Vergonha quente / O começo
Um ano antes
No evento - Newton Mearns, em East Renfrewshire.
O carro estaciona em frente a uma grande casa. Por um momento, pensei. Sei que, ao entrar, estarei novamente diante das palavras pesadas de minha mãe. Não importa, ficarei calada
"Entre, senhorita." A voz dele quebra o silêncio, e, com um riso quase imperceptível, sai do carro. Fecho a porta e fico ali, observando o veículo que se afasta. Volto minha atenção para a casa diante de mim. Ela parece um cômodo simples, mais parecido com um camarim. Ao redor, o jardim é vasto, a vista oferece a combinação da cidade, da floresta e das montanhas ao longo.
O caminho até aqui foi longo, e agora, ao contrário do que estava, não estou mais perdida entre as árvores. Estou no centro, cercada pela movimentação da cidade. Vejo pessoas entrando em lojas, outras caminhando pelos jardins enquanto me dirijo para a porta da casa. Ao entrar, a vejo... minha mãe, sentada à mesa de maquiagem, um grande espelho à sua frente. Seu olhar penetra em mim.
Fecho a porta com o pé e começo a andar, mas paro ao ouvir sua respiração pesada.
"Você me estressou hoje", diz ela, e, sem conseguir evitar, sinto minha mente acelerar. Não posso rebater, nunca fui ensinada a fazê-la. Fico quieta, como sempre. Discordo do que ela diz, não fui eu quem a irritou. Mas minha mãe sempre me culpa quando saio sozinha, quando apenas busco ser eu mesma, sem os padrões que ela espera.
"Mãe..." Tento falar, mas ela me interrompeu com o tom impaciente. Ela se levanta e se aproxima. O ar entre nós fica denso, pesado. Sinto a dor da sua presença, aquilo que ela representa. Minha boca arde, e, involuntariamente, fecho os olhos, engolindo as lágrimas.
"Vista-se e venha." Ela sai, e o som da porta batendo atrás dela ressoa como uma sentença.
Caminho até a mesa de maquiagem onde minha mãe estava, e olho no espelho. A marca em minha bochecha é evidente, e ao vê-la, um sorriso amargo surge. Sinto as lágrimas se formando, mas tento negar essa fraqueza para mim mesma.
Olho para a roupa sobre o sofá, depois para o colar na mesa. Lembro do colar especial que estava em meu peito. Com cuidado, o pego e o coloco ao lado do colar que minha mãe me deixou. Isso me faz sentir algo que não consigo definir – talvez uma revolta silenciosa, ou uma acessibilidade resignada.
Me observo no espelho, respiro fundo e começo a me arrumar. Pego o pó e o aplico, tentando esconder a marca na minha bochecha. Coloco rímel, lápis de olho e um batom marrom, tentando encontrar algo em mim que me faça sentir bem. Penteio meu cabelo, prendendo-o e depois soltando-o, deixando-o fluir livremente.
Seguro o colar do meu antigo chefe e o toco delicadamente. Sei que não posso usá-lo. Minha mãe reclamaria, e, por mais que quisesse, não tenho coragem de desafiá-la. Por isso, decidi não usar nenhum dos dois. Apenas sigo em frente, sem dar espaço para os meus desejos.
Levanto da cadeira e me observo no espelho de corpo inteiro. Sinto uma sensação de desconforto, mas não posso evitar. Olho para meu corpo, para minha mini saia, e lentamente começa a descer o zíper do corpo. Vejo a tatuagem nas minhas costas e, por um momento, me questionei por que a fiz. Algo dentro de mim me questiona, mas deixo de lado. Vou seguir.
Desço o corpo até os pés e fico ali, vendo-o cair. Olho para o meu corpo nu no espelho, refletindo sobre tudo que sou, tudo que deixo as pessoas verem. Sinto um vazio, uma desconexão, mas respiro fundo e sigo em frente.
Coloco o vestido azul sobre mim. Ele é simples, mas tem um toque de moda que minha mãe aprecia. Ajustando o vestido, verificando o grande decote que se forma, e então olho no espelho, vendo-me por inteira. Me sinto mais em paz, mais confortável. Esse é o padrão, o que minha mãe espera de mim.
