Capítulo Doze
Meus pulmões ardiam: brasas que o frio não apagava, mas fazia queimar mais. Eu não tinha o porte físico para uma corrida em plena madrugada, muito menos no meio do miakdrir. E ainda assim, lá estava eu, o vento no meu rosto, e o medo de algo que sequer sabia o que era, só que estava ali. Só havia a certeza de que parar não era uma opção.
Então, um rastro de fogo; eu cai.
Tudo pareceu se mover, rápido demais, como um sonho distorcido.
Um sonho... um sonho... Algo fazia tic tac, embora eu não visse as horas passando e nem os ponteiros de um relógio. Aquilo que me derrubou parecia fogo, queimava como fogo, e não era fogo: uma mera ilusão. Se fosse mais do que isso, eu poderia tomar para mim e controlar... Então, um clique, o último. E mais uma vez, a fênix.
Muito maior do que da última vez, um monumento colossal de fogo e cinzas que morria e renascia incontáveis vezes na minha frente. Um ciclo repetitivo da Vida, do Destino e da Morte, a tríade que nos guiava desde o início dos tempos em um simbolismo nada discreto. E toda vez que ela morria, era em meus olhos que olhava. Como se a própria Deusa dissesse para mim que estaria sempre me observando; eu não tinha dúvidas nenhuma de que se havia algum Deus me olhando, esse Deus era a Morte.
Até que o ciclo cessou.
Antes que eu pudesse fazer qualquer coisa, uma única palavra ressoou, tal como uma canção em minha caixa craniana, e então... Eu acordei.
Cuidado.
Meus olhos se abriram. Percebi que me encontrava aquecida na segurança do quarto, isso foi constatado logo que fitei o teto branco. Um suspiro escapou dos lábios, o claro alivio de aquilo realmente ter sido só um sonho, não um momento de ira dos Deuses. A satisfação me permitiu respirar fundo, puxando o ar lentamente para dentro dos pulmões, que não queimavam, só realizavam seu trabalho sem esforço; talvez eu ainda pudesse dormir mais um pouco.
No entanto, assim que virei para o lado direito, tombei com algo que me fez tomar um susto e, em seguida, jogar meu corpo para trás; bati em outra coisa. E dessa vez, não ficou só por isso ― fui segurada por um par de braços.
― Por que você veio deitar conosco, Kate? ― Jason sussurrou com a voz embaralhada pelo sono; o hálito quente contra minha nuca.
― O que você está fazendo aqui? ― desta vez quem perguntara fora Frederick, que provavelmente despertara com minha movimentação e por causa do amigo.
Sentei e olhei para os dois, um de cada vez.
Ambos estavam sem parte das roupas pesadas que vestiam na noite anterior. Os peitorais nus e o que quer que tivesse embaixo dos lençóis... comecei a prestar atenção no delineado de suas handark: a pureza azul de Jason, e a mistura de verde e negro que ornavam em Frederick. Por alguns instantes, pensei em como eram belos em suas próprias formas, e tão rápida que veio, a ideia também partiu, cedendo seu lugar a racionalidade.
Não havia dado liberdade para aquilo, somente concordamos na noite anterior que os dois dormiriam no chão. Porém, quando me dei conta, não estávamos em minha cama e sim, aos pés dela. Na verdade, quem havia ido contra as regras era eu.
― O que eu estou fazendo aqui? ― falei alto demais algo que deveria ter sido um mero questionamento interno. Tentei começar a entender em que parte da noite eu escapulira de minha cama para encontrar conforto entre aqueles dois, mas antes que pudesse encontrar uma resposta para aquela questão, algo mais importante surgiu.
― Acho que é mais importante agora é saber: porque você está praticamente nua? ― ouvi Jason perguntar. Como reflexo daquilo, encarei meu corpo constatando a veracidade da pergunta e minha incapacidade de formular uma resposta para aquilo. Eu estava apenas vestindo as handark. ― Aliás... Você está molhada? ― Roçou então o dedo sobre as supostas gotículas de água em meu ombro nu; Freddie fez o mesmo. Sequer tive tempo de cogitar subir minha temperatura para queimá-los.
― O que você foi fazer lá fora? E quando?
