VII - βάθη
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Aviso: Gatilho
Feridas expostas
Alto mar
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Desperto com o balançar incessante do lugar que me encontrava, e com a dor insuportável que percorria meu corpo. Eu não queria abrir os olhos, tinha medo do que iria ver. Alguém toca no meu rosto, e abro os olhos recuando instintivamente, e me arrependendo amargamente logo em seguida com a dor que quase me faz gritar e paro meus olhos na mulher que havia me tocado, ela ainda mantinha sua mão suspensa no ar, e me fitava com pesar. Baixo meu olhar para minhas pernas e vejo o motivo de sua preocupação, prendendo o ar e contendo as lagrimas de agonia que brotaram no cantos dos meus olhos.
A túnica estava cheia de rasgos e ensanguentada. Puxo a mesma para cima, gemendo com a dor que o simples toque do tecido se arrastando contra minha pele me causou, cobrindo minha boca para sufocar o grito ao ver os rasgos na minha pele, a minha carne exposta. E o sangue, ah deuses, eu não aguentava olhar. Desvio o olhar me encolhendo e me reprimindo mentalmente pelo movimento que só me causou mais dor. Volto a olhar para a mulher, que segura meu pulso em uma tentativa de me reconfortar.
- Sua febre baixou, e você finalmente acordou - Ela diz baixo
- O que... como eu vim parar aqui? - Apoio minha testa na mão, e a sinto quente e suada. Minhas ultimas lembranças era de ter sido amarrada naquele maldito mastro e do som do chicote contra minha perna, e a dor. Não que ela tivesse ido embora
- Você veio para cá desmaiada, um dos homens te carregou até aqui e sua perna sangrava muito. Eu consegui limpar um pouco, usando um pedaço da sua túnica que soltou e agua, mas volta constantemente - Ela diz
- Sas efcharistó¹ - Sussurro e ela assente - Como... como está o outro? Eu o vi ser trazido para cá... -
- Ele desmaiou por causa da febre, e ainda não acordou - Ela acena com a cabeça
Olho para onde ela indica e mordo meu lábio inferior ao ver as costas do pobre homem, dilaceradas. Haviam cortes muito mais profundos e intensos, e havia outra garota tentando limpar as feridas com cuidado, e de vez em quando passava uma toalha no rosto dele. O barco sacode outra vez, com força, e me segurei em um gancho começando a observar o lugar onde estávamos. O porão do navio era só um pouco mais limpo que o lugar que estávamos antes, mas o numero de ratos era o mesmo, circulando pela gente, passeando pelas vigas e sumindo nas rachaduras da madeira. O local também era absurdamente úmido e dependendo da força que o mar nos atingia, o chão era inundado com a agua salgada que elas aproveitavam para nos tratar as feridas. Era a única coisa que tínhamos para ajudar.
O cheiro de maresia e madeira mofada predominava, e não ajudava com o enjoo crescente graças ao balançar do navio. Eu me sentia zonza e fraca, e com uma ansia crescente. Eu vomitaria, se houvesse alguma coisa no meu estômago. Respiro fundo e encosto a cabeça contra uma das paredes assim que a garota me ajuda a se sentar. Homens gritavam palavras de ordem que eram indecifráveis aos meus ouvidos, e o mar ia avançando com cada vez mais violência contra o navio, impiedoso como os ventos que pareciam ter rasgado as velas pela forma que assobiavam, fazendo a grande estrutura balançar.
A agua invadia o local onde estávamos com mais frequência e força, e a sensação é de que iríamos tombar, e assim um medo crescente fora tomando conta do meu peito. Trovões impiedosos ressoavam nos céus, e após um alto estrondo, acompanhado com a queda de algo e um cheiro intenso de madeira queimada e gritos dos homens que corriam para todos os lados acima de nós deduzo que um raio tenha nos atingido. Tento me encolher, mas minha perna ferida não permitia que eu me movesse de alguma forma enquanto Zeus castigava o navio. Aparentemente os deuses não gostam de homens que vendem escravos.