Enquanto ajeito o colar, coloque-o entre as roupas que eu estava usando e as dobrei, garantindo que ele não caia no caminho. Olho para o meu corpo de novo, fazendo os últimos ajustes. Não quero mais me questionar, apenas quero seguir o fluxo.
Saio do pequeno cômodo, sentindo o peso da expectativa da minha mãe sobre mim. Ela me puxa para andar, e, sem forças para resistir, me deixa levar. Um carro aparece, diferente do que esperava, e minha mãe entra logo depois, falando com o motorista com uma voz doce.
O caminho é em silêncio, com minha mãe e o motorista trocando algumas palavras. O evento está perto, então logo chegamos.
Ao sair do carro, minha mãe me puxa novamente, mas tento me soltar.
"Me deixa" falo, me afastando dela.
"Está doida?" Ela me olha furiosa. "Acredita que está atrasada? Fomos convidadas para um dos eventos mais importantes daqui, e você novamente me faz passar vergonha?" Fico em silêncio, aguardando. "Me obedeça, Gardenia. Fique calada e fale apenas quando eu mandar." Ela começa a andar, me deixando para trás. Relutantemente, eu te sigo.
Minha vida parece um ciclo que não consigo romper.
Eu não sou assim.
"Olá, senhor Brown", minha mãe diz com um sorriso encantador, e eu acompanho até o cômodo onde ele está, acompanhado de uma mulher.
"Oi, senhora Bhita, prazer em conhecê-la", diz ele, e a mulher ao seu lado sorri. Olho para suas mãos e vejo os anéis de noivado. "Ela é sua bela filha?"
"Sim, minha bela filha", responde minha mãe, sorrindo extensamente.
"Oi", digo, forçando um sorriso sem mostrar os dentes.
"Que menina linda", comenta a mulher ao lado de Brown, sorrindo. "Já pensou em ser modelo?" Quase falo, mas minha mãe interrompeu com um olhar. Eu reviro os olhos, irritada.
"Já pensamos, mas ela prefere mais a natureza e a aventura, ao invés de ficar em frente às câmeras", minha mãe sorri com simpatia.
Reviro os olhos mais uma vez e tento ignorar os olhares que me cercam. A mulher me olha curiosa.
"Quer que eu te mostre o local? Meu marido e sua mãe vão para o encontro, depois vão para as entrevistas do programa", ela sugere. Sem realmente percebi o que estou fazendo, concordo, e sigo.
Andamos juntas, afastando-nos do foco central da festa. O jardim está repleto de pessoas conversando entre as mesas espalhadas. Tento não chamar atenção, mas não consigo evitar que alguns olhares se voltem para mim.
"Você parece nada com sua mãe", a mulher sorri enquanto caminhamos. "São muito diferentes."
"Exatamente, em nada iguais" respondendo, forçando um sorriso.
"Eu sou assim com minha mãe", ela diz. "Somos bem diferentes. Ela prefere a atenção, eu não. Mas, veja, ela não está aqui hoje. Preferiu não vir ao evento do meu marido. Eles não se dão bem." Ela dá de ombro, sorrindo. "Mas, enfim, vamos ver o que acontece." Ela se sentou em uma mesa e me faz companhia.
"Sou igual" respondo. "Não gosto de atenção. Ela sim. Me acostumei." Ela solta uma risada leve. "Todo mundo aqui é famoso nesse ramo?" Pergunto, curiosa.
Ela concorda, explicando que todos estão presentes para algum tipo de acordo com Brown, e que os mais importantes estavam em reunião, com entrevistas por vir.
"Uns são acompanhantes" ela diz com uma risada.
"Igual eu" brinco, e a mulher ri.
"Não fale assim. Você não é só um acompanhante, é uma Bhita também", ela diz, mas vejo a careta no meu rosto. Eu sei a verdade. Minha mãe me trouxe aqui para fortalecer essa imagem, a imagem de uma família perfeita. Eu sou apenas um acessório para ela. Por isso ela não negou eu me encontrar com a senhora Brown, isso é para eu convencer ela, apenas um truque.
Enquanto ela fala sobre as coisas aleatórias sobre uns convidados, um barman se aproxima com uma bandeja de bebidas. A mulher pega dois copos e me entrega um.
"Não bebo, obrigada" respondo, sorrindo com educação.