Como eu iria saber? Se eles, que supostamente estavam comigo para me vigiar, não tinham notado que sai, eu que não saberia! Tentei recapitular se em algum momento eu havia acordado durante a madrugada. No entanto, só o que me lembrava era de ter deitado e dormido, mais nada. Exceto...
Era só um sonho, certo?
Dei de ombros, mirando Jason e então, Freddie. Não havia uma resposta concreta para aquela pergunta.
― Como você conseguiu sair nesse tempo, vestida assim, sem que percebêssemos? Não sente frio? ― as mãos bagunçavam os fios castanhos, mas os olhos estavam fixos em mim. Pela primeira vez, tive a percepção de que era como uma presa para Frederick, que sequer se dera ao trabalho de olhar para o companheiro ao falar com ele. ― Por que ela veio dormir conosco? Você viu algo?
― Não, nada. Talvez tenha sido pelo calor humano ― Jason zombou, dando uma risada debochada logo em seguida. Senti quando as pontas dos dedos correram pelas minhas costas; pequenas ondas de eletricidade em movimento constante que vieram tão rápido quanto se foram. Ele retesara e com um suspiro demorado, praticamente se obrigou a levantar da cama ― o que fez com que eu me questionasse se estar ali era difícil para ele. ― Acho que está na hora de irmos, Freddie. Eu vou arrumar o resto de minhas coisas e volto para te buscar, Kate.
Eles colocaram as peças de roupa que faltavam sob meu olhar atento. Antes de irem, Frederick se virou e perguntou como eu estava. Não havia nada que pudesse lhe responder além de dizer que ficaria bem; o fiz e a única coisa que recebi de resposta fora um afago infantil nos cabelos. Então, eles haviam ido embora.
Depois de me vestir apropriadamente para a ocasião, esperei sentada na cama, repassando todas as questões com que teria de lidar. Era a mesma coisa sempre, nessa época, e se eu havia sobrevivido antes, por que não agora também? Nada mudara e nada mudaria, eu só precisava passar por aquilo mais uma vez e voltar para a Academia, salva, embora talvez não sã.
Logo que o som das batidas ecoou contra a madeira ― e de quebra, expulsou os pensamentos ― dei um saltinho, assustada. No entanto, o rosto que apareceu no vão da porta não era o de Jason, e sim, o sorriso doce que Frederick reservara para mim naquela manhã. Encarei sua fronte lindamente moldada antes de lhe perguntar onde estava o companheiro; ele pareceu fazer o mesmo comigo, sem dizer nada, também, até que eu cortasse aquele silêncio. Sua única resposta foi a de que estaria encarregado de me levar até o ponto de saída e mais nada além.
Ele levou quase todas as minhas malas sem problema nenhum ― às vezes eu esquecia o quão forte era ―, enquanto me encarreguei de apenas uma. Eu sequer sabia o conteúdo delas, fora Valerie quem escolhera todas as peças que estavam ali, com a intenção de ter algo para cada momento e para emergências, supus. Encarei a mão enfaixada de Freddie e antes que chegássemos a aglomeração, segurei em seu braço, um suspiro preso na garganta ― paramos.
― Eu sinto muito pela sua mão ― sussurrei e o coração parecia que ia sufocar na garganta, desesperado.
― Eu também sinto muito pelo modo como agi. Você tem direito a ter seus segredos, todo mundo tem. Só espero que um dia consiga ser honesta e não precise fugir de mim do jeito que tem feito agora e sempre.
― Eu não estou fugindo de você ― grunhi. E era verdade: eu era a rainha das fugas, saberia se fosse isso o que estivesse fazendo. ― Eu só não quero falar sobre isso.
― Tudo bem. Eu... ― ele ergueu uma das mãos na direção do meu rosto; afastou-se antes que pudesse me tocar e eu jamais admitiria que fiquei desapontada. Provavelmente estava com medo de que alguém nos visse; um milagre, diga-se de passagem. ― Já que não vamos mais nos ver até o próximo ciclo... Ahai anai pelo seu dia e pela virada.
Achei meigo seus bons votos, mas isso passou a ser outra coisa que não diria em voz alta... Não que ele precisasse que fosse dito: sorriu, compreensivo.
