Capítulo 26
9804 palavras - Arco viagem
Por Edan
- Então, o que acha de irmos tomar um ar agora? – Carlos diz, batendo as mãos tentando animar a todos.
Eu fico quieto, analisando todos aqui na sala. Não sei exatamente de qual incentivo precisamos, já estamos prontos para isso desde as oito da manhã, não são nem nove horas direito, até fizeram questão de tomar um café da manhã reforçado. O que me deixa pensativo neste momento é como todos nós conseguimos acordar tão cedo só para sairmos? Eu esperava acordar só depois das onze da manhã, mas já estou despertado desde umas cinco...
- Com certeza sim sogrão! – Fabiano diz com animação, o vejo erguendo o punho para o alto. Essa animação dele consegue fazer o pessoal se animar, com exceção de mim. Não sei como ele consegue essas coisas, mas também não ligo nem um pouco.
- Então vamos sair e aproveitar que ainda está quente. Temos uma caminhada pela frente. – Regina comenta, já saindo de casa. Alguns acabam reclamando em voz baixa, mas acho que a mãe de Anne percebe as reclamações, pois ela continua a falar – Garanto a todos que irá valer a pena.
Não sei o que esperar, mas por falta de escolha irei junto. Por termos que fazer uma caminhada e estar bem mais frio do que quente, fiz questão de pegar a blusa mais longa que tenho, ela vai até metade da minha perna de tão longa. Aliás devo agradecer a Carol, ela quem fez questão de que eu trouxesse essa blusa, por mais que tenha sido um peso a mais na minha mala. E não estou nenhum pouco afim de ficar doente, então não vou reclamar. Não sei se ela previa que eu fosse precisar em algum momento, mas de qualquer jeito, obrigado Carol.
Saímos de casa, sendo recepcionados por um sol fraco, eu penso que ele vai me esquentar um pouco que seja, mas me engano. Está ventando bem pouco, mas o suficiente para me fazer sentir o frio espalhando pelo meu corpo. Olho em volta, nem todos escolheram blusas realmente pesadas, e dão alguns pulinhos para se manterem aquecidos. De certa forma, acho esse clima confortável. Vejo Carlos fechando a porta e vindo em nossa direção, guardando a chave no bolso de dentro da jaqueta e fechando o zíper da mesma. Assim, todos começamos a andar em direção a saída pela estradinha que muda entre pedras para terra batida, passamos pelo portão e nos colocamos a andar rua acima, acabo vestindo o capuz da minha blusa por me sentir mais confortável, e então seguimos. Olho bem em volta para tentar memorizar o lugar caso seja necessário. Sinceramente, eu espero que saibam pra onde estão indo.
Bem, hoje é o terceiro dia de viagem, ontem praticamente não fiz nada além de "aproveitar", em outras palavras, ficar no sofá vendo quase todo mundo jogando banco imobiliário, e logo depois ver todos querendo ir jogar sinuca no quarto 3 mas desistindo logo depois que terminaram de arrumar toda a bagunça que tinha lá. Bom, pelo menos poderão jogar hoje quando voltarmos, afinal toda a bagunça está arrumada... Agora que parei para pensar, desde que fiz o bolo anteontem, eu praticamente não fiz mais nada além de olhar todos a minha volta, além de ficar quieto no meu canto. Acredito que qualquer pessoa surtaria no meu lugar por ficar tanto tempo sem fazer nada em um lugar desses, mas por algum motivo eu consigo me sentir bem aqui.
Olho em volta, tudo que vejo é mato. Ao longe consigo enxergar algumas casas, árvores e... Só. Na verdade, é só isso que tem por aqui. Minha imaginação me faz ver ruas onde na realidade é só mais mato. Olhando agora para perto, sendo mais exato no que tem em volta de mim, busco por algo diferente, mas tudo que vejo é uma rua bem desregulada e com bastante rachaduras, muita terra, barulhos de insetos, mais mato, e uma longa subida. Nada de interessante. Me concentro apenas nos sons dos nossos passos, por mais que estejam falando de algo. Não consigo ter muita vontade para ouvir o que falam.
*****
Após alguns minutos andando, acho que pelo menos uns quinze minutos andando em passos muito mais lentos do que eu gostaria, chegamos a um cruzamento. Olho para a minha esquerda, de onde vem um carro a passa por nós, indo pela direita seguindo a rua morro acima. Olho para os pais de Anne, eles conversam sobre qual direção devemos seguir. Eles levam algum tempo para decidir, e acabamos seguindo pela esquerda a primeiro momento. A cada segundo eu tenho a sensação de que não sabem para onde estamos indo.
Acabamos andando por mais tempo, não levamos mais de um minuto andando para chegarmos a uma pequena trilha, que ao que vejo segue morro acima. Minha vontade é perguntar se iremos reto, mas já tenho minha resposta quando os vejo subindo. Tento enxergar o fim dessa trilha, mas não consigo, as árvores tapam minha visão. Todos vão subindo, enquanto fico parado na entrada da trilha, olhando para cada um deles. Ai saco, eu sinceramente gostaria de não ter que subir isso.
- Coragem Edan... – Raquel diz, batendo a mão no meu ombro. Tanto ela quanto Ricardo ainda estão aqui comigo – Ou vai me dizer que já cansou?
- Cansado eu não estou... – Olho os dois, e então para a trilha. – Só não queria ter que subir isso.
Ricardo deu de ombros – Vamos ver o que nos espera lá no topo. Pelo que falaram, deve ser alguma coisa boa.
- A Anne me garantiu que é bom sim, só não sei ainda o que é. – Raquel diz, puxando o namorado e indo em frente.
Balanço a cabeça e vou por último. Aproveito e vou olhando bem a trilha, o chão apesar de ser terra escura, ela é bem batida, acho que passam pessoas frequentemente aqui, além disso ao redor da trilha tem uma pequena cerca com tábuas de madeira, que moldam um caminho bem único para ser seguido, e não tem muitos galhos ou folhas na altura da cabeça, em outras palavras, não terei o problema de bater a cabeça em qualquer coisa que seja. Algo que percebo é que a trilha é bem fria, além de não entrar tanta luz do sol aqui, deve ser por causa disso que é tão fria. Constantemente olho para cima, tentando encontrar a saída, mas nada. Olho para trás, vendo o que já subi até agora, pena que voltar atrás não é uma opção possível, já não estamos tão perto da casa, e nem acho que decorei o caminho de volta. Tudo que me resta é ir em frente.
- Falta muito para chegarmos? – Escuto Fabiano perguntando lá na frente. Pela voz dele, ele está bem cansado.
- Só mais um pouco e chegamos. – Regina responde.
- Tá, só mais um pouco... Mas onde estamos indo mesmo? – Agora é Anne quem pergunta. Ela também está cansada a julgar pela sua voz.
- É um mirante. – Ela diz novamente, e agora ninguém questiona mais nada. Ela então insiste – Vocês sabem o que é um mirante, não é?
A minha sensação é de estar em uma excursão escolar na primeira série, que a professora sempre diz algo e logo depois precisa confirmar para ver se alguém sabe. Para não deixar ela falando com o vento, então eu mesmo respondo – É um local elevado, para ter visões amplas.
