Capítulo Dezesseis
Olhos laranja.
Como os de Éden.
Deixei o fogo se apagar dentro de mim e com uma última encarada em Lucien, corri para bem longe; havia uma pessoa a quem eu precisava encontrar naquele momento.
As botas afundavam na neve até quase os meus tornozelos, dificultando um pouco a parte de correr, mas não seria isso que me impediria. Durante o percurso, não chorei, embora estivesse bem perto disso ― e se o fizesse, também, poderia dizer que havia sido o vento gelado que ressecou minha vista.
De qualquer forma, eu não poderia parar. Parar seria permitir que a ideia bizarra que tentava me invadir finalmente conseguisse e eu não queria sofrer por antecipação.
Escorreguei no gelo da calçada de pedra que contornava o palácio e bati de costas, com o ombro esquerdo no chão. Se eu começasse a chorar, poderia simplesmente dizer que era graças a dor terrível que iniciava a sua propagação pela área. Mas eu jamais conseguiria mentir para mim mesma e me sentiria mal, muito mal. Por isso, tudo que pude fazer foi permanecer como estava, deitada e fechar os meus olhos, esperando pegar uma hipotermia e morrer, porque era essa a vontade que o pensamento horrível me dava.
Eu negaria o fogo, o elemento daquele que poderia ser meu pai e permitiria que o gelo me trouxesse o acalento da morte. Eu preferiria morrer a isso ser uma verdade; até mesmo uma possibilidade. Agora eu esperava que ela não desviasse de mim, que viesse e me levasse para perto de Alafer, como era para ter sido há muito tempo.
E com esse pensamento, fechei os olhos.
Quando acordei, estava deitada em minha cama, no quarto do palácio que me foi designado. Ao meu lado, Jason estava sentado, lendo o mesmo livro de leis que tinha em mãos no primeiro dia em que nos conhecemos. Uma sensação de dejavu veio na hora e foi mais rápido ainda ao notar que não havia nada de Freddie: apenas uma pessoa loira, um tanto alta demais que se encontrava de pé, parada em frente à janela aberta, olhando através dela com bastante concentração.
― Ela acordou ― Jason disse, provavelmente me observando, mas nem me dei ao trabalho de encará-lo, estava concentrada demais em Donovan para isso. Ele se virou e passou a me fitar também. ― Você bateu com a cabeça?
Neguei e subitamente me dei conta de que talvez meus olhos ainda estivessem daquela cor maldita. Saltei da cama, buscando pelo espelho que havia em uma penteadeira do outro lado do quarto ― para o meu alivio, eram verdes como os de Alafer.
― Eu preciso falar à sós com o Donovan ― falei e acabei chocando ambos. Jason, porque talvez tivesse sido incisiva e séria demais e o outro... Bem, eu havia dito que não falaria mais com ele e até então, tinha cumprido a promessa.
Contudo, aquela não era a hora para o meu silêncio.
Assim que Jason saiu e fechou a porta do quarto, nos deixando sozinhos, Donovan sentou na cadeira que antes o outro ocupava. Esperei até que o ahnkalov talvez tivesse se afastado o bastante para liberar os pensamentos que me assustavam.
E se em algum momento bizarro do nosso universo Éden tivesse sido honesto pela primeira vez em sua vida? E se ele realmente fosse metade do DNA que eu carrego no corpo? Isso significaria que Alafer, minha mãe, em algum momento, tinha amado ou não, ele; tinha ficado com aquele homem horrível. Não era possível, certo?
Ele estava apenas tentando me atingir, só podia ser isso. Ou não?
― Você é meu pai? Quem é meu pai? ― atirei, sem piscar os olhos. Estava fixo nos dele, até que me respondesse algo. ― Pelo bem da minha sanidade, por favor, me diz.
A expressão que ostentou na face foi exatamente idêntica a de quando eu fizera a mesma pergunta da outra vez, parecia uma viagem no tempo. Havia uma pitada de pena, um pouco pesar e a clara evidência de que não diria nada, o que só se confirmou quando respondeu: ― Eu prometi à sua mãe.
Éden tinha um ponto. Todos estavam mentindo para mim: Donovan, Kalanova e qualquer um que em algum momento talvez tivesse dito que ou não sabia, ou não poderia contar; se ele estava certo nisso, quem iria me garantir que não poderia estar em outras coisas também?