Frederick então levou a mesma mão que me tocaria para a parte detrás de sua calça e do bolso, surgiu um envelope num tom escuro de vermelho. Fiquei um tanto confusa quando o colocou na palma da minha mão e abriu um outro sorriso amigável; se eu fosse de gelo, teria derretido.
"O que é isso?", questionei com o olhar e ele captou minha dúvida um tanto óbvia.
― É algo pelo seu aniversário. Você só pode abrir na data de fato, tudo bem?
Assenti, sem deixar de encarar o "presente".
Deveria abrir assim que estivesse longe o bastante dele? Bem, eu podia esperar...
― Nossa, eu adoraria poder te beijar nesse momento ― quando o mirei novamente, o olhar azul escuro jazia fixo em meus lábios, como se ele estivesse se segurando muito, mas muito mesmo, para não fazê-lo. Eu não poderia negar que o sentimento naquele instante foi o mais recíproco possível, afinal, havia algo de arrasador na expressão que ostentava; era mesmo uma pena que fossemos ficar só no querer.
Não consegui de soltar um suspiro desanimado antes de lhe dizer "obrigada e até breve, ahai anai" e oferecer a visão das minhas costas, ao caminhar em direção aos outros sacerdotes. Apenas virei para trás somente uma vez; ele já não se encontrava no mesmo lugar: estava com Jason, colocando minhas tralhas no veículo e falando com o amigo sobre algo que eu jamais saberia. Quis acenar, porém era provável que não veria o gesto, portanto tratei de ir logo para o meu lugar.
Valerie se encontrava parada ao lado do grande veículo que nos levaria ao palácio da rainha e sorriu de forma envergonhada para mim. Retribuí o sorriso, caminhando mais rápido para que pudesse chegar à ela de vez e encontrar nossos lugares juntos a Jason. Só que fui atrapalhada por uma figura um tanto mais alta do que eu, que se enfiou na minha frente, os cantos da boca erguidos de forma gentil; aquilo me soara um tanto estranho.
― Katherine, você me acompanha? ― as sobrancelhas de Caleb se levantaram. Apertei os lábios um contra o outro e virei a cabeça para o lado onde Kalanova se encontrava ao lado de Jason ― nem sinal mais de Freddie. O primeiro, assentiu sem dizer uma palavra sequer, já o outro... O modo como seu maxilar se tencionou não era nada agradável e aquele gesto me deixou um bocado confusa.
Hesitei em aceitar. Apenas hesitei.
Assim que chegamos em seu automóvel chamativo, joguei o corpo no banco do carona e bati a porta: uma parte de mim começar a buscar uma explicação para o porquê de ter me convidado para ir com ele. Tudo bem que lidar com Caleb com certeza seria mais tranquilo do que aturar a bagunça que era esse tipo de viagem ― raramente eu conseguia pegar no sono e tirar uma soneca durante aquelas horas infindáveis.
Eu definitivamente não gostava muito de socializar em momentos assim.
Observei Caleb tomar seu lugar ao meu lado, no banco do motorista. A silencio fora nosso companheiro por todo o tempo; desde que ligou o motor, até já estarmos na estrada. À frente, um mar de verde etéreo de tirar o fôlego, tão belo que era, e atrás os veículos enormes que vinham transportando o resto de nossa "comitiva".
Enquanto ele dirigia como se aquilo fosse a coisa mais fácil do mundo, eu navegava em memórias profundas. Era difícil não pensar em Frederick e no nosso passado quando a figura que eu tanto "temia" vinha até meus pensamentos. Lembrava de ser uma pirralha, ainda mais baixa do que era até então, de girar, deleitada com os flocos que caiam sobre mim. Neve fora do miakdrir era estranho, mas absolutamente encantadora e por um instante, não havia dever ou aprendizado: só uma garota tentando pegar o gelo com a boca aberta. Ainda podia ouvir a risada do elemental ecoando como uma melodia arrastada e me recordando que ele dissera que queria ver meu progresso até o fim da noite.
Ele... Eu não gostava de lembrar, contudo, a proximidade tornava tudo o mais palpável possível do meu eu de agora.