- Exatamente isso, vocês sabem onde estamos indo agora. – Regina então diz.
Tenho a sensação de ter ouvido alguém falando "nerd" em voz baixa, mas tanto faz, só ignoro isso.
- Vocês se lembraram de trazer os celulares bem carregados? – Carlos questiona, lá na frente – Acho que vocês vão querer tirar algumas fotos.
É verdade, meu celular. Apalpo meus bolsos, mas não acho ele em lugar nenhum. Agora que penso nisso, me lembro vagamente de ter deixado ele no quarto, sobre a minha mala. Bem, eu raramente uso mesmo. Escuto então Carol falando – Nunca saio de casa sem meu celular, e ele está com uma boa carga para fotos.
- Dentre todos aqui, você com certeza é quem eu esperava que trouxesse o celular – Tamires ri de seu próprio comentário.
- Lembra do que falei no primeiro dia? – Carol diz rindo – Tirar muitas fotos, videos, gravar tudo! Isso é comigo!
- No primeiro dia você estava falando de todos nós irmos nadar pelados – Raquel comenta rindo.
Carol ri disso – Também, e se quiserem essa proposta ainda está de pé. Mas eu me refiro a fotos mesmo.
- Podemos ter certeza que teremos fotos de tudo – Fabiano diz rindo.
Paro de prestar atenção no que falam, acho que perdi o interesse de forma súbita. Tento olhar de novo para o alto, percebo um pouco mais de luz vindo de lá, acho que é a saída da trilha pelo jeito. Minha ideia seria apressar o passo e chegar lá o quanto antes, mas o problema é que resolvi ser o último a entrar na trilha. Resumindo, serei forçado a acompanhar mais sei lá quando tempo de passo lento.
*****
Mais algum tempo se passa, mas alcançamos o topo, finalmente. Saio da trilha, vendo um lugar mais cheio do que eu estava esperando, considerando o horário, achei que estaria vazio. Bem a minha frente tem uma larga e aparente calma rua, para a minha esquerda tem um largo estacionamento, onde posso ver carros, e até mesmo alguns ônibus mais ao fundo, e a minha frente e para a direita estão algumas barracas de lanches, e bem atrás de todos, tem um muro não muito alto, e do outro lado desse muro está a tal vista que eles querem ver. Olhando em volta, o lugar é bem movimentado, tem até muita gente passando, e enquanto atravesso a rua, posso ver uma van subindo a rua e entrando no estacionamento. Faço questão de prestar atenção nessa van, e de lá saem pelo menos mais umas oito pessoas. Eu sinceramente esperava algo bem mais calmo que isso.
- Isso não era assim quando vim nas primeiras vezes... – Ouço Carlos falando, isso atraí meu olhar – Antes esse lugar era muito mais vazio.
- Você era um menino quando veio aqui da primeira vez. A quantos anos você não vem aqui? – Regina questiona.
- Não tenho a menor ideia, acho que quase trinta anos. – Ele deu de ombros.
- Então, com certeza o lugar mudou muito – Regina ri.
- Não digo só a aparência, quando eu vim era só mato, arvores e uma trilha... – Ele comenta olhando em volta. – Subimos e íamos até a beirada, sentavam os no chão e aproveitávamos a vista. Agora parece que vem gente de umas quatro cidades para aproveitar.
- Os tempos mudam. Talvez venham pessoas de ainda mais longe. Olhe para nós por exemplo. – Regina ri.
Acabo percebendo que todos já se afastaram daqui. Procuro com os olhos, percebendo todos dispersados cada um em uma direção, mas relativamente perto uns dos outros. Bem, acho que não precisarei me preocupar com alguém me incomodando. Sigo a frente, conhecendo melhor o ambiente, fazendo questão de desviar das várias pessoas em volta dos carros de comida. Para os lados não tem muitas árvores, como se fosse um espaço aberto.
Percebo uma pequena trilha artificial passando por entre dois montes até altos, se assemelhando muito com um corredor, e esse caminho leva ao mesmo lugar sem as arvores. Algumas pessoas estão seguindo por esse corredor, minha curiosidade acaba me pedindo para ver o que tem ali, então vou pela mesma direção. Essa minha curiosidade vai acabar me matando alguma hora. O corredor não é tão largo, mas o suficiente para andar sem esbarrar nas laterais cheias de terra, imagino o quão trágico deve ser passar aqui com crianças, ou acabar tropeçando e se apoiando na parede, e com certeza não é uma boa ideia duas pessoas passarem uma ao lado da outra, a menos que queiram ficar cobertas de terra. Caminho por alguns segundos, atravessando a trilha, e assim que saio dou de cara a várias pessoas a minha direita e algumas a minha frente, todas paradas olhando para algo, e a minha esquerda está a visão que até agora ignorei.
Uma região montanhosa e bem arborizada um pouco mais próxima e também mais ao longe no horizonte, mais ao meio posso ver uma ponte por onde a rodovia atravessa solitária bem no meio de tanta natureza. Olhando um pouco atrás da rodovia, quase onde a ponte acaba, consigo ver uma cachoeira e um lago natural formados, e seguindo por baixo da ponte, bem escondido por entre as arvores, consigo enxergar o que parecem ser outras pequenas cachoeiras, e acredito que ali deve haver um outro lago, ou talvez um rio, eu não sei. O céu está aberto e o calor é agradável, o vento é suave, e o ar puro.
Continuo andando, desviando e tentando não tropeçar em ninguém. Olhando para cada uma das pessoas, consigo notar algo em comum em quase todas elas, ninguém está olhando o lugar de verdade, a maioria está tirando fotos com seus celulares, gravando, ou tirando selfies de seus grupos. Algo me vem em mente, acho que seria mais interessante tirar só uma foto, e aproveitar todo o restante com os próprios olhos. Mas devo ignorar, isso não é da minha conta.
Andando por mais um tempinho, consigo alcançar um lugar mais afastado, longe de boa parte das pessoas. Olho em volta, aqui já tem muito mais arvores do que o restante, mas ainda é perfeito para ver todo o lugar, e principalmente, sem pessoas falando a minha volta. Encosto minhas costas em uma arvore, refugiando minhas mãos nos bolsos, sentindo como estão geladas, e me concentro na vista. Igual àquela noite, essa é uma visão que eu quero gravar bem na minha memória, em todos os detalhes. Eu quero aproveitar cada segundo que eu puder ter aqui. Poder ouvir cada um dos sons, dos movimentos das árvores com o vento, como tudo estando tão longe, quase sumindo da vista e ainda continuando tão agradável de se ver, poder deslumbrar o horizonte se assemelhando a uma perfeita pintura, poder ver a beleza desse mundo, pelo menos mais uma vez... Eu não esperava viver para ver algo assim, sempre pensei que acabaria partindo antes disso. Acho que me sinto feliz por ter vindo nessa viagem, por poder ver pelo menos uma vez na vida como esse mundo consegue ser bonito, tanto em suas noites quanto nos dias... Por conhecer algo tão belo antes do meu fim.
Agora me pergunto, a Raquel, o Leandro, a Anne e todos os outros também estão vendo como esse mundo é bonito? Eu sinceramente espero que sim...