Não!, a ideia de que ele poderia ser meu pai me fazer querer vomitar. Além disso, ele sabia como iludir as pessoas: era uma de suas melhores habilidades. Porém, se eu tinha tanta certeza de que era uma mentira, porque precisava tanto que o guerreiro ao meu lado pudesse negá-la para mim?
Provável que jamais pudesse responder tal pergunta.
― Tudo bem, então. ― eu já estava respirando pesadamente. Meu coração batia descompassado de um modo que fez eu sentir como se ele fosse parar a qualquer momento. ― Mas pelo menos me diz que não é ele. Que ele não pode ser meu pai. ― As palavras começaram a se enrolar na minha língua e eu tremia, como tremia...
― De quem você está falando? ― o guerreiro encostou em meu ombro ― um toque zeloso e suave ― e a realidade voltou; eu estava calada, os olhos marejados e a respiração fraca e falhada.
― Do Éden ― sussurrei como uma garotinha, com medo de que alguém além dele pudesse escutar aquela blasfêmia.
Donovan franziu o cenho, antes de inflar de raiva.
― Quem te disse isso? ― a veia em seu pescoço pulsava, parecia ter vida própria. Ele saltou da cadeira e se aproximou da cama, visivelmente preocupado e eu rezei aos deuses para que ele, de todas as pessoas, fosse meu pai e que só não tivesse dito isso porque minha mãe o obrigara.
― Não importa! ― uma lágrima escorreu e rapidamente a sequei. ― Só importa se é ou não verdade. Ele não é o meu pai, né?
Ele pareceu ponderar por alguns segundos, e eu tive medo, muito medo. Quase tanto medo quanto o que senti ao estar na presença daquele assassino.
― Não. Ele não é seu pai ― sua resposta me aliviou. Aquele era Donovan, eu podia confiar nele, certo? Fiz menção em falar algo, no entanto, ele foi bem mais rápido. ― E eu também não. Gostaria de ser, mas não sou. Eu amava sua mãe, só não desse jeito.
Assenti. Pelo menos agora eu podia ter certeza.
― E o que você sabe sobre o meu pai verdadeiro? Eu não preciso de um nome, eu só quero saber de algo.
Algo que me faça ter certeza absoluta de que ele não era um monstro, pelo menos.
Ele sentou, respirou e cruzou os braços; as costas bateram na poltrona. Tinha uma expressão pensadora que me fez querer rir. Só que eu ainda não estava no clima para fazê-lo; não ainda.
― Bem, eu não o conhecia porque naquela época eu tinha ido me tornar um guerreiro, mas Alafer dizia que ele era corajoso e persistente. O modo que ela falava dele era admirável, de certa forma. Sua mãe sempre o amou muito ― seu sorriso me lembrou da minha infância e de suas visitas. Era estranho ver o quanto ele parecia mais velho. ― Eu realmente não o conhecia. E eu não acho que um dia você vá conhecê-lo, porque esse homem morreu pouco antes de você nascer.
― Obrigada ― suspirei.
Pelo menos agora eu sabia que meu pai verdadeiro realmente estava morto; Alafer tinha variações das respostas sobre ele e agora havia a certeza de que uma delas era a correta: aquele homem estava morto. Talvez por isso detestasse falar sobre meu genitor, provavelmente porque a perda havia sido terrível. Eu não a culpava por isso, em mim crescia uma noção de compreensão: falar sobre alguém amado que havia partido era algo doloroso e na maioria das vezes, ficar calado fazia doer menos.
Donovan disse que precisava encontrar Elai e se despediu com um afago em meus cabelos, como se eu ainda fosse uma criança: talvez naquele momento, sim. Apenas um tempo depois que havia batido a porta, eu me perguntei porque ele estava ali quando acordei, mas já havia partido e eu não estava com ânimo para correr atrás. Jason entrou poucos segundos depois e percebi que ele poderia me dar uma resposta, por isso, questionei sobre seu superior. E sua resposta me fez engolir a seco.
― Quando te encontrei, finalmente, você estava falando nome dele. Eu o chamei.
Ele nem pediu permissão e foi deitando ao meu lado na cama. Seu cheiro era agradável e eu cogitei me aproximar para aproveitá-lo.
― Tiveram uma boa conversa? ― ele perguntou, de olhos já fechados. Aparentemente, minha cama era um bom lugar para um cochilo.