Por mim, ficaria apenas com Freddie e seu cabelo castanho claro, os olhos tão escuros que pareciam negros e a gentileza que me mostrava desde aquela época. Eu ainda era inocente e ele também, não havia uma linha imaginaria que nos dividia em protegida-protetor: apenas duas crianças (eu mais do que ele) em uma sala fechada com a neve caindo. Por causa dele, eu conheci Frederick antes dele ir para os Ahnkalov e consegui aprender a lição que queria me ensinar: eu conseguia controlar minha temperatura. Mas também, era só isso que conseguia controlar em mim...
Antes que os olhos marejados se convertessem em algo pior do que isso, respirei bem devagar, torcendo para que conseguisse mandar aquele sentimento embora. Os atolei em uma caixa, empurrando para que coubessem lá dentro, e guardei no canto mais obscuro, onde não pudesse vê-la. Se não a visse, não teria problema.
― Você deve estar se perguntando porque eu te convidei para vir comigo.
Na verdade, não.
― Sim ― menti e nem me senti mal. Sufoquei um risinho quando olhei para ele, afinal, seu perfil atraente me fez quase suspirar, e pensar que poderíamos encostar o veículo em um canto qualquer e nos divertir um bocado.
― Sua companhia me pareceu agradável, especialmente depois do progresso que fizemos essa semana, não é? ― foi perceptível quando me encarou de soslaio; só serviu pra me deixar mais confusa.
― Que progre... ― quase finalizei a pergunta, no entanto, a mente começou a processar a informação que ele tinha enviado naquele momento. As únicas que vezes que havíamos nos encontrado naquela semana foram em... ― Não... Eu esperava que aquilo tivesse sido só um sonho.
― Por que? Por que eu te vi nua? Você não precisa ter vergonha disso ― assim que deu de ombros, eu bufei, mais incomodada do que deveria estar. ― De qualquer forma, eu também te chamei porque queria falar com você, simples assim. ― Nossos olhares se cruzaram por um momento que durou muito pouco; eu tentei recordar do que havíamos conversado no "sonho", mas tudo que podia lembrar era que estava pelada e que ele havia dito algo sobre meu "corpo gostosinho". A risada que soltou tirou minha concentração. ― Para alguém que já fugiu tanto, achei que tivesse melhorado nisso. Você poderia desaparecer, porém sempre se permite ser encontrada, Katherine. Por que você foge? Por atenção?
Encolhi meu corpo no banco. O ar que tinha nos pulmões se esvaiu lentamente antes de eu decidir qual resposta daria para aquela pergunta.
― Você já esteve em qualquer outro lugar que não fosse aqui? Um outro mundo, digo ― sem perceber, estava mordendo meu lábio inferior com um tanto de força. Sua resposta foi um "não" baixinho. ― Há tanta coisa lá fora e nós estamos presos a uma vida que nos foi forçada por pessoas que jamais se dignaram a perguntar o que realmente queríamos. Mesmo com todos os luxos, conexões, somos todos prisioneiros de um dever que era de um cara ou uma mulher que já morreu há milênios.
― Você não gosta de ser uma sacerdotisa ― um sorriso de canto de boca emoldurou seu rosto e eu só pude suspirar com a afirmação dele.
― Não é questão de não gostar ― respondi. Dessa vez, não estava mentindo. ― Eu só sinto que não tenho a liberdade para parar e decidir por mim mesma que ser uma sacerdotisa é o que eu quero fazer para o resto da minha vida. Quando eu estive em Vroiss foi experimentar um gostinho da liberdade. A Terra também é incrível, mas não existe lugar como Murdoch. Essa é a verdadeira chama. ― Sorri, as chamas pequeninas lambendo as pontas dos meus dedos. Absorvi-as. ― Acho que é por isso que eu fujo. ― Omiti apenas um detalhe sobre a razão da minha primeira fuga; já havia lhe dado uma resposta boa o bastante por hora. ― Eu não espero que você entenda minhas razões, mas se eu quisesse mesmo atenção, colocava fogo na Academia.
Achei que dessa vez, assim que ele assentiu, a conversa acabaria e voltaríamos ao silêncio sepulcral costumeiro; não foi o que aconteceu.
― Você deveria ter conseguido fugir quando eu te avisei ― os dedos dele se tencionaram ao agarrar com força o volante. Perguntei o porquê, provavelmente franzindo a testa. ― Talvez não seja nada, mas às vezes eu sonho com você.