Observando em volta, percebi uma pessoa parada não tão próxima de mim, também olhando a vista. A pessoa parece não ter me notado aqui. Olhando melhor, percebo ser Anne. O que ela faz aqui sozinha? Ela está parada com as mãos em frente ao corpo, com um sorriso tão singelo, tão natural que não sei se já vi antes. – Aproveitando a vista Anne? – Nem eu mesmo esperava falar qualquer coisa.
Ela olha de um lado ao outro na hora, logo então olhando para mim. Seu olhar é de espanto, ela parece ter sido pega totalmente de surpresa. Ela ficou sem jeito, e com um sorriso tímido, até meio bobo, ela deixa o lugar que estava. – Sim, estou até sem palavras de tão bonito.
- É, comigo está sendo a mesma coisa. Fiquei sem reação quando vi esse lugar. – Termino de falar, e a vejo se aproximando, parando bem ao meu lado e olhando a paisagem. Eu me sinto desconfortável com a presença de Anne. Um incomodo muito estranho, mas ao mesmo tempo que desconfortável, me sinto bem – Já tirou alguma foto?
- Ainda não, mas vou tirar uma pra ficar de recordação. – Ela diz com um sorriso.
Eu a observo, por mais tempo do que imaginei. Então logo falo – Só uma?
Anne me observa, confirmando balançando a cabeça uma vez – Sim, só uma foto. Vou caprichar para ficar bem bonita, e depois vou aproveitar e olhar bem a paisagem... Algo assim não deve ser aproveitado por fotos.
- É um bom plano... – digo, me encolhendo mais em minha blusa. Ela pensa da mesma forma que eu, e realmente, fotos não descrevem esse lugar.
Anne me olha por um tempo, e então estala os dedos. – Tive uma ideia! – Eu a olho, ela está alcançando o celular em seu bolso, o desbloqueado, dando alguns toques e então me entregando. – Você pode tirar uma foto minha?
Arqueiro as sobrancelhas, enquanto pego o celular de sua mão. – Eu... Mas... – Eu me calo. Agora que lembrei, debater normalmente não funciona com Anne, então eu concordo. – ...Tudo bem...
Ela se afasta de mim em passos lentos sobre o chão de pequenas pedras coberta por várias folhas secas, o que torna seus passos bem ruidosos. Ela se vira para mim, dando um pequeno sorriso. – Capricha em!
Ergo o celular, demoro alguns segundos para alinhar a câmera de um jeito satisfatório, o foco se ajusta sozinho, consigo ver bem Anne, ela está fazendo uma pose bem discreta, com as mãos para trás do corpo e um sorriso tímido. Eu tiro a foto, fazendo um sinal positivo para Anne. Ela vem correndo em minha direção. Assim que pega de volta seu celular, ela observa a foto por alguns segundos.
- Ficou perfeita! – Ela diz de repente – Essa vai ir para o meu cantinho especial. Obrigada Edan.
Imagino que esse "cantinho" que Anne se refere é aquele com várias fotos coladas na parede, bem do lado da cama dela. Ao que me lembro, lá tinham muitas fotos dela com a Raquel e o Leandro, e também com outras pessoas. Me vem em mente se todas essas fotos ainda estão lá, coladas de forma bem caprichada na parede do quarto dela. Conhecendo ela, acho que é algo que é especial para Anne. Não tenho muito o que falar, mas me forço a dizer algo – Bem... Não precisa me agradecer por isso...
- Eu sabia desse lugar pelo meu pai sempre me falar dele... – Ela comenta, dando um suspiro com um sorriso no rosto – Só não imaginava que seria assim tão...
- Tão bonito? – Anne balança a cabeça concordando – Eu entendo, me sinto da mesma forma.
Um estranho silêncio se estende. Me sinto um pouco incomodado por algum motivo. Olho para Anne, ela já guardou seu celular, e novamente está olhando para o cenário a nossa frente. Me sinto desconfortável quando ela olha em minha direção, e sequer consigo olhar para Anne por muito tempo sem me sentir ainda mais estranho. Mas então, por que não consigo desviar meu olhar dela por mais que alguns segundos?
A presença dela já é o suficiente para me incomodar, meu estômago está se revirando. Agora que percebi, ela voltou a olhar para mim.
- Eu precisava mesmo de um momento para falar com você Edan... – Ela me diz, desviando o olhar. Sua voz saiu um pouco vacilante, e seu olhar está diferente, está distante, melancólico. Eu consigo ver uma certa semelhança no olhar de Anne... O olhar dela se parece com o meu... – Me desculpa...
Isso me pega desprevenido. – Pelo que está se desculpando...?
- Pelo que aconteceu meses atrás, lá na escola... – Ela dizer isso me faz retornar até aquele dia, a sensação ruim que tive. Um pequeno choque passa pelo meu corpo, revivendo as sensações daquele momento. Aperto as mãos nos meus bolsos. Não sei o que responder. – Eu te falei coisas que não deveria, pedi algo que eu não queria... Te tratei de um jeito que eu jamais deveria ter tratado... Agi sem pensar, tentei me afastar e fiz você se afastar de mim, fingi que você não existia, e eu não me perdoo por isso... Eu precisava te pedir desculpas por todo o mal que te fiz, mas não sabia como... Eu entendo se você não quiser me desculpar.
Penso no que Anne diz. Levo um tempo, e relembro como as coisas andaram depois que nos afastamos, nas coisas que deixei de lado e abandonei por completo sem Anne para me incomodar, e nas vezes que imaginei como ela faria alguma coisa. Por mais que eu diga qualquer coisa, não estou realmente irritado com ela. Eu não a odeio por isso. Eu dou um suspiro, e então digo – Você não precisa se desculpar sobre aquilo, está tudo bem.
- Mas... – Ela começa a falar, mas sua voz falha. Posso ver o nervosismo estampado no rosto dela, principalmente no seu tom de voz – Me senti mal depois das coisas que falei... Parece impossível depois do que te fiz, mas sofri depois do que te falei e quando fiz você se afastar, quando te ignorei, fiquei com vergonha de te olhar nos olhos ou tentar falar com você... E eu nem tenho ideia de como você ficou...
- Não tenho nenhuma mágoa sobre aquilo, nem estou irritado com você... – Algo me incomoda. Anne... Sofreu por minha causa? Não, isso não pode ser... Eu aceitei me afastar para que isso não acontecesse. Para que ela não sofresse, tanto por eu ficar longe quanto por eu ir embora. Não era para ela sofrer, eu não queria isso... Independente disso, dou de ombros, e continuo a falar – Fiquei surpreso na hora, tudo aconteceu de repente... Só que isso já passou... Mas eu quero saber Anne, por que fez aquilo?
Seu olhar se enfraquece. Não consigo imaginar o que ela está pensando. Seus olhos se perdem, e sua expressão parece triste – Não sei o que aconteceu na hora... Eu estava irritada, sem paciência com tudo e todos, não estava pensando direito... Eu explodi e falei coisas que eu não gostaria...