A tempestade continuava a nos castigar, mas algo muito mais pavoroso veio por baixo d'agua. O navio balançou mais uma vez, e eu senti ele saltar um pouco, mas não haviam batido em nada, isso veio dos nossos pés. Os gritos dos homens foi o que veio em seguida. A garota próxima a mim começou a chorar, e algo se chocou de cima contra o navio, e mais homens gritaram. Sangue então começou a escorrer dos espaços entre a madeira, caindo sobre nós. Um homem abre a porta do porão com força, e pudemos ver por trás dele a criatura grotesca, com escamas viscosas e negras como a noite com agua escorrendo por seu corpo assim como sangue escorria por suas presas, onde pedaços de carne e roupas estavam agarrados. Pude olhar para seus olhos, cinzentos como o mar que favorecia seus ataques. O homem não conseguiu descer, o ataque da thalássio fídi² foi mais rápido. Todos gritamos de horror quando as presas do monstro se fechou contra o corpo do homem, que não era mais que um marujo que nos olhava com desespero, e a porta caiu o fazendo desaparecer das nossas vistas.
Os homens no convés tentavam braviamente lutar contra a criatura, que parecia querer se enroscar no navio. A madeira ia estalando, e o sangue latejava em meus ouvidos a espera do momento em que tudo iria se partir, e não haveria como se proteger da enorme serpente. Então, algo aconteceu, e a serpente chiou. Um barulho alto e assustador antes do som de algo pesado cair na agua e gritos de vitoria dos homens ecoarem lá de cima, depois de alguma forma eles terem afastado a serpente.
A comemoração não durou muito, e os homens tiveram que voltar a enfrentar a chuva que não nos permitia chegar ao destino final. Mais homens desceram para remar contra a tempestade, agora que aparentemente havíamos perdido as velas e o vento estava contra o nosso favor. A luta incansável parecia não chegar a um fim, e o balançar do barco tornava-se cada vez mais violento. Ondas cobriam o navio e a agua caía sobre nós, nos encharcando. Fecho os olhos, sentia-me zonza. Alguém não aguentou e acabou vomitando. Meu estômago parecia querer fazer, o mesmo, mas como não havia nada para se expulsar, restou a dor se revirar ali, unida a dor alucinante na minha perna, e ao frio que a agua do mar me causava. Meu corpo tremia, meus dentes se chocavam enquanto eu abraçava meu tronco, mas minhas mãos também estavam congelantes.
Então o barulho retornou, e eu não tinha certeza se respirava. Um trovão ressoou nos céus, e a cobra maldita jogou seu corpo contra o navio. Madeira se partiu e o barco inclinou ainda mais, coisas caiam e rolavam se amontoando nas laterais e se não fosse pelas correntes que me prendiam, eu provavelmente teria caído e sido esmagada por um dos enormes caixotes de madeira que se chocavam contra a parede.
Mais agua caiu sobre nós, porém com a coloração avermelhada que me confirmava mais uma vitima. Eu estava encharcada de sangue, e grande parte não era meu, mas o amontado em meu colo me reabriu a ferida daquela noite. Aquela maldita noite, que me trouxe mais dor do que o chicote de couro do capitão do navio, e do sangue que foi a grande razão para que eu estivesse aqui, neste navio prestes a se partir, destinada a morrer pelas presas de um animal gigante.
Cubro meu rosto com as mãos, chorando apavorada. Esse seria o meu fim depois de todas as desgraças que vieram antes. Afinal, qual era o maldito objetivo da minha vida? Sofrer? Os homens gritavam, ora de horror, ora de ódio. Eu era incapaz de afirmar o que estava acontecendo ali em cima, eu só via a agua e o sangue escorrendo, o som de coisas quebrando conforme a chuva e as ondas facilitavam o trabalho da serpente.