Não pude evitar parar de respirar por alguns segundos. Será que os sonhos dele envolviam nós dois fazendo coisas safadas? Eu sinceramente esperava que sim. Como não falei nada, Caleb deve ter achado que era um sinal para que continuasse. E nada me faria pará-lo naquele momento.
― Nós estamos em uma floresta, ou algo do tipo ― na verdade eu acredito que seja o bosque da Academia, mas isso não é importante ―, enfim, eu estou correndo pela floresta, até então sozinho e descalço, e está nevando cinza. É quando eu te escuto gritando meu nome e eu sigo o som até te encontrar, histérica, em um círculo de fogo. Eu tento ir até você, mas as chamas me atrapalham. Então, você fica em silêncio, me olhando fixamente, e eu acordo. ― ele engoliu a seco e prosseguiu. ― O outro é simples. Eu acordo com batidas na minha porta e quando a abro, não tem ninguém além de um rastro de fogo que vai até o lado de fora do meu dormitório. Você está parada lá, de costas, vestida em um tecido preto, meio translucido que deixa a mostra suas handark verde e laranja. Do nada você vira para mim, como se soubesse que eu estava ali. Seus olhos queimam um fogo alaranjado e você entra em combustão até se tornar uma fênix, que vai direto para cima de mim. O sonho acaba nisso.
No instante em que ele dissera a palavra "fênix", meu estômago se revirou de um modo que dizia "sorte sua por não comido nada". Então houve um clique e suas palavras ecoando em círculos: uma fênix que vai direto para cima de mim uma fênix que vai direto para cima de mim uma fênix que vai direto para cima de mim uma fênix que vai direto para cima de mim. Vasculhei nas memórias guardadas profundamente por pedaços de memórias e me senti bêbada, mais uma vez, andando sozinha pelo bosque da Academia... Uma bola de fogo voando louca em minha direção.
Mas eu estava bêbada e coisas que vemos bêbados, não podem ser confiáveis...
Além disso, o meu sonho. Naquela mesma noite. Não poderia ter ligação, certo? Bem, talvez não, afinal, a fênix dele era eu...
― Você acha que os sonhos podem ser alguma mensagem dos deuses? ― questionei e seu maxilar se trincou; ele devia realmente esperar que não.
― Não sei, mas... Eu não descartaria. Desde que eu tenho tido esses sonhos, a vibração do ar na Academia parece um tanto fora do comum ― Caleb deu de ombros e olhou para mim por menos de dois segundos. ― Você também é uma elemental; consegue sentir isso, não? Algo está acontecendo e isso... me assusta.
Sua admissão me fez encará-lo com o máximo de afinco possível. O modo como os lábios se apertaram despertou em mim a vontade de envolvê-lo em meus braços, oferecer um pouco de conforto. Só que não o fiz, desviando o olhar para a janela e tentando juntar algumas peças que não queriam se encaixar de forma alguma.
Eu não lembrava de sentir nada, mas será que ele estava correto? E se estivesse, isso poderia ter algo a ver com a partida de Peter? Afinal, eu nunca recebi nenhuma explicação sequer do porquê ele havia ido embora. Ninguém decide ir para a Academia Ahnkalov sem nenhuma razão. Estaria ele se preparando para o que Caleb temia? Se fosse isso, então, deveria ser algo sério e eu realmente esperava que não fosse. Ainda que por um lado eu esperava que Peter tivesse um motivo real para me abandonar, minha cabeça dizia que nada iria acontecer e que tudo aquilo eram apenas sonhos de Caleb.
Contudo, talvez não fossem.
― Você acha que se algo importante estivesse acontecendo... ― limpei a garganta, sentindo tanta vergonha quanto era possível para mim. ― seria um motivo válido para que Peter tivesse partido?
― Só se ele soubesse o que estava acontecendo ― seu olhar permaneceu na estrada dessa vez e eu contive um suspiro com sua resposta.
― Ele me contaria ― a ideia daquela possibilidade me irritou profundamente, a ponto de me fazer repetir as palavras dentro de minha própria cabeça, incontáveis vezes: ele me contaria.