"Beba, se divirta. Você é jovem", ela diz, sua voz suave e cheia de sabedoria. Parece-me dar um conselho, como querer se saber mais sobre mim do que eu mesma. Ela me deixa sozinha, enquanto vai ao encontro de outros.
"Estou feliz, sorria" falo enquanto o meu sorriso crescia e eu fico olhando para o lado para o povo da festa.
Eu fico ali, com o copo na mão, observando uma bebida balançar. Tento sorrir, forçando uma alegria que não sinto. Minha mente me diz para ser positiva, para agir como se tudo estivesse bem. Para fazer todos acreditarem que estou me divertindo e não fugindo de uma vida que não escolhi.
"Sou alegre, sou alegre", murmuro para mim mesma enquanto me levanto do lugar. Ando sem rumo, tentando fingir que sou parte do ambiente. Paro em uma mesa onde duas garotas conversam — uma morena e a outra ruiva. Deixo meu copo ali, ignorando o que falam. Suas vozes chegam até mim como um eco distante, sem sentido.
Minha mente está vazia. Não sei o que faço aqui, não sei se devo ficar ou ir embora. Tudo o que consigo pensar é que sou um nada. Minha cabeça está um caos, e eu me sinto perdida. Até que chego em uma parede, buscando algum refúgio, mas nem sei se posso ficar ali. Estou apenas fugindo de tudo. Sou uma fantasma invisível. Literalmente.
Eu costumava ser divertida, mas nos últimos dias minha depressão me consumiu. Minha vida parece se esvair, sufocada pelas expectativas e cobranças que mãe, meu pai e toda a minha família colocam sobre mim. Tentei fugir no final de semana, mas não consegui. Como sempre, minha mãe encontrou um evento para me arrastar junto.
Ela só se importa com aparências. Com dinheiro. Não comigo.
Envia-me para um banco de concreto e encaro o vazio. Pego o celular, hesitante e decidi ligar para Florence. Ela é minha luz, minha âncora.
"Olá, G." atende ela com um suspiro pesado. "Estou morrendo aqui. Quero dormir, mas não consigo... Meu pai não me vê mais, ele nem me ouve."
Ouvir Florence assim parte meu coração. Ela é forte, mas quando desmorona, sei que algo muito grave aconteceu.
"Vou até você", digo de imediato, mesmo não estando no mesmo país, sou automática. Minha vontade é revisá-la, mesmo quando estou no fundo do poço. Florence é minha paz, e se ela está mal, eu preciso ser a paz dela.
"Não. Por favor, não venha. Só preciso desabafar. Se você vier, irei acabar chorando na sua frente, e nós duas vamos desabar juntas. Não quero isso agora... me fale algo bom, G. Estou trancada no banheiro, nem me consigo ver no espelho porque o quebrei. Me ajude..."
Sinto minha garganta pressionada. Não sei o que dizer, mas respiro fundo e deixo as palavras fluírem.
"Florence, você tem a mim, e eu tenho você. Juntas, somos uma só. Se você se machucar, eu também me machuco. Mesmo que o mundo esteja desabando, ainda teremos uma à outra. Nós somos tudo o que importa. E olha, somos fortes. Até agora, sobrevivemos. Não deixamos a dor de nos matar. Você é incrível, e estamos vivas. Isso é o que importa."
Ela soluça do outro lado, e posso ouvi-la se acalmando aos poucos. "Eu tenho você. Você tem a mim", repete entre lágrimas.
"Isso mesmo. Somos uma só. Entre o universo paralelo e o caos, somos as únicas que ainda estão de pé."
"As únicas vivas" ela murmura. Uma pausa, então sua voz se suaviza "Te amo tanto, G."
"Também te amo, Rose", respondo com um sorriso leve. E, antes que saia, ouço uma risada fraca e calorosa do outro lado.
Olho para o céu escuro. Conseguimos sobreviver nessa vida. Somos as amigas tristes, mas já fomos felizes. Toda felicidade, em algum momento, se transforma em tristeza. Parece que chegou à nossa vez.
Toda vez que uma de nós chora, é como uma prova de que estamos vivas. Cada lágrima nasce de uma briga em família, aquelas que fazem você se sentir morta por dentro, mesmo que continue respirando. Ainda assim, sobrevivemos. Nem sabemos por quê. Talvez seja por isso que nos ligamos uma para a outra — para lembrar que ainda estamos aqui, para nos proteger. Sabemos que, se uma de nós desistirmos, a outra não vai demorar a seguir o mesmo caminho.
Eu e Florence somos diferentes, mas pensamos da mesma forma. Nossas personalidades opostas nos equilibram. É isso que nos mantém unidas, como duas metades de um mesmo universo.
Fecho os olhos e sinto outra lágrima escorrer. Eu quero chorar, mas não consigo. Não gosto de mostrar a minha dor. Eu me sinto fraca, mas seguro meu choro com força, como se fosse a última coisa que eu ainda posso controlar. Nem consigo perceber o tempo passando.
Quando abro os olhos, vejo a última pessoa que eu queria ver.
Minha mãe.
"Parabéns" diz ela, com sarcasmo. Franzo a testa, confusa. Ela cruza os braços e continua "Me fez passar vergonha, feliz? Eu te trouxe aqui para ser minha filha, para cumprir o mínimo. Mas, em vez disso, você desaparece."
"Eu só preciso tomar um ar" digo baixinho, tentando manter a calma.
"Eu é que preciso levar um ar agora. Fuja, como sempre faz. Hoje, eu quero um pouco de paz sozinha em casa." Ela solta um riso frio e desdenhoso. "Isso mesmo, não volte para casa hoje."
"Você está me expulsando?" Não acredito, da minha própria casa,
"Por hoje, sim. E nem adianta chorar e ligar para o seu pai, porque ele não vai te socorrer dessa vez. Vai procurar um motel... ou qualquer outro lugar para dormir. Você vive achando que é independente, cheio de contatos, então se vira. Amanhã quero que você me peça desculpas — por mim fazer passar vergonha."
Ela começa a se afastar, mas sua voz ainda ecoa. "Vergonha, filha... vergonha..."
Antes que ela termine, esbarra em um rapaz que segurava um copo na mão. O líquido se derrama, e o copo cai no chão, estilhaçando. Minha mãe imediatamente arma seu teatro, pronta para despejar seus ataques.
"Não me viu, não?" ela dispara, encarando o rapaz como se ele tivesse cometido um crime.
Ele, no entanto, apenas a ignora. Não se desculpa, não olha para ela. Apenas observa o copo quebrado no chão por um instante e começa a andar como se nada tivesse acontecido.
"Mal-educado!" minha mãe exclama, soltando uma risada amarga. "Está vendendo, filha? É assim que o mundo é. Por isso você precisa aprender a não me envergonhar." Ela vira as costas e segue seu caminho, desaparecendo em meio à multidão.
Eu olho para o rapaz. Ele parece deslocado, como se não pertencesse ao evento. Sua expressão é indiferente, mas seus olhos percorrem o local, procurando ou fugindo de alguém, não sei, sou míope.
Sem perceber, eu vejo andando atrás dele. Talvez fosse uma vontade de escapar da cena anterior ou uma curiosidade de saber quem ele era. Não sei. Apenas o siga.
Acelero o passo para alcançá-lo, mas, quando estou próximo, diminuo e o chamo.
"Ei!"
Ele não para. Ignora o chamado e continua andando. Tento de novo, desta vez com mais firmeza.
"Com licença!"
Finalmente, ele se vira, me olhando com uma expressão que mistura surpresa e cansaço. Mas não consigo notar muito do seu rosto.
"Desculpe por aquilo", começo, apontando na direção onde minha mãe havia sumido. "Se quiser, eu posso pagar outro copo para você." Ele franze o rosto, como se não tivesse entendido direito. Então repito, mais devagar. "Desculpe mesmo. Se quiser, posso pagar outro."
"Não", ele respondeu seco.
"Não é nada demais. Eu posso resolver isso. Não vai me custar nada."
"Eu disse que não" ele repete, com um tom cortante, antes de voltar a andar.
Mesmo assim, algo em mim insiste em segui-lo. Quero dizer mais alguma coisa, talvez fazer com que ele fale algo além de palavras monossilábicas.
×××
Parece que voltamos né...
Com isso, amostrando a vocês um alimento crucial, ansiosos?
Eu estou, aí!
Suas vadias!!!
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