― Esclarecedora. Você disse que tinha me encontrado "finalmente". O que isso quer dizer? ― empurrei seu ombro, para que abrisse os olhos e me olhasse. Ele tomou uns dois segundos para pensar antes de responder: ― Sua tia quer que você a acompanhe para uma refeição. Mais ou menos... agora.
Mal tive tempo de me trocar ― com Jason observando cada movimento meu ― e corremos para a ala onde ela estava instalada. Eu teria me perdido completamente sem querer pelo bosque sagrado com muito gosto, pena que o ahnkalov anteviu meu anseio e fez questão de me escoltar até a antessala que dava para seus cômodos. Se eu não estivesse certa de que não funcionaria, teria tentado chantageá-lo de alguma maneira (sexualmente, creio eu). Entretanto, tudo o que me limitei a fazer foi encará-lo com um suspiro e empurrar a única porta que me separava de Irina, para então, adentrar a saleta.
Ela dominava o ambiente com sua presença impactante em um vestido esmeralda acompanhado de um cálice nas mãos; parecia sentir a brisa que entrava pela sacada e de uma forma estranha, fez lembrar de mim no dia do jantar. Antes de se virar na minha direção, suspirou, com um ar ligeiramente calmo, o qual o atribui ao fato de que já devia estar bebendo há algum tempo. Seu olhar nem um pouco com o de Alafer ― e meu também ―, mas era inegável a semelhança que nós três compartilhávamos. Um sorrisinho escapou dos lábios e o olhar seguiu de mim para a taça que se encontrava sobre a mesa: um convite; não hesitei nem por um segundo em aceitá-lo e tomá-la para mim.
Um gole daquela bebida forte e quase engasguei ― minha tia era louca de achar que eu conseguiria beber como ela.
― Sinto muito por não termos tido a oportunidade de conversar de forma apropriada ― ela iniciou seu discurso e eu engasguei com uma risada, pensando em como Irina realmente não sentia muito... Seu olhar endureceu. ―, mas infelizmente, semanas de festividades são as mais ocupadas do período para os Sacerdotes. Tem sido difícil separar um tempo para questões familiares, espero que você possa compreender. Você estava muito bem no seu dia.
Questões familiares, ela realmente sabia usar as palavras certas para me irritar.
Devolvi o mesmo sorriso que ela me oferecera antes.
― Obrigada. Você não precisava se preocupar, sério. Não tem problema nenhum se não puder lidar com suas... questões familiares. Continue fazendo esse ótimo trabalho e está tudo certo.
Se tinha uma coisa que eu sabia de Irina, é que ela odiava quando eu demonstrava qualquer tipo de insolência. Era uma pena que acreditasse que eu devia respeito a ela. Só que não dessa vez, por incrível que pudesse parecer.
― Mas eu me preocupo. Eu sou sua tia ― e sorveu um pouco da bebida, caminhando para o lado esquerdo (ao menos o meu) da mesa. ― e nós somos uma família. Somos tudo o que restou de uma longa linhagem de Sacerdotes e Sacerdotisas de Landar. Eu e você. Lembre-se disso.
― Difícil não lembrar ― imitei seu ato e então, ambas colocamos nossas taças sobre a mesa. ― O que vamos comer?
Pelo menos de boca cheia nós poderíamos ter uma desculpa para evitar qualquer conversa durante aquele tempo detestável.
Assim que sentamos em nossos lugares, o assunto morreu (para minha alegria) e nos focamos apenas em comer o que se encontrava sobre a bandeja de prata e sob sua tampa. Pelo menos Irina conhecia minhas preferências alimentícias e, por isso, eu sempre podia esperar algo de muito bom, como era o caso...
Nós tomamos praticamente meia hora de silêncio e quando ambas havíamos terminado de almoçar, eu fiz menção em me despedir. Mas não. Aquele momento não teria seu fim porque comer juntas não era o bastante para minha tia.
― Você já é grande o bastante para tomar uma taça de fahknaer comigo ― ela disse, ao se levantar e caminhar em direção a um jarro no canto da sala. Eu fiquei parada, observando Irina colocar aquela bebida levemente cremosa e arroxeada em duas tacinhas pequenas. ― Sua mãe adorava isso. ― Eu realmente não conseguia entender porque. Então, riu, como se estivesse recordando de algo. Mas se realmente o fazia, não tinha qualquer intenção de compartilhar comigo. ― Suponho que nunca tenha tomado, não é? Pelo que me lembro, Alafer queria que você bebesse pela primeira vez com ela, na sua consagração de dezenove. Mas isso foi no ciclo passado.