― E se fosse para te proteger? Acha que ele contaria? Ou fugiria antes que você o "obrigasse" a falar? Sei que tem métodos bem persuasivos.
Selei meus lábios pelo resto da viagem.
Eu não queria sequer pensar na possibilidade de Peter ter fugido como uma forma de me proteger; isso significaria que eu já não poderia sentir tanta raiva dele quando sentia, afinal, fazer aquilo por mim poderia mudar muita coisa. E naquele momento, ela era um bom anestésico para dor.
A chegada foi um tanto cansativa ― tudo que eu queria e pretendia fazer era deitar e dormir, mas não. Depois de nos instalarmos nos nossos quartos designados, as funcionárias do palácio nos arrastaram para basicamente um banquete, supondo que estaríamos mortos de fome. Bem, "estávamos", no sentido de: a maioria dos que estavam ali comeram como se não houvesse amanhã. Somente eu e o consorte de Helena, Chris, nos saciamos com pouco, desistimos logo e apenas observamos os outros.
Passados dez minutos sem tocar na comida, resolvi fazer o que tanto merecia e fui para o quarto, dormir na enorme cama de dossel que há alguns anos havia sido... minha. Eu não iria admitir, entretanto, às vezes sentia saudades daquele cômodo e do tempo que que vivia com Alafer ali. Por isso, não me contive e chorei ― apenas um pouquinho ― antes de finalmente apagar naquele fim de tarde. Só acordei na manhã seguinte, quando o sol começou a entrar pelas frestas da cortina, o que significava que eu tinha dormido entardecer inteiro e a noite também.
Ou será que eu havia dormido dois dias seguidos e já era meu aniversário?
Realmente esperava que não fosse. Afinal, essa era uma data que minha mãe fazia questão de transformar em algo muito especial e desde que ela, infelizmente, morrera e passara a ser apenas uma visita ocasional na minha vida, não tinha mais sentido me alegrar.
Decidi que não me preocuparia em saber a data; pulei para fora da cama e supus que haveria trajes de montaria dentro do guarda-roupa. Claro que estava certa: ao lado de um vestido verde, cuja textura parecia perolizada, se encontrava a roupa tradicional para cavalgadas usada por nós desde que os mundos haviam se formado. Vesti-a sem problemas ― a costureira de Elai ainda era mestre em adivinhar minhas medidas exatas ― e corri para fora do palácio, em direção aos estábulos, onde uma das éguas sem graça que haviam ali me apeteceria por hora.
Mas aparentemente eu não era a única que havia resolvido montar logo que o sol aparecera no horizonte...
― Kate ― Lucien também vestia as roupas tradicionais que provavelmente estavam em seu armário. Sorrindo de leve, se aproximou de mim, embora mantivesse o silêncio como seu escudo protetor; quando percebi que ninguém falaria nada, afastei-me.
Ele pareceu perder a alegria na hora e suspirou, antes de terminar de selar uma das éguas. Subiu nela e bateu com os calcanhares em sua barriga, fazendo com que assim, ambos corressem para bem longe de mim.
Talvez eu devesse ter dito algo ao invés de sair de perto dele, foi a primeira coisa que pensei. E ainda assim, decidi que havia sido melhor não. Minha moral não estava boa e eu não queria contaminá-lo com o clima estranho.
De qualquer forma, escolhi a égua que parecia mais sagaz entre todas ali e ainda que um senhor tivesse me oferecido ajuda para arrumá-la, eu o fiz sozinha. Logo que estávamos prontas, segui para o caminho que Lucien tomara, disposta a colocar a estranheza para trás e ser um pouco mais gentil com a única pessoa que levantava cedo para cavalgar, além de mim.
Nós éramos mais parecidos do que se podia imaginar.
E foi por isso que eu não me surpreendi quando a figura de cabelos negros espalhados pelo vento surgiu atrás de mim gargalhando como a criança que era.
― Você veio me procurar ― ele disse, no momento seguinte ao que ambos desaceleramos. O sorriso que tinha parecia querer rasgar seu rosto ― não seria eu a tirá-lo dali.
― Nós não nos falamos esses dias. O que Kalanova disse a você? Qual sua punição? ― perguntei a espera de que não fosse a única com quem ele teria uma conversa.
― Ele supôs que você tivesse me arrastado consigo para aquela fuga ― claro que supôs, quase rosnei. Mas Lucien pareceu não ter notado. ― Só que eu disse a verdade. Que fui eu quem correu atrás de você e se prontificou a ser sua companhia naquela viagem. ― E riu. ― Agora eu vou ter que limpar os estábulos diariamente por uns quinze dias pelo menos. E você? Qual sua nova punição? Não tem como ser algo pior do que os Ahnkalov.
― Ele quer conversar comigo.
― Sobre? ― sua testa se franziu, parecendo estar um bocado confuso.
― Não sei. Algo meloso envolvendo sentimentos, a morte de Alafer e coisas assim. Eu preferiria limpar os estábulos, quer trocar comigo? ― sorri para ele e revirei os olhos. Ficar perto do cocô dos cavalos seria melhor do que conversar com Kalanova.
― Talvez seja bom falar sobre essas coisas ― os ombros se levantaram; ele parecia envergonhado ou com medo de dizer algo. ― Você nunca falou com ninguém sobre isso. Talvez... conversar com Kalanova te ajude.
― Eu falei com alguém sobre isso. Eu falei com Peter ― meus dedos apertaram a guia, enquanto a memória de nós dois chorando juntos invadia meus pensamentos. O abraço dele, as carícias... tudo era acolhedor para mim. Era como estar em casa. E agora a porta estava trancada, as fechaduras trocadas e eu fiquei do lado de fora.
― Peter não está mais aqui ― Lucien afirmou e eu senti como se tivessem jogado um balde de água gelada sobre a minha cabeça. Não era culpa dele, tudo bem, contudo...
Qual era a necessidade de trazer isso à tona do modo que mais me irritaria?
― Pois é, agora eu também não.
Sem nem pestanejar, fiz com que a égua corresse e então, levantasse voo, afastando-me cada vez mais do rapaz que havia conseguido me irritar amargamente. Observei tudo ficando menor, as árvores a se tornarem um borrão verde em contraste com o esbranquiçado da neve no chão e o frio aumentando gradualmente a medida que eu alcançava maior altitude. Quando o ar começou a ficar rarefeito e quase impossível de se respirar, decidimos (mais a égua do que eu) descer um bocado. Acariciei sua crina, sentindo a maciez negra de seu pelo brilhante. Nós sobrevoamos sobre a copa das árvores por alguns minutos e eu aproveitei o vento congelante que batia em minha pele. Naquele lugar repleto de memórias, não me surpreendi que quase pudesse sentir Alafer planando ao meu lado com seu alazão cor de terra. Por um instante uma alegria infantil me invadiu e uma gargalhada me rasgou garganta sem dó.
O sentimento pareceu ser contagiante, porque minha companheira naquela manhã relinchou em um som que quase imitava a risada que soltara antes.
O passeio deve ter durado pelo menos mais uma hora e assim que pousamos perto dos estábulos, Valerie me esperava com um sorriso doce nos lábios. Ao lado dela, sério, estava Jason e os olhos azuis fixos em mim.
― Nós viemos buscá-la ― ele nem permitiu que a ruiva dissesse uma palavra. Gentil, não? Apenas questionei o porquê e puxei a égua para dentro do estábulo. Comecei a despi-la das vestes pesadas, uma a uma. ― Amanhã é seu aniversário. E embora a rainha já tenha preparado tudo, ela selecionou alguns carigian para você decidir qual irá vestir. Nós vamos fazer isso agora. ― Valerie se aproximou e me ajudou a tirar o arreio.
― E ele? Veio fazer o que? ― indiquei o ahnkalov com a cabeça.
― Vim para o caso de você se recusar a ir e tentar se esconder em algum buraco como a menininha medrosa que é.
Segurei no peito a vontade de pular em cima dele e carbonizar seu corpo de uma forma extremamente desagradável. Eu podia me controlar. E foi por isso que apenas me limitei a lhe oferecer um sorriso condescendente, resposta à altura do seu.
― Não vai ser necessário ― sem desfazê-lo, apertei os olhos em sua direção.
Quem me dera que eu tivesse dormido por três dias seguidos, assim, perderia o momento desanimador que era para ser o meu aniversário.
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