está bem? O que aconteceu?
O mundo ficou normal e eu inalei o ar que precisava para conseguir me concentrar ― ao menos o máximo que desse naquele estado.
― Uma... ― pigarrei, e recomecei, numa tentativa de soar mais... não sei. ― Uma fênix. Mas não era uma fênix, era... fogo e só.
― Uou... você está com cheiro de... miraian. E muito forte ― ele afirmou, e eu já não sabia disso?, fazendo com que eu me irritasse um pouco. ― Tem certeza de que viu uma fênix assim? Pode ter sido um engano.
O encarei, buscando um pouco de certeza.
Mas tudo o que pude encontrar foi o azul celeste dos seus olhos nos meus e o seu cheiro de árvore que me lembrava um certo conforto estranhamente conhecido. Não era minha culpa ― eu estava bêbada... ― se havia algo de muito atraente naquilo e que, por mais que ele fosse um ahnkalov cuja missão era eu, a vontade de beijá-lo se tornara um sentimento explosivo e dominante. E eu nunca fui do tipo que não deixava as coisas explodirem...
Provavelmente mordi meu lábio inferior extasiada com a sensação calorosa que aquilo me trazia e ele franziu a testa bem levemente, incitando mais ainda a parte de mim que o desejava. E de algum modo, quando as handark azuladas dele se moveram, eriçadas, eu soube que Jason percebera o que estava acontecendo ali.
Pena (ou não...) que eu não lhe dera tempo sequer de contestar...
De repente, eu estava com os lábios colados aos dele, espalmando as mãos em seu rosto, sem intenção alguma de me afastar ou negar o que queria. Tão extasiada no ato que nem sequer notei o mais importante e, por isso, quando tentei enlaçar os braços ao redor do pescoço do idiota, a única coisa que recebi foi a rejeição, na forma de sua boca se afastando da minha e o olhar... Mais gélido impossível.
― O que você pensa que está fazendo? ― as pontas dos dedos tocavam meu maxilar; por um instante, um pico de eletricidade pareceu percorrer, porém eu estava abalada demais para dar a devida atenção para aquilo... Talvez devesse ter dado.
Dava para me sufocar em seu hálito, tão quente, do jeito que eu gostava. No entanto, nem isso eu teria e era uma pena.
Fiz do silêncio um melhor amigo e foi enquanto o respirava, sem saber como proceder, que um lapso de realidade me atingiu num clarão intenso: o que eu estava fazendo? Tomada por um súbito retorno de consciência, afastei-me de suas tentações insuportáveis e levantei, disposta a colocar o que acontecera para trás.
Quem dera fosse tão fácil assim.
Pé ante pé, quis me apressar o bastante para logo estar em meu quarto e colocar para fora toda a inconsequência e más decisões. Depois, esperava conseguir ter uma noite de sono boa o bastante para acordar sem me sentir como se tivesse sido jogada de um barranco; como se isso fosse acontecer...
Eu estava zonza e cansada e começando a sentir meu estomago se revirar, impiedosamente. O frio parecia cada vez pior e mesmo o casaco de Jason já não ajudava tanto: eu tinha que reaprender a controlar meu calor corporal e rápido! Quando chegamos no pequeno prédio onde se localizava o meu dormitório, eu quis gritar, tanto de alegria quanto de desespero. Faltava pouco e constatei, ao recostar na parede para tomar um ar e afastar um pouco da vontade de expelir todo aquele líquido maldito, também muitos lances de escada.
Dois andares seriam o bastante para me arruinar pelo resto da noite. E foram mesmo, porque quando alcancei o corredor repleto de portas exatamente iguais as minhas, a tontura me atingiu e tudo virou um borrão lindo: cai de joelhos, sem forças o bastante para me levantar novamente. Em suma: um desastre vergonhoso. Com um adendo, agora o enjoo soava como se não mais fosse me abandonar...
Ótimo.
― Vem ― foi a única coisa que Jason disse antes de me erguer como se eu fosse uma pluma e me carregar para dentro do quarto.
Por mais que a ideia de aninhar meu nariz em seu pescoço estivesse tomando forma em minha mente, eu a afastei o quanto antes, indisposta a soar insistente. Fechei os olhos, permitindo-me aproveitá-lo em todo o seu frescor sem arrependimentos uma última vez antes de retornar a minha condição comum. Ao senti-lo me colocar sobre o colchão que pareceu mole demais, a encanto se quebrou, impiedoso e com sua partida, veio também uma sensação já conhecida. E nada apreciada.
Antes que Jason sequer abrisse a porta a fim de partir, eu saltei da cama e corri em direção ao banheiro, caindo em frente à privada e esvaziando nela todo o conteúdo em meu estomago. Lágrimas me vieram aos olhos e quando voltei a entender o mundo ao redor, ele estava ali, ao meu lado, tentando me acalmar ― não tão bem assim, mas... ― e parecendo bem menos babaca do que era.
Eu quis beijá-lo em forma de agradecimento, porém não parecia uma ideia tão boa assim, então a única coisa que conseguir me permitir foi consentir que passasse a mão em meus cabelos e dissesse que tudo ficaria bem. Ao menos, naquele momento, era o que bastava.
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