― É... Era algo que ela queria fazer comigo quando eu tivesse idade ― Menti e senti meu corpo endurecer pela tensão; minha tia sempre falava de uma maneira que dava a entender que conhecia minha mãe muito bem, que tinham... intimidade.
― Bem, a tradição está um pouco atrasada, mas... ― ergueu a taça em minha direção e eu a peguei sem qualquer vontade. Seu olhar pareceu enevoar por um segundo... ― Você parece tanto com ela. Isso é bom.
Apertei meus olhos, enquanto tratava de beber pela segunda vez aquele líquido estranho e com um sabor amargo demais. Tomei apenas um gole, e Irina me acompanhou, sem desviar seu olhar obscuro de mim por um segundo sequer.
― O que você quer dizer com "isso é bom"?
― Que eu fico feliz por isso. Por você ter saído a ela, e não a alguém a quem nós nem ao menos sabemos quem é.
― Você não sabe quem era ele? ― perguntei, descrente e levemente irônica. ― Logo você, Irina? Achei que eram irmãs.
Ela me encarou por longos dez segundos.
― Pode não parecer verdade para você, Katherine, mas eu e minha irmã éramos muito unidas, principalmente na infância. E eu a amava muito ― seu olhar então, voltou à frieza que eu tanto conhecia; ela era glacial, imbatível. E eu a detestava...
― Não... Não. ― rosnei. ― Você nunca gostou da minha mãe. Seu afeto só é direcionado ao poder, titia querida ― Eu estava sendo mais ácida do que o normal; e queria.
Apenas pensar no longo e duro silêncio que Irina conteve diante da notícia da morte de Alafer, antes de soltar aquela maldita pergunta me dava vontade de vomitar. Que tipo de pessoa ― ao saber que sua irmã mais velha acaba de morrer ― tem o interesse imediato em descobrir quem irá lhe substituir em suas funções?
Somente aquela que então torcia os lábios ― a genética de meu avô, toda para ela... ― em provável desaprovação às minhas gentis palavras.
― Talvez devesse passar menos tempo vadiando e mais procurando saber quantas montanhas eu não movi para que você pudesse desfrutar da sua liberdade por um período maior do que o previsto. Se não fosse por mim, sua infância seria corrompida e esfarelada pelo conselho das anciãs, que a colocariam como a Sacerdotisa de Landar sem preparação alguma e ainda sofrendo pela morte dela.
Suas palavras pareciam tão verdadeiras... Embora a maior parte de meu corpo ainda tomasse a recusa como o caminho a ser traçado.
Não queria lhe pedir desculpas, pois o meu orgulho jamais permitiria que eu admitisse que, talvez, estivesse errada em relação à minha tia. Mesmo que ela estivesse sendo sincera, o capricho em mim negaria até a morte perdoá-la por não ter sido caridosa comigo e ido em meu quarto, para me abraçar e dizer que tudo ficaria bem. Afinal, como sangue do meu sangue ela deveria ter sido solidária à minha dor e me consolado o tempo que precisasse.
Era possível que a minha parte criança tivesse partido junto à todas as lágrimas que chorei por minha mãe. Até por que, demorei tantos meses para reencontrá-la em Lancart que tive tempo o bastante para me corromper e esfarelar, da forma que Irina "pretendia" impedir.
A vida era mesmo muito irônica...
Encarei-a uma última vez antes de colocar minha taça sobre a mesa e voar para fora da saleta, sem nem ao menos ter a decência ― como ela diria ― de me despedir. Enquanto eu caminhava para longe de Irina, podia sentir aqueles olhos colados em minhas costas e as palavras sobre Alafer, impregnadas em minha mente.
O clima nada ameno lá fora refletia a sensação do frio inescrupuloso que começava a se instalar em mim. Eu era uma criança do fogo, nascida no gelo, como dizia minha mãe durante a minha tão breve infância. O Miakdrir era a época mais fria que tínhamos, de todas as cinco, e fora a que me recebera ao mundo, durante uma nevasca insuportável há exatos vinte ciclos e um dia. Agora, a neve nem estava tão alta quanto antigamente; o fim iminente da temporada começava a fazer com que a temperatura ascendesse, ainda que estivesse muito gelado.