O monstro chiou mais uma vez, e seu corpo pareceu afrouxar um pouco o aperto que causava nas laterais do navio, mas os gritos que eu ouvi em seguida não eram de vitoria. Os homens nos remos pareciam divididos entre continuar ali ou subir para lutar contra a criatura. O monstro então soltou o navio, era possível ouvir o som do corpo dela se arrastando contra a madeira antes de sumir. Apesar da chuva, um silencio hesitante tomou conta de todo o navio, mas não por muito tempo. O animal ressurgiu, e se chocou contra o navio, e madeira voou para todos os lados quando ela abriu o navio, invadindo um dos bancos dos remadores.
A cabeça dela estava por completo dentro do navio, e sem muito esforço ela poderia esticar seu pescoço e nos levar consigo, mas os remadores ao seu redor tentavam enfrenta-la com lanças. Um deles conseguiu atingi-la bem próximo ao olho, cortando suas escamas e fazendo escorrer um sangue escuro e grosso. O animal pareceu estreitar os olhos, e na próxima investida o homem não deu tanta sorte. A fídi³ abocanhara sua lança, a partindo em pedaços insignificantes antes de olhar uma ultima vez para o homem apavorado antes de o abocanhar e sumir com ele para o fundo do mar.
Por um tempo o navio ficou sujeito ao mar, até o silencio nos confirmar que o demônio marinho havia partido, e assim restou aos homens pelo resto da noite escura navegar na penumbra contra a tempestade, ao mesmo tempo que tentavam desesperadamente concertar o barco para que ao menos não afundássemos. Ninguém conseguiu dormir, o horror não nos permitia. Quando eu fechava os olhos, só via os olhos do monstro do mar, os via em Andrik, na maneira que ele me encarava com aquele sorriso cruel. O mesmo sorriso que seu irmão me lançou quando me condenou.
Os homens então voltaram a navegar pela interminável tempestade, que não cessava, sacudindo o navio me fazendo temer qual seria a ultima onda que me arrastaria para o fundo da escuridão salgada e fria para que meu corpo fosse tragado por suas ondas até alguma criatura das profundezas pusesse um fim a este corpo profanado.
Eu não suportava mais a escuridão e o frio daquele porão, o balançar das ondas era um castigo assim como suas invasões, encharcando meu corpo. Eu já estava com febre, o mar me mataria de uma maneira ou outra. Eu chorava, e minha cabeça doía por isso, mas eu sabia que provavelmente não sobreviveria a essa viagem sem fim. Nada ali parecia acabar, perpetuando minha miséria e dor. Minha perna estava pálida, um pouco azulada e a pele acumulada ao redor dos rasgos tinha um tom amarelado e uma textura pegajosa e nojenta. O sangue tinha parado de sair, mas os cortes não paravam de escorrer pus. A garota ao meu lado disse que provavelmente eu perderia a perna, ou morreria por causa dela. Suspirei, não é como se eu estivesse em condições para durar até isso acontecer.
O milagre, segundo ela, era eu ainda senti-la. O latejar constante e a dor eram um bom sinal pelo que ela disse. Eu não conseguia ver a dor, ou a esperança de sobrevivência como algo bom. Eu só queria que tudo acabasse, especialmente esse balançar irritante das aguas, que me enfraqueciam ainda mais. Os ratos haviam sumido, provavelmente procuraram um lugar seguro para se esconder. O estremecer dos céus foi aos poucos diminuindo, assim dando um fim aos sons assustadores da noite, deixando apenas o quebrar das ondas e os pingos da chuva contra o vento tomarem conta dos ouvidos dos homens que se ocupavam para nos manter vivos.
Um homem então desceu, e nos entregou uma jarra de vinho. Agua não era transportada em navios, então nos restava o álcool. A bebida foi dividida entre nós, mas poupada para que derramassem um pouco nas feridas do homem e nas minhas. O contato do liquido com os cortes me fez gritar. Ardia como uma faca em brasas, e doía de uma maneira que meu corpo inteiro parecia estar do mesmo jeito, fazendo lagrimas involuntárias brotarem no canto dos meus olhos e escorrerem por meu rosto.
Quando consegui me acalmar novamente e suportar a dor, a chuva estava mais fraca, e os homens tentavam reparar a parte danificada próxima aos remos, prendendo diversas tábuas de madeira para cobrir os buracos, enquanto os outros remavam para longe da tempestade. A voz então do bastardo do capitão persa foi reconhecida pelos meus ouvidos. Nem a serpente feroz que era o triplo do navio acabou com o desgraçado. Suspiro, ao menos essa sorte eu poderia ter tido. A chuva em determinado momento parou, o que foi um alivio agora que agua parava de escorrer com tanta frequência em cima de mim, só quando alguma onda mais violenta nos atingia.
Com o tempo, o mar vai se acalmando também, facilitando o trabalho dos remadores e reduzindo o balançar do navio. Olho para minha perna, tingida de roxo pelo vinho que secara ali, mas que fez com que parasse de sair pus, e diminuiu um pouco o inchaço. Ouvi o capitão gritar que, com sorte, ainda chegaríamos hoje em Roma. O grande império era o destino, afinal. Com sorte eu morreria antes de chegarmos, mas nenhum sinal de que essa sorte me atingiria. Eu nada sabia daquele lugar, só que era um império em ascensão que acumulava diversas riquezas.
A viagem seguiu mais tranquila até o som de outros navios cruzarem com os nossos e homens começarem a gritar "Terra a vista!". Engulo em seco, estávamos próximos a Roma e ao fim da viagem, e meu destino assim volta a se tornar algo incerto, tão estranho quanto a nova cidade que eu iria adentrar. Os homens estavam mais animados e agitados, e bebiam sem preocupações o vinho que restava no navio enquanto falavam coisas como os bordeis que visitariam perto do porto. A ideia me fez estremecer. Pobres mulheres sujeitas a essa vida de satisfazer homens estranhos que não se importam com elas. Não que um casamento fosse muito diferente disso, só de pensar em Andrik pavor tomava conta do meu peito.
Um barulho alto de correntes descendo em alta velocidade e de algo pesado me despertou dos devaneios, e percebi que o navio tinha parado. Os homens se apressaram a sair do barco, e o lugar tornou-se silencioso ao cair da noite, que eu só podia ver pelas frestas na madeira. O bater das ondas aqui era suave, e muitos conseguiram descansar finalmente. Mas o medo do que me aguardava não me permitiu fazer o mesmo. Quando o sol estava alto, os homens voltaram, e começaram a reparar o navio de verdade. O martelar em tábuas despertou todos que ainda dormiam, e a porta do porão foi aberta, descendo o capitão, um dos homens que veio conosco e dois marujos, acompanhados do chefe, que aparentemente perdeu dois dos seus homens.
Nossas correntes foram soltas e começaram a nos amarrar juntos em cordas. Os homens bons foram na frente, em seguida as mulheres. Depois, forcaram o homem que fugiu comigo a ficar de pé, o que ele teve um pouco de dificuldade mas conseguiu, um pouco mais lento que os demais. Fico espantada com sua força, mas o espanto assumiu o medo quando o homem me pôs de pé. Um grito de dor saiu da minha garganta quando me apoiei na perna machucada, como se estivesse apoiada a uma lança. Fomos mesmo assim todos arrastados para fora, lagrimas involuntárias causadas pela dor enquanto seguia pelo porto seguindo o alegre homem.
- Hora de lucrar com vocês - Ele sorri, perverso.
Seríamos escravos em Roma.
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Glossário
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✵ 1 - Sas efcharistó - obrigada (grego)
✵ 2 - thalássio fídi - Serpente marinha (grego)
✵ 3 - fídi - Serpente (grego)
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Hey pessoal! Espero que ninguém viaje de barco, rs
E espero também que tenham gostado do capítulo! O que vocês acham que vai acontecer? Comentem e deixem seu voto!
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