- Isso acontece as vezes Anne, as vezes estamos sem cabeça pra nada, falamos besteiras sem pensar para algumas pessoas... – Ela parece estar ficando mais confortável aos poucos, apesar de não olhar para mim. Talvez ela se sinta culpada pelo que aconteceu. – Mas tudo isso já ficou para trás, não estou bravo com você. E olha onde estamos agora.
- Não acredito nisso... Não tem nenhuma mágoa de mim? – Anne me questiona.
Balanço a cabeça – Nenhuma.
Ela da um pequeno sorriso – Desculpa ter me afastado de você, de verdade... Eu não devia ter feito isso em nenhuma circunstância, nem em sonho... Não vai acontecer de novo.
- Já disse que não precisa se desculpar comigo... Você promete? – Respondo balançando a cabeça. Espera, o que foi que eu acabei de falar?
Anne ri com o que acabei de falar – Sim, eu prometo.
Arqueio as sobrancelhas, tentando disfarçar o que eu disse. Falei sem sequer notar. – Bem... Por que veio para cá sozinha?
- Eu até estava acompanhada, mas acabei me perdendo de todo mundo perto das barracas de lanches. – Ela diz abraçando a si mesma – Procurei um pouco, e como tinha muito barulho, muita bagunça... Andei até chegar aqui.
- Eu poderia jurar que a Raquel, ou então pelo menos o seu namorado estaria com você.
- É, eu também. Mas a Raquel está com o namorado dela... Então sabe como é, não da pra contar tanto com ela por perto sem segurar vela. E o Fabiano não tenho ideia de onde ele foi. Quando olhei bem, não tinha mais ninguém perto, nem Fabiano, Raquel, meus pais. – Ela deu de ombros e riu. – E você?
- Comigo foi diferente. Todo mundo já tinha se espalhado... E eu só queria poder ver o lugar sem muita gente falando sem parar – Digo, olhando a minha volta e abrindo os braços. – Acabei achando o lugar certo.
- Não tem como esperar algo diferente vindo de você Edan – Ela diz rindo.
- E graças a isso, achei o lugar mais confortável. Daqui até consegui ver uma cachoeira – Digo, tentando relocalizar a cachoeira de antes com um olhar rápido. Sigo pela ponte, e assim que consigo achar, aponto na direção dela – Está bem ali. Depois vou falar para a Carol sobre isso, com certeza ela vai adorar saber dessa cachoeira, e talvez queira ir lá.
- É, talvez sim... – Anne fica em silêncio por um tempo. Percebi que seu tom de voz mudou um pouco. Ela respira fundo, e então fala depois de um tempo – E vocês dois, como estão indo?
- Não entendi a pergunta. – Balanço a cabeça.
- Você sabe... Vocês dois, juntos... Namorando, sabe? – Ela deu de ombros. Balanço a cabeça lentamente.
- Ta agora entendi. Nós dois estamos bem, mas não estamos namorando. – Eu respondo isso, por mais uma vez. Anne me olha, mas ela não diz nada. – Agora que penso nisso, não sei o que acontece com todos vocês. Você, a Raquel, o Leandro... Todo mundo acha que eu e a Carol namoramos, mas somos só amigos, que as vezes acabam ficando... Sempre foi só isso, desde aquele dia da lanchonete. – Paro de falar. Anne não me responde. Me lembro como ela parecia estranha nesse dia. Ela somente me olha, de forma que não sei definir – Fazemos o que queremos, sem pegarmos no pé um do outro, eu não justifico nada da minha vida para ela, e nem ela se justifica pra mim, e as vezes acabamos ficando juntos. Não temos nada realmente sério, é só isso.
Anne balança a cabeça algumas vezes, aparentemente aceitando e desviando o olhar de mim – Tudo bem...
- Tudo bem mesmo? – Eu a encaro por alguns segundos, esperando que ela acredite em mim dessa vez, e me de uma resposta. – Porque todas as outras vezes eu te falei a mesma coisa, e você não confiou em mim. Dessa vez, você acredita em mim?
Seu olhar parece um pouco perdido. Ela fica quieta por algum tempo, olhando para baixo, e então para a paisagem a nossa frente. Agora que tento puxar pela memória, algumas das vezes que ela ficou estranha foi depois de falarmos disso, mas duvido que tenha alguma coisa haver esse assunto com ela se estressar, não é possível. Anne então me responde – Sim, eu acredito em você...
Eu não esperava que ela me respondesse isso, na verdade, achei que Anne iria querer debater muito mais do que isso – Bem... Então tá... Se perguntou de mim, então também quero saber, como anda seu namoro?
- O meu namoro anda até bem, estou até usando aliança... – Ela ergue a mão, me mostrando a aliança, realmente o mesmo modelo que Fabiano usa e igualmente brilhante, aparentemente muito bem cuidada. Mas por algum motivo, consigo ver que ela está desanimada, e seu olhar ainda está perdido. Ela então coloca as mãos atrás do corpo – O Fabiano só está um pouco distante as vezes, ainda com as manias de querer ser sempre o primeiro ou o melhor, querendo discutir sem motivos, e fazendo umas coisas que me incomodam bastante.
- Bem chato isso... – Digo, dando de ombros. – Ele faz parecer que as coisas estão indo muito bem.
- O Fabiano é ótimo em fazer as aparências quando as coisas não estão assim tão boas... Eu não sou tão boa em disfarçar, mas todo mundo engole quando ele finge estar tudo bem. – Seu tom de voz é seco, ela cospe as palavras como se fossem ofensas. Isso que ela diz me deixa incomodado, mas não sei o porquê. – Quando chegamos da viagem, ele quis saber porque você veio, depois de discutir quis ficar de muitos beijos e carinho comigo... Depois fingiu para todo mundo que estava tudo bem.
Puxando pela memória, lembro que Anne e Fabiano com caras sérias depois de um tempo, mas não esperava ser por causa disso. – É uma razão bem pequena pra acabarem discutindo.
- Como falei Edan, discussões sem motivos... – Ela da de ombros e ri.
- E você não pensa em fazer algo? Parar pra tentar conversar com ele...
- De que adianta tentar falar com alguém que não sabe escutar ninguém além de si mesmo? – Anne cruza os braços e me olha. Seu olhar é duro, falar disso deve estar quase sendo algum desabafo para ela – Eu já tentei, em quase cinco meses de namoro você não sabe quantas vezes eu tentei falar com o Fabiano, e não deu em nada, porque ele não sabe ouvir. Chegou uma hora que só desisti.
Me lembro de algo nesse momento, que me força a perguntar – Me diz uma coisa... Por acaso ele é alguém agressivo?
Anne me olha, surpresa com minha pergunta – Agressivo? Não, nunca foi agressivo comigo. Ele sempre é bem carinhoso... Por que a pergunta?
Ótimo, pelo menos ele não está sendo agressivo com a Anne, como foi comigo a tempos atrás. Isso me deixa um pouco mais relaxado – Apenas uma curiosidade, pelo menos ele não é bruto nem nada assim... Mas a sua situação é difícil...
- Você não tem ideia... Vendo como desisti fácil, as vezes eu penso se realmente gosto dele... – Ela responde, balançando a cabeça. Lembro muito bem que ela entrou nesse namoro por minha causa, e pelo visto não está indo tão bem quando parecia – Mas não quero desabafar sobre meu namorado, não vale a pena falar disso. Alguma hora nós nos acertamos.
- Pois bem, então... Do que falar?
- Não sei... Bem, se passaram três meses sem nos falarmos, tem alguma novidade? – Ela me questiona.
- Novidade... Não, nenhuma. E você?
Anne ri com o que digo – A principal novidade é que estou de viagem com meus pais e meus amigos, agora tenho um peixinho dourado em casa, e estou querendo estudar alguma coisa pela internet. – Balanço a cabeça com o que ela diz, percebendo o claro tom de ironia de Anne – Ai Edan, eu não acredito que você não tenha nenhuma novidade depois de tanto tempo.
- Não sou o único por aqui sem novidades. – Respondo.
- Eu tenho sim. – Ela diz, agora sua voz foi bem mais manhosa, e até fofa. Acho que senti falta disso... Espera, eu senti falta? – Uma novidade ruim é que mês passado eu queimei o liquidificador de casa tentando fazer sorvete de pote.
Cerro o olhar – E como você conseguiu essa façanha?
- Bem... – Ela começa a falar, esfregando as mãos – Eu estava com vontade de tomar sorvete, o Fabiano queria também, então peguei uma receita na internet, sabe... Daqueles que fazemos com sucos de saquinho. Fiz um pote cheio de sorvete, e quando estava fazendo o segundo... Puf! – Anne faz um pequeno gesto de explosão com as mãos. Ver ela contando é engraçado, gostaria de ter visto isso.
- Puf? – Repito, olhando para ela.
- Sim, parou de funcionar... Um cheiro de queimado apareceu dele sem explicação, e o pai teve que comprar outro liquidificador. – Ela termina de falar e então começa a rir.
- Inacreditável... – Balanço a cabeça negativamente com isso.
- Não acha? – Anne cruza os braços – Imagina que ele iria pifar tão fácil, é uma coisa tão frágil... E eu tive sorte de não ter ficado doente.
- Tem razão... – Penso um pouco, e então falo – Mas ainda assim, teve um tempo que você faltou uns três dias seguidos. Também estava doente?
Anne da um sorriso pequeno – Ah sim, mas isso foi outra coisa, mas não é nada demais. Não precisa se preocupar. – Eu não senti muita firmeza nas palavras de Anne. Seu tom de voz pareceu diferente, parecia angústia. Ela então continua a falar, agora mais animada – Mas sério, não acredito que não tenha novidades.
- Você sabe como é minha vida, algumas coisas aconteciam bastante quando você estava por perto... Depois que você se afastou... – Anne desvia o olhar, ficando com um sorriso bobo. O que será que falei de errado? Acho que dei a entender que sem ela por perto, minha vida é totalmente parada. Acho que de certa forma, isso é verdade mesmo. Mas com certeza ela não gostaria de saber das vezes que acolhi Carol em casa, ou então que a acompanhei em algumas festas que ela vai. Também não acho que ela vai gostar de saber das vezes que acho que estou sendo seguido. E de jeito nenhum falarei para ela sobre a minha depressão – Bem, de diferente só que meu tio problemático parou de beber, e eu adotei o cachorro que me mordeu daquela vez... É só isso?
Ela começa a rir de novo – É sério isso? Você adotou o cachorro que te atacou?
- É... Mais ou menos, foi um dia de chuva, eu estava voltando para casa e ele começou a me seguir, e quando cheguei ele invadiu o quintal... E decidi deixar ele morando comigo enquanto não me mordesse de novo... – Anne continua rindo enquanto me ouve.
- Eu adoraria ter visto isso acontecendo. Deve ter sido bem engraçado – Ela diz entre risadas. Preferi omitir o fato que isso foi no mesmo dia que paramos de nos falar. – Qual o nome dele?
- O único nome que pensei para aquele bicho ranzinza foi Mítico. – Dou de ombros.
- Cachorros são iguais aos donos, ele só é igual a você – Anne ergue as mãos.
- Eu não sou ranzinza igual ele.
Arqueando as sobrancelhas, ela responde – Ah sim Edan, as vezes você é.
- Prefiro acreditar que não sou. – Bufo, balançando a cabeça e reviro o olhar.
- Viu? Está sendo ranzinza agora. – Ela ri, acertando uma cotovelada bem de leve no meu braço.
- Ta bom, talvez as vezes eu seja...
Anne ri por alguns segundos. Ela recompõe sua pose, e então estala os dedos – Me lembrei de algo. Por acaso aquilo entre nós ainda está de pé?
Estranho o que ela diz – Aquilo?
- Sim. A nossa aposta, lembra? – Ela diz, me fazendo puxar a memória.
- Ah, você diz aquela de fazer com que eu me importe com pelo menos uma coisa? – Questiono. Ela confirma. – O que tem ela?
Ela da um sorriso – Nós ainda estamos apostando?
Passo uma mão no cabelo, pensando a respeito. Me lembro de algo. Anne nem ninguém sabe o porquê de eu decidir não me importar com mais nada e me mantenho firme a isso com todas as minhas forças. Em todos os meus dias, eu jamais me importei com nada e nem ninguém. Mas mesmo assim, não acho que vou negar isso a ela – Claro, estamos sim.
- Bem, então aqui eu reforço minha aposta. Eu farei você se importar com alguma coisa! – Ela diz, totalmente convicta. – Ainda vou conseguir ganhar, rir da sua cara e ficar satisfeita.
- É isso que nós veremos... E eu vou rir de você quando falhar nisso... – Digo, erguendo meu punho devagar para ela. Anne olha meu gesto, e da um sorriso meigo e sincero, fazendo o mesmo que eu. Assim encostamos nossos punhos devagar, e ficamos por alguns segundos, reafirmando nossa aposta. – Está apostado... Chata...
- O melhor entre nós vencerá... Idiota... – Ela diz com sua voz suave, a mesma coisa que eu disse antes.
Pego gentilmente seu punho e coloco no meu peito, quase no mesmo lugar que ela encostou quando apostamos da primeira vez. – Isso não é só uma aposta...
- ... É um acordo, e uma promessa... – Ela completa a frase. Agora, ainda não entendo totalmente o que ela quis dizer com isso, mas não importa, afinal... Em nenhum momento, Anne deixou de sorrir e de olhar para mim.
Uma brisa gélida acaba tocando meu rosto, consigo até sentir minha roupa esfriando um pouco. Eu olho para Anne, ela está se abraçando e esfregando os braços – Nossa, aqui está bem frio... Eu deveria ter me agasalhado melhor antes de sairmos...
Acabo olhando melhor para as roupas que ela usa, só uma camiseta preta com uns detalhes em cinza escuro de manga longa, uma calça jeans e tênis, além de manter seu cabelo ruivo solto, que agora tem alguns fios voando com o vento. – Pelo visto, você não saiu preparada para esse clima. O sol de hoje não está esquentando tanto assim.
- Sim, pensei que só uma camiseta de manga longa estaria ótima... Deixei minha blusa em cima da cama.
Olho para minha blusa, ela é pesada o bastante pra esquentar rápido, além de ser bem comprida. É perfeita para ela se aquecer – Quer minha blusa emprestada?
Ela me olha, pelo jeito não esperando essa minha ideia – Sua blusa? Mas e você? Não pode ficar pegando friagem.
- Não se preocupe quanto a isso, estou acostumado em sentir o frio.
- Obrigada, mas sério, não precisa... Eu estou bem, da pra aguentar... Não quero que você fique com frio só pra eu me esquentar... – Ela nega com a cabeça, e se vira novamente. Ela pode até estar tentando disfarçar, mas consigo ver bem como ela está com frio, tremendo, e tentando se aquecer sem sucesso. Não posso deixar ela dessa forma de jeito nenhum. Algo passa pela minha cabeça, é uma ideia insana demais, mas me parece o único jeito nesse primeiro momento. Olho para minha blusa por alguns segundos, pelo que vejo ela é espaçosa o bastante para isso. Acabo tirando o capuz e abrindo o zíper da blusa, já sendo golpeado pelo ar frio na hora, me aproximo de Anne e a envolvo dentro da minha blusa. Ela me olha por cima do ombro, tão surpresa que nem consigo imaginar o que ela pode estar pensando agora. Ela abre a boca e tenta falar, com a voz falha – O que está fazendo?
- Pensei comigo que, se o problema era um de nós ficar desagasalhado e pegando frio, então eu encontrei a solução... – Dou de ombros assim que paro de falar. Acabo vendo como Anne está um pouco tensa, mas ela não diz nada. Na verdade, também não sei direito o que estou fazendo agora – Acho que minha ideia funcionou.
- Sim, mas...– Ela começa a falar, seu tom de voz se torna mais calmo aos poucos – E... E se alguém aparecer e nos ver assim, qualquer um que seja... O que vão pensar?
- É uma boa pergunta... Não sei o que pensariam. – Acabo concordando.
Ela olha na direção de onde viemos, a única entrada daqui – Isso pode dar algum problema para nós dois...
- Tentarei dar meu jeito de explicar... Mas se não apareceu ninguém até agora, não sei se vai aparecer tão cedo. – Anne ergue um pouco sua cabeça, e encosta a sua nuca no meu ombro, respirando profundamente. Seu cabelo encosta suavemente no meu rosto, fazendo cócegas, mas nada que seja desagradável. É bem confortável de certa forma.
Anne fica um momento em silêncio, e então me diz, com a voz mais calma – Mas isso é estranho, não acha?
- Talvez, mas com certeza é melhor do que deixar você passando frio... – Assim que respondo, Anne da um sorriso.
- É, acho que você tem razão... – Ela parece ficar menos tensa em cada segundo. Percebo que suas mãos seguram minha blusa com firmeza, penso que é para abrir a blusa mas me engano, ela está impedindo que isso aconteça. – Mas não é errado?
Balanço a cabeça – Sinceramente, eu não sei.
Ela então se vira lentamente, ficando de frente para mim, com suas mãos fechadas sobre meu peito. Minha blusa é grande o bastante para manter Anne dentro e ainda termos um pouco de espaço, sem sobrar brechas para entrar vento, e ainda nos manter aquecidos. Agora que percebi, seu corpo está bem junto ao meu. Também notei que parei de segurar minha blusa, e na realidade estou abraçando Anne. Isso deveria ser normal, mas espera... Eu nunca fiz isso antes. Algo parece diferente. Eu estou nervoso com alguma coisa. Ela olha para mim, e então desvia o olhar, um pouco sem jeito. – Por que fez isso?
- Porque você estava com frio... – Respondo com a voz tão baixa quanto a dela. – Está melhor agora?
- Estou... Sua ideia foi boa... – Ela responde com um sussurro, balança a cabeça afirmando com um pequeno sorriso. Suas mãos se movem aos poucos, e então deslizam devagar, indo até minhas costas, ao ponto de ela estar me abraçando também. Ela se aproxima de mim cada vez mais, me olhando de uma forma que nunca imaginei – Eu não deveria estar fazendo isso...
- Acha que é errado? – Questiono, estamos sussurrando.
- Eu não sei... – me responde, ainda mais perto de mim. Posso sentir sua respiração.
- E você se importa se for errado? – Pergunto novamente. Nossos rostos quase se tocam.
Anne me da um sorriso – Nenhum pouco... – Ela responde, e nesse momento, nos beijamos.
Eu a abraço ainda mais, segurando tão perto de mim quanto posso, sentindo suas mãos agarrando minha camisa com força. Qualquer distância que existe entre nós dois desapareceu. Poder beijar Anne, está sendo algo natural, calmo, mas ao mesmo tempo tão intenso, tão quente... Nos afastamos devagar, nossos olhares estão conectados. Um único e tão longo segundo passa, eu olho para seu rosto, em cada detalhe, da mesma forma que sei que ela faz comigo. Nossos rostos, nossas bocas tão próximas, e como se atraídos um ao outro, nós nos encontramos novamente, para um beijo muito mais profundo do que antes, repleto de uma intensidade que jamais imaginei ter. Não sei como descrever, incontáveis sensações me invadem e logo se espalham, ter a sensação de realização por fazer algo que eu nem sabia que queria tanto. Eu não tinha ideia de como eu queria tanto isso. Nunca pensei em como eu ansiava por esse momento, queria tanto poder beijar essa chata, ter ela comigo, ter ela para mim. Não quero soltar Anne, não quero me afastar dela e ficar longe de novo, não sei o porquê disso, mas simplesmente não quero. O tempo para a nossa volta, não escuto mais nenhum som ao redor, não sinto mais o frio, não sinto mais o mundo, não sinto o vazio, tudo que existe a nossa volta não tem mais importância alguma. Nesse momento parece ser somente Anne e eu.
Nos afastamos, tão devagar quanto podemos. Está claro para nós dois que não queríamos ter parado. Nos olhamos, estamos tão próximos como antes, sem dizer nada, não acho que temos algo a dizer por agora. Tudo a nossa volta retorna gradativamente. As vozes de fundo, o lugar onde estamos, tudo. Anne encosta sua cabeça no meu ombro, se aconchegando devagar. Ela me abraça ainda mais forte agora, tanto que eu retribuo sem hesitar – Você não tem ideia de como esperei por isso...
Fico surpreso, um tipo de choque parece ter corrido por todo meu corpo – Mesmo?... Eu... Não esperava por isso... Achei que era... Impossível...
- Acho que posso dizer que sempre quis, mas nunca tive uma chance... – Ela pausa por um segundo – Ou se já tive chance, me faltou coragem...
Isso me faz pensar. Nas vezes que Anne me falava que gostava de alguém, mas que só ela tinha como resolver. Nas vezes que falava que tentava, mas sempre lhe faltava coragem. – Espera... Nas vezes que você me dizia que faltava coragem pra falar... Então...
- Eu estava falando de você... Em todas as vezes... – Anne da uma risada, e erguendo a cabeça, ela me olha com um sorriso. Eu não sei nem mesmo qual minha expressão agora, não sei o que meus olhos podem estar dizendo, se estou boquiaberto e meu rosto entrega minha surpresa, tanto por perceber quanto por levar tanto tempo para notar. – Percebeu agora?
- Sim, só agora... Mas percebi... – Respondo, balançando a cabeça, ainda pensando nas vezes que Anne estava falando de mim sem que eu sequer conseguisse perceber.
Ela se afasta aos poucos de mim, acabo soltando Anne, meu corpo e minha mente não querem, gritam desesperadas para que eu não faça isso de nenhuma forma. Eu não quero, eu não posso solta-la, é como se uma parte única de mim acabasse de se separar de mim, mas algo me diz que é preciso fazer isso. Ela está com um sorriso bobo – Acho que nós não devemos falar disso para ninguém... Esse será o nosso segredo.
- Sim, é melhor que ninguém fique sabendo. – Digo, dando de ombros. Me convenço de não comentar disso com absolutamente ninguém. Apesar que ninguém acreditaria mesmo.
Anne ergue o mindinho em minha direção – Promessa de dedinhos?
Ver isso me da vontade de rir, as vezes Anne consegue fazer algumas coisas tão meigas que me divertem. Contenho minha vontade de rir facilmente, e assim faço o mesmo gesto que ela, e assim firmamos um acordo. – Claro, promessa de dedinhos.
Ela afasta um pouco, acabo percebendo que a aliança que ela usava em suas mãos sumiu. Será que ela tirou em algum momento? – Bem, acho melhor não ficarmos do jeito que estávamos antes.
Arqueio as sobrancelhas – Nos beijando?
Ela olha pra mim rindo, e um pouco sem jeito – Não... É, também. Mas me refiro a ficarmos abraçados.
- Só estava te protegendo do frio... – Digo olhando para minha blusa. E então volto meu olhar para Anne – O restante que aconteceu, foi natural.
Ela leva as mãos a cintura – Eu sei disso... É, e conseguiu me proteger mesmo... Eu não sinto mais nenhum frio agora...
- A ideia foi boa, por mais que tenha sido do nada. – Respondo, me encostando na arvore outra vez, levando minhas mãos aos bolsos da blusa.
- Eu concordo com você... Bem, eu queria mais, pena que isso não é uma boa ideia... Alguém pode aparecer aqui nos procurando... – Ela parou de falar de repente. Caminhando e afastando aos poucos de mim. Ela não está olhando para a paisagem, mas sim para onde todas as pessoas estão reunidas. Ela anda devagar, ficando quase na ponta dos pés para poder ver, parece até que ela não quer ser vista. Olhando por um tempo, Anne se vira para mim novamente, e vem caminhando apressada na minha direção – Quer saber, que se dane tudo...
Nós nos abraçamos outra vez, e voltamos a nos beijar, com muito mais intensidade.
*****
Acabamos de atravessar de volta o corredor de antes, chegando de volta para a entrada desse mirante. Aqui está bem mais vazio que antes, acho que todos já estão aproveitando a vista, ou foram embora. Agora consigo ver que, além de onde eu e Anne estávamos, tinha também mais um lugar para a esquerda, e pelo que tento enxergar, ali é ainda maior que o lugar onde Anne e eu estávamos. Antes de sairmos, olhamos bem ao redor para termos certeza se não havia mais ninguém por perto, pra pelo menos nos reunirmos, mas nada. Percebo a mãe de Anne sentada em um banco, com uma garrafa de refrigerante na mão, Anne se aproxima dela assim que a vê.
- Nossa, finalmente alguém apareceu... – Regina diz, assim que vê Anne e eu nos aproximando. – Achei que tinha sido abandonada aqui.
- Ué mãe, mas porque você ficou aqui sozinha? – Anne pergunta.
- Todo mundo foi para um lado diferente. Fui com seu pai para aproveitar toda a vista, mas esse lugar é alto demais pra mim – Regina diz, fazendo uma pausa e dando de ombros – Decidi em ficar por aqui, e até agora ninguém apareceu além de vocês.
- Pelo menos conseguiu aproveitar? – Anne pergunta novamente.
- Por mais de um minuto? Sim, acho que consegui ver bem. – Regina diz.
- E você está por aqui a quanto tempo? – Pergunto.
- Não sei, já faz um tempinho. Temos que ver depois se iremos ficar aqui mais um pouco, ou se já voltaremos para a casa. – Ela para por um segundo, olhando para mim e depois para Anne – E vocês, já aproveitaram?
Olho para a direção de Anne, ela parece ter ficado sem graça com a pergunta da mãe. Acho que ela nem vai conseguir pensar em uma resposta. Bem, fazer o que, parece que é comigo – Sim, conseguimos aproveitar bem a vista. O lugar é bem bonito.
- Verdade, e já tenho uma ótima foto de recordação graças ao Edan. – Desvio o olhar. Isso não é nada demais, não precisava ser falado.
- Ainda bem. – Regina diz rindo. Eu olho em sua direção, ela está levando as mãos a cintura. – E uma coisa... Vocês conversaram?
- O que? – Questiono ela.
Ela me responde com um sorriso – Você sabe.
Anne olha primeiro para sua mãe, e então para mim. Consigo ver toda a curiosidade em seus olhos – Conversamos sobre o que?
Espera, já sei do que ela está falando. Me lembrei daquele dia no mercado. Mas antes que eu falasse qualquer coisa, Regina fala primeiro – Eu sei que vocês estavam sem se falar... Mas se o Edan veio nessa viagem com todos nós, e vocês estão aqui agora... Acho que está tudo bem.
- Como você ficou sabendo? O Edan te contou? – Anne olhou da sua mãe para mim algumas vezes. Regina nega balançando a cabeça calmamente. Eu dou de ombros, como se eu não soubesse de nada – Tudo bem, nós já conversamos sobre isso, e nos resolvemos. Estamos bem agora.
- Isso é bom de ouvir... Vocês dois tem uma boa amizade, não é bom se afastarem por motivos pequenos. – Ela deu de ombros, olhando seu celular um segundo e se afastando.
Anne olha para mim, com um sorriso estranho ela puxa de leve a manga da minha blusa. – Edan, tem certeza que não falou nada com minha mãe?
- Absoluta, não falei nada. – Digo, desviando o olhar por um segundo.
A vejo cruzando os braços e me olhando. Ela não parece incomodada ou brava. Na verdade, ela só sorri e me olha de um jeito meio bobo e balançando a cabeça negativamente, que por algum motivo é agradável – Você mente muito mal.
- Percebeu tão fácil que eu estava mentindo? – Arqueio uma sobrancelha, levando as mãos aos bolsos da blusa.
- Eu sei quando você tenta me enganar Edan, mas não consegue... – Ela balança a cabeça uma vez. Dando um pequeno riso, ela continua – Por algum motivo, quando se trata de você eu sempre sei, sempre sinto dentro de mim... Vejo através de você... Acho que é um efeito.
- Efeito? – Questiono, pendendo a cabeça para o lado.
- Claro, efeito de gostar tanto de você idiota... – Anne sorri de um jeito meigo, e me deu um soco no braço. Tento responder, mas não sai nenhuma palavra da minha boca. Acho que agora sou eu quem ficou sem jeito. Anne vendo minha reação acaba rindo. Ela olha em volta por um segundo – É, realmente gosto de você Edan... Agora consigo falar isso para você sem nenhum medo, apesar que gostar pode ser uma palavra muito fraca...
- Dessa vez você teve a coragem que precisava.
- Coragem e incentivo, depois de ter sido pega de surpresa. – Ela diz, pegando na barra da minha blusa e sorrindo.
Penso por algum tempo, ficando em silêncio. Minha mente está fervilhando, mil coisas surgem e ecoam sem parar, tanto que mal consigo organizar meus pensamentos. O que aconteceu agora a pouco não sai da minha imaginação... Sei lá, Anne e eu nos acertamos e voltamos a nos falar, consigo me sentir eufórico por isso, mas agora as coisas não são as mesmas, algo parece ter mudado. Não deveria me sentir assim, eu não consigo deixar de lado totalmente, seja com Anne ou com isso tudo. Uma parte pequena de mim se sente ligada a Anne agora. Eu mesmo não entendo bem o motivo de eu estar assim, mas algo realmente mudou, e mudou muito. – Não sei se o que eu vou falar vai fazer sentido... – Acabo falando para mim mesmo, mas percebi que foi alto o bastante pra Anne ouvir.
- Falar o que? – Anne arqueia as sobrancelhas.
- Sabe... Eu sei que não parece olhando na minha cara, mas até que estou gostando bastante disso Anne, mais do que você deve imaginar... – Paro de falar por um segundo, tentando minimamente organizar meus pensamentos. – Sendo sincero, acho que gostei bem mais do que eu mesmo imagino... Eu nem sei se o que falei teve algum nexo, eu mal estou pensando direito... – Eu digo, atropelando meus próprios pensamentos. Eu quero falar algo, mas nem mesmo sei o que quero falar. São tantas coisas que quero falar para ela, mas eu me perco e não consigo falar nada. Vejo como Anne sorri depois do que eu disse, acho que nunca via ela desse jeito.
- Isso é sério? – Ela pergunta, mexendo em uma mecha de seu cabelo. – Quero ouvir você...
- Finalmente te achei Anne! – Escutamos uma voz que se destaca, chamando nossa atenção. Meu corpo treme de imediato, não por medo. É por... Desespero... Fabiano. Ah não... – Onde você estava? Fiquei preocupado.
- Bem, eu... – Ela olha para mim uma vez, e então de volta para ele. Seu olhar agora é quase indecifrável para mim. Seu tom de voz mudou totalmente. Só agora percebi que acabei de recuar um passo – Eu... Estava aproveitando a vista, e quando saí encontrei o Edan e minha mãe, e ficamos aqui conversando.
- Ficou todo esse tempo sozinha, que vacilada minha... Te procurei, mas não achei você minha linda. Desculpe não ter te achado antes... – Escuto ele dizendo, envolvendo Anne com um braço e a levando para longe.
Eles estão longe agora, não consigo mais ouvir o que falam. Anne olhou para trás numa última vez, até os dois sumirem da minha visão. Ergo minha mão, tentando inutilmente alcança-la de forma desesperada, mas meu corpo sequer sai do lugar. Minha mão lentamente se abaixa, junto ao meu olhar.
- Eu não sabia que aqui tinha sinal de celular, acabei recebendo uma ligação mas nada importante... – Regina diz, caminhando até o meu lado. Ela observa de um lado ao outro, e então continua a falar – Ué, cadê a Anne?
- O Fabiano apareceu, ele a levou pra procurarem todo mundo... – Consigo falar, minha voz sai desinteresse para mim mesmo. Meu olhar se perde pelo chão de uma forma que não sei descrever. Faço um gesto com a cabeça e continuo – Eles foram por ali...
Ela passa a mão na testa, parecendo incomodada – Ta... Então vou ir atrás deles, vai ver eu consigo achar todo mundo. – Regina para, e então olha para mim – Você vem?
Nego com a cabeça uma vez, sem conseguir encara-la por muito tempo e vestindo o capuz da minha blusa – Não, ficarei por aqui mesmo... Acho que preciso de um tempo sozinho...
- Certeza? – Ela questiona.
- Sim. Pode ir. – Acabo respirando fundo, sinto como se o ar no meu peito me corroesse como se fosse ácido – Ficarei bem...
Regina então segue pela mesma direção que Anne e Fabiano foram. Foi realmente bom ela ter me deixado aqui. Vou para um dos bancos, um bem próximo à rua e me sento, juntando minhas mãos a minha frente.
Me sinto estranho. Angustiado, triste, com uma dor no peito, e com o sentimento de que acabei de perder algo importante. Essa sensação se transforma em pensamentos, que ecoam na minha cabeça. A sensação de ter encontrado uma coisa importante, que finalmente encontrei algo importante que perdi a muito tempo, e essa coisa ter sido arrancada de mim logo em seguida, e ter que a ver indo embora sem eu poder fazer nada a respeito.
E daí se eu a vi indo embora?
E daí se eu sinto que perdi alguma coisa?
E daí, eu lá ligo pra isso?
Eu não ligo, que vá! Desapareça! Eu não ligo, não to nem aí pra isso, nem para nada... Eu não dou a mínima...
...Eu não ligo...
Não importa o quanto eu repita isso para mim mesmo, não importa o quanto eu queira agora, eu não consigo deixar de me importar completamente com isso, eu mesmo não pareço querer deixar se me importar, não sei porque.
Eu mesmo pareço recusar a isso, eu sinto muito bem como uma parte do meu corpo e da minha mente querem se manter agarrados a isso, de uma forma quase desesperada. A sensação que eu tenho é que, se eu me forçar a não me importar, estarei abandonando algo importante, uma parte de mim que não posso perder. Eu não deveria me sentir assim... Não deveria... Eu nunca tive nada disso, ela nunca foi minha, então... Porque eu não consigo deixar pra lá?
O vazio começa a surgir em minha mente, tantos pensamentos, tanto conflito é engolido por esse vazio, aos poucos desaparecendo por completo, até restar apenas o silêncio. Meus olhos não se focam em nada, não escuto nada, não sinto nada. Minha mente está em silêncio e no escuro, engolida pelo abismo. Nada agora está parecendo importar, nada tem importância ou um significado. A sensação de se estar no vazio é que esse é o meu lugar, algo insignificante como eu deveria ficar aqui e nunca mais sair, é acolhedor. Minha última sensação antes de tudo apagar é que, mais uma parte de mim acabou de desaparecer...
Considerações finais:
E ficamos por aqui com mais esse capítulo. Dentre todos, acho que o capítulo 26 é disparado o maior capítulo do arco da viagem, com quase 9700 palavas em sua extensão. O que acharam dele? Longo, apesar de tudo ocorrer em um pequeno espaço de tempo, ocorreram muitas coisas... E o que me dizem do acontecimento, acredito que tão esperado por muitos, e por outros nem tanto.
Espero que tenham gostado do capítulo. Foi grande e provavelmente a leitura demorou, mas tentei me dedicar bastante para trazer algo bem feito. Espero que gostem, que continuem lendo, que ainda tem muito chão pela frente. Os aguardo no próximo capítulo.
Bạn đang đọc truyện trên: Truyen247.Pro