Quando eu era mais nova, odiava a proximidade do meu aniversário e com ele a densa e insuportável camada de gelo que ele trazia. Logo eu, que sempre fui tão quente, era amaldiçoada com a ideia de que o mundo estava se tornando menos acolhedor para mim. Mas um dia, Donovan, ao me ver emburrada mais uma vez, olhando pela janela de meu quarto na Academia, me ensinou que nós tínhamos um dom e que poderíamos transformar todo aquele frio espectral em calor. Era assim que também começava minha história com Frederick. Naquela época, eu estava mostrando os primeiros sinais de que domava o fogo ― eu havia chegado na idade de iniciar os experimentos com minhas habilidades ―, conseguindo apagar chamas já existentes ou expandi-las, no entanto, ainda não era capaz de criá-lo.
Foi Donovan quem me ensinou.
Nós treinamos durante semanas, até minhas mãos doerem por ficarem tanto tempo sob a neve maldita. Até que minha mãe brigasse com um de seus poucos amigos verdadeiros. Até que o miakdrir tivesse quase terminado. Só que ele não desistiu, mesmo arriscando ser morto pela minha furiosa e protetora mãe; então, eu também não desisti.
Talvez tivesse sido a dor meu maior motivador, nunca tive plena certeza. A única coisa que eu sabia era que, assim que as volumosas lágrimas infantis caíram na manta branca na qual eu estava sentada, um barulho semelhante ao sibilar ecoou bem baixinho. Depois disso, minha trilha para o controle verdadeiro do fogo estava inaugurada e Donovan, partira em uma missão desconhecida. Ainda que a estação fria tivesse acabado, eu mantive o treinamento sozinha durante as outras três que sucederam, usando meios alguns criativos como substituto para a neve. Tal como um aluno mais velho que tinha pleno controle do elemento gelo e criava tempestades dentro de salas vazias da Academia; agora um guerreiro também. Ou nos dias em que ele não se dispunha, os depósitos de alimento, onde eu geralmente acabava presa e quase morta de hipotermia quando era encontrada.
Ate o início da temporada que antecedia o miakdrir: eu finalmente dominara o fogo existente dentro de mim. E graças ao árduo treinamento que Donovan me passara ― eu era muito agradecida a ele por isso ― podia tirar meus sapatos desconfortáveis em um dia de neve e me despir das peças mais pesadas que usava, como fazia naquele momento em que fugi de Irina.
Eu podia manter minha temperatura corporal constante, pelo menos enquanto estivesse acordada, e caminhar sobre o gelo, pé ante pé, sem medo do frio dilacerante me machucar. Aquela época já não era mais sinônimo de irritação para mim porque eu podia entendê-la e controlar o que quisesse dela.
O calor dos meus pés derretia por onde eu pisava, deixando um rastro de pegadas que seguiram até o bosque do palácio. Eu não tinha medo de ser encontrada, não estava tentando me esconder do mundo, só queria criar um tipo de conexão ― eu precisava de Alafer; queria vê-la mais uma vez. E será que havia lugar melhor do que envolta pelo elemento que a abençoara? Corri em busca do seio da mata, aquele ponto místico principal no qual dizem que os deuses deixam sua semente de energia e que alimenta os dons oferecidos por eles.
Tal como uma batida ritmada em um tambor, o som da floresta pulsando parecia vir de todo lugar e por isso, deixei que a intuição me guiasse até o pono certo para encontrá-la. E tive certeza de que havia o encontrado quando cai sobre a neve fina, em uma clareira onde a luz do dia brilhava como uma armadura feita das handark. Agarrei a mistura de lama e gelo com as mãos, tentando controlar a minha respiração; eu quase sufocava. Arquejando, recolhi-me em posição fetal, pequenas lágrimas quentes demais brotando do canto dos olhos.
Eu era uma garotinha de novo e precisava da minha mãe.
Fechei os olhos, cansada demais, e esperei.
Uma sensação de despertar brusco me inundou e eu quase vomitei quando tentei puxar o ar para os pulmões, como deveria ser. Eu teria assumido que meu pedido desesperado não havia dado certo, isso se não tivesse percebido que já não havia qualquer sinal de neve. A terra fria e úmida escapou pelos meus dedos quando fechei a mão e o arfar que soltei, soou um tanto seco ao tentar me levantar.
― Katherine, shhhhh... ― ouvi aquela voz tão calorosa em um tom repleto de seriedade; o mesmo que ela utilizou ao me contar que lutaria lado a lado com Elai e Donovan na Grande Guerra. Minha mãe ― dessa vez, com o cheiro de terra que eu conhecia; era ela mesma ― estava ajoelhada perto de mim, levando os dedos pelos meus fios de cabelo tão parecidos com os dela. ― Respira fundo. Se acalme. Você não precisa chorar, eu estou aqui.
Eu sequer havia notado que naquele momento estava chorando de verdade: não eram apenas lágrimas descansando no canto da minha vista, mas caindo com uma sensação opressora e desconhecida. Enquanto ela me puxava para perto de seu peito, num acalento único, só conseguia pensar que provavelmente estava sujando a barra do seu lindo vestido e que o mundo era decepcionante sem sua presença. Talvez esperando que aquilo me acalmasse, Alafer começou a murmurar a canção de ninar que costumava cantar logo quando eu saia de um pesadelo. A ironia era que Donovan tentara essa mesma tática assim que entrei em um, real, e não consegui segurar as sensações mistas de alegria e desespero.
Num abraço infeliz, apertei o rosto contra o torso dela e a enlacei, tão apertado quanto podia.
Ela me segurou até que meu corpo tivesse parado de tremer e as lágrimas cessado.
Somente quando a soltei, pude ver o que havia ao nosso redor. Dessa vez ― aliás, pela primeira ―, minha mãe se encontrava acompanhada. Senti a vergonha me dominar, afinal, havia chorado que nem um bebê na frente de três estranhos. Mortos, porém ainda assim estranhos.
Era um trio de guerreiros parados como se estivessem em guarda, à apenas dois metros de nós. Uma era uma mulher com a armadura rachada e uma queimadura no formato de mão em seu pescoço, ramificando em feridas purulentas na direção do rosto e resto do corpo; ela parecia um vaso rachado e eu senti mais vergonha em pensar isso do que por ter chorado na frente dos três. Os outros dois eram homens: um deles sem qualquer ferimento aparente, mas o outro... Marcas de corte se estendiam pela sua pele, contudo, o principal era a prova de sua morte por degolação: havia uma abertura ― que estranhamente, parecia um sorriso ― indo de lado a lado em seu pescoço.
Não poderia negar que a visão me arrepiou.
― Por que você veio, querida? O que te aflige?
― Quem são eles? ― nem me dei ao trabalho de respondê-la, apenas encarei seus companheiros e permaneci presa ali.
― Eu perguntei primeiro. O que há de errado? Uma resposta por uma resposta ― ela levantou, puxando-me junto e ofereceu seu olhar mais sério, indicando que o questionamento que fiz só seria respondido se eu lhe desse minhas razões antes.
Bufei e ela ergueu as sobrancelhas, ainda que sorrisse com gentileza.
― Tia Irina ― não pude evitar de pigarrear, afinal, a última vez que toquei no nome dela perto de Alafer foi um dia antes de sua morte. Quando nos vimos de novo, já em Lancart, e ela perguntou sobre a irmã, eu não respondi, só quis ficar abraçada em silêncio e aproveitar o que eu acreditava ser um sonho ultrarrealista. ― Vocês não costumavam se falar muito depois que eu já tinha nascido. O que aconteceu?
Sua expressão foi do choque à suavidade de uma pétala, talvez aquela fosse a primeira vez que pudesse ter a oportunidade de receber notícias dela depois de tanto tempo. E eu era a única culpada se ela realmente estivesse satisfeita em ouvir falar da irmã, que podia ou não ser uma de suas pessoas mais queridas.
― Irina ― o suspiro que soltou parecia o de mais puro alivio. ― Você não conheceu seu avô muito bem, eu só te levei para vê-lo em duas ocasiões, lembra? No dia em que Ascendi como Sacerdotisa de Landar, você ficou sentada ao lado dele, e no momento em que ele já estava à beira da morte, para que pudéssemos nos despedir. ― Assenti, recordando de ambas as situações e de como havia achado aquele homem tão "malvado" (ao menos era o que ele aparentava ser) e estranho. Uma vez que não tínhamos laços afetivos, mal senti sua partida. ― Meu pai não aprovava o rumo que a minha vida tomou antes mesmo de que eu chegasse ao poder e definitivamente se tornou amargo quando eu disse que cogitava fugir com o seu pai. ― Meu coração deu um saltinho ao ouvir aquela palavra, no entanto, pelo que eu conhecia de Alafer e do quanto ela gostava de ter me criado sozinha, era tudo que eu teria dele. Não era como se eu não tivesse crescido sem "figuras paternas"; Donovan foi uma delas e os consortes dela sempre foram gentis comigo. Mas eles não compartilhavam um pingo de DNA sequer comigo (agora eu tinha certeza disso). Então, eu sempre tive curiosidade em saber em que meu pai e eu éramos ou não parecidos e coisas do tipo, nada mais. Eu estive bem por anos sem saber quem ele era mesmo... ― Depois disso, creio que foi a gota d'água para ele. E sua forma de "vingança" em relação ao que eu havia me tornado foi afastar minha única irmã e começar a treiná-la para tomar o meu lugar. Coisa que, no fundo, ele sabia que não poderia fazer.
― Tia Irina foi treinada desde que eu nasci para ser o que é hoje? ― respirei fundo, entendendo porque ela era tão sisuda e focada em seu trabalho.
― Sim, mas eu nunca deixei que essa distância nos afetasse. Apesar de não nos vermos muito, ela era minha dahailam e isso não muda nada no mundo ― ela tocou o meu rosto e depois colocou uma mecha do meu cabelo atrás da orelha. ― Olha, eu sei que você não gosta de falar nela e que eu também não falava com você sobre ela, só que vocês são uma família. A Irina é tudo que te restou.
― Eu tenho você aqui, não tenho? ― tentei me agarrar ao resquício de esperança que a visão física tão real dela me proporcionava.
― Até quando?
Eu não queria pensar que um dia simplesmente eu não poderia mais ir até ela. Era uma ideia que jamais cogitaria.
― Por mais que sua tia possa ter dado a impressão de que ela não gosta de você, e acredite, Irinieva é muito boa em ser distante, ela te ama. Minha irmã nunca negaria afeto no coração dela pela minha filha, sua sobrinha. E o que quer que ela tenha feito para deixar você tão brava assim, eu tenho certeza de que foi para o seu bem. Nós somos uma família. Não guarde mágoas assim, Kate, ame sua tia como se ela fosse eu.
Sua última frase me deu vontade de rir e essa eu deixei que morresse em meu ácido estomacal, afinal, não iria fazer ironia naquele momento. Eu ainda não havia recebido minhas respostas e antes de tê-las não pretendia torrar a paciência de Alafer. Mas era divertido que ela pensasse que um dia eu poderia pensar, cogitar amar Irinieva como a amava.
Uma piada...
― Tudo bem ― concordei, disposta a satisfazê-la por hora. O que ela não pudesse ver, definitivamente não iria feri-la. ― E eles?
O olhar preocupado passou de mim, para o trio e por fim, voltou. Aquela definitivamente não seria uma conversa legal, dava para sentir no ar.
― Esses são Arian, Ellaria e Karon. Eles lutaram na guerra ― é, dá pra ver isso, pensei ― e tem uma coisa a mais. Eles receberam notícias que me deixaram um tanto preocupadas.
― Que notícias? ― puxei ar para meus pulmões, mas não o soltei.
― Você sabe o que aconteceu no fim da guerra? Com os seguidores que sobraram do Éden? ― ela engoliu a seco ao dizer aquele nome, provavelmente enojada e desconfortável. Quis abraçá-la mais uma vez, porém não pretendia parecer mais garotinha do que já parecia.
Pelo que eu me lembrava, Elai criou uma força tarefa especializada para caçá-los e levá-los a prisão logo assim que a guerra acabou.
― Presos. Mortos. Desaparecidos. Creio que tenha sido isso.
Ela assentiu assim que dei de ombros.
― E você se lembra de qual era a "revolução" que Éden tanto clamava? O que ele queria para o nosso mundo?
― Fim da monarquia, da nossa cultura, do culto aos nossos deuses. Poder central dirigido ao povo, ou um representante escolhido por ele. Tal como é em alguns dos outros mundos, não? ― encolhi-me e esperava que tivesse respondido certo. Desde o fim da guerra, as aulas de história (porque já havia virado isso) me pareceram cada vez menos interessantes e mais deprimentes.
― É, algo assim ― seus olhos se apertaram em minha direção; aquele era o modo julgador que tinha de dizer que eu estava fazendo algo errado. E eu sabia exatamente o que era. ― Ele era passional demais e viveu fora daqui a vida inteira. Ele veio pra cá quando era jovem e não entendia os nossos costumes, os nossos porquês. Quando colocou na cabeça que o que tinha aqui era errado, lutou com todas as armas que dispunha para dar um fim nisso. E conquistou muitos seguidores, muitos mesmo. Ele era algo que nós chamamos de tríplice. Isso você sabe o que é, não?
Confirmei com a cabeça, quase corando ― só não o fiz porque ela me sorriu e acariciou meu rosto de uma forma gentil.
Pelo que eu recordava das aulas de genética, "tríplice" era uma combinação rara dos três poderes, ou seja, uma pessoa que era isso tinha pelo menos uma habilidade física, uma psíquica e uma elemental. Éden era capaz de modificar sua própria aparência ― apesar de não fazê-lo muito ―, de persuadir as pessoas naturalmente (sem precisar de muito esforço) e controlar o fogo, sendo essa a sua principal. Era muito difícil encontrar alguém que fosse tríplice, geralmente as combinações costumavam ser duplas, até quando três poderes eram encontrados Donovan, por exemplo, dominava água e fogo, além de ter uma força descomunal.
― Bem, pessoas morrem, ideias não.
― O que você quer dizer com isso? ― franzi a testa e dei um passo em sua direção, foi quando me dei conta de que estava pelo menos uns três centímetros mais alta que ela. Quando isso teria acontecido?
― Que Éden pode estar preso no vaso, mas o que ele pregava está livre e correndo pelos ouvidos de crianças, jovens e adultos, que acham que ele não estava tão errado assim. ― ela suspirou, pegando na minha mão. Aquilo não parecia nada, nada bom... ― Existe um grupo chamado "Filhos do Éden" e eles querem aquilo que Éden não conseguiu fazer, no fim das contas.
Um estalo se deu em minha mente: será que o que Caleb sentia tinha alguma relação com aquilo? Talvez eu estivesse pensando demais...
Engoli a seco.
― Eles querem transformar o nosso mundo. Destruir uma cultura milenar, não é? ― tremi com a ideia de que uma nova guerra pudesse acontecer. Uma já havia sido o bastante para acabar minha alegria e com a de muitas outras pessoas. ― Por que você está me contando isso? O que você quer que eu faça? O eu posso fazer?
― Primeiro, que reze. Eu sei que você nunca foi muito ligada aos nossos deuses, mas creio que não possa haver hora mais propícia para começar a fazer isso. Reze para a Vida sempre andar com você, para o Destino te guiar por caminhos bons, e para a Morte não vir tão cedo. Eu te amo, mas espero que demore muito para você vir fazer companhia a mim em definitivo. E pelo que te conheço, tenho certeza de que você não conseguira se esconder e faria tal como eu; iria direto para a batalha. ― ela riu, mas eu não achei graça nenhuma naquilo. ― Depois, eu quero que você volte até o Bosque Sagrado e enterre algo que eu deixei em meu antigo quarto. Quando você chegar lá, vai saber do que se trata.
― Só isso? Você não quer que eu faça mais nada? Que eu simplesmente reze? Acha que isso vai ajudar em algo?
― Não sei se vai ajudar. O Destino tem suas próprias vontades, mas pelo menos os outros deuses talvez escutem suas preces e decidam intervir... ― sua mão passou pelos meus cabelos e ela me abraçou; me senti uma garotinha novamente e aquela sensação estava ficando cada vez mais frequente.
― Eu devo contar a alguém sobre isso? ― encostei a testa em seu ombro, tentando não pensar muito nas possibilidades que aquela loucura dos tais "Filhos do Éden" poderia trazer. No momento, eu só queria aproveitar a presença de minha mãe.
― Não, não há necessidade. Eles provavelmente devem estar a par da situação, eu só te contei pois me preocupo com a sua segurança e acho que é importante que você saiba do que está acontecendo ― ela me afastou.
― Sacerdotisa. Tenha sempre cuidado, você viu a guerra com os seus próprios olhos e sabe do que os seguidores de Éden eram capazes ― aquele que supus ser Arian falou, pela primeira vez. Até então achei que os três estavam ali como figuras decorativas.
― É, eles queriam não só extinguir a monarquia, mas as linhas sacerdotais também ― Ellaria completou e eu tremi ao encará-la novamente.
― Eu vou ter ― assenti. ― Vocês não estão aqui só para isso, né?
O que tinha ficado em silêncio até então, Karon, deu um passo à frente e respondeu com um sonoro: ― Não.
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