Parte 1 - [Trechos de um diário pessoal] - Não é biografia!
Biografias sempre me pareceram impessoais, enaltecendo alguém como se tivesse feito algo de muito importante. Nem sempre o biografado é tão digno de nota assim. Também não poderia classificar o que estou fazendo como "minhas memórias", porque livros de memórias soam algo surreal. Sei lá, tipo "Memórias Póstumas de Brás Cubas"; ou "Memorial de Maria Moura".
Não tenho pretensões de me tornar um clássico.
Acho que isto aqui tem mais a ver com o Wilson do que qualquer outra coisa. Eu explico: Wilson era a bola com que Tom Hanks conversava, durante os longos anos em que viveu numa ilha deserta, no filme, "O Náufrago". Sua personagem faz uma espécie de dissociação, a fim de manter a própria sanidade. O Wilson simboliza uma parte dele próprio que é colocada "para fora"; é o amigo imaginário com quem conversa o tempo todo. (Um amigo que nasce de um acidente... A mão manchada de sangue que marca a bola.) A personalidade humana é formada e mantida na troca com o "outro"; é social.
Sendo assim, seguindo a lógica de um náufrago que se agarra a qualquer coisa para sobreviver, este diário é o meu Wilson.
Aqui, eu tenho todo o direito de sentir pena de mim mesma. De sapatear. De ser maldosa com o meu próximo (nada próximo). Não tenho intenção alguma de omitir os detalhes sórdidos, por isso, deixemos as biografias para as celebridades. Este é o meu diário pessoal – pessoal o bastante para não ser impessoal. Você me entende, né? Quero dizer...
Deixa pra lá!
Bem... Por onde começo?
O nome da minha família costumava ser importante no Rio Grande do Sul, onde nasci e me criei até os 16 anos. Só que eu não estava mais vivendo lá, então... Grande coisa ter um sobrenome importante, numa cidade em que ninguém te conhece! Principalmente, depois que a família perdeu a fortuna e o prestígio.
Ainda no Rio Grande do Sul, meu pai abandonou o lar. Eu era apenas um bebê, quando isso aconteceu. Desconheço os detalhes. Sei apenas aquilo que Dona Selma, minha mãe, me contou. E o que ela conta não é lá muito confiável.
Depois da separação - dizia mamãe que ela entrou com o divórcio e voltou a morar na casa dos meus avôs. Foi lá onde cresci. Vovó Leonor era um doce de criatura. E uma excelente cozinheira! Ela gostava de me surpreender com minhas guloseimas preferidas. Tenho poucas, mas lindas recordações do tempo em que vivi com eles. Acho que o gosto pela comida veio daí... E eu engordei pra caramba.
Infelizmente, vovó faleceu quando eu contava com apenas 5 anos.
Meu avô, Fernando, foi um renomado engenheiro do Departamento de Estradas e Rodagens. Mas, para mim, era apenas o meu vovô querido. Aquele que me levava à igreja, ao jogo de futebol, às exibições dos tradicionalistas gaúchos... A todos os eventos e atividades culturais da cidade – inclusive às quermesses...
Todo mundo conhecia o vovô, lá em Santa Maria. E ele conhecia todo mundo. Lembro-me com saudade de nossos maravilhosos passeios pela cidade - nas sextas à tarde e aos domingos pela manhã. Não havia quem não desviasse o caminho só pra conversar com ele. Vovô faleceu dois anos após a morte de vovó Leonor. Então, minha vida protegida por uma bolha de felicidade estourou. E eu me deparei com uma mãe que não me queria. Uma mãe que vivia em busca de prazeres, diversões, e nunca parava em casa para cuidar da própria filha.
A minha referência de adulto. HA!
Minha mãe era uma mulher adulta em quem não se podia confiar. Que se escondia por trás de uma criança para lidar com os seus credores. (Ela realmente acreditava que eu iria detê-los, ou comovê-los apenas pelo fato de ser uma criança? Fala sério!) Aos 8 anos de idade, eu me sentia humilhada em ter que aparecer sozinha nos estabelecimentos comerciais para explicar, em nome de minha mãe, que ela não tinha dinheiro para pagá-los. Sim, ela me obrigava a ir no lugar dela. A pior parte era ter que comunicar a pessoas estranhas que minha mãe queria continuar comprando apesar das dívidas acumuladas. Invariavelmente, a reação era mortificante: olhares de zombaria, gargalhadas, respostas agressivas. E mesmo diante de tudo isso, eu me via obrigada a insistir. Tinha que fazê-lo, caso contrário, se chegasse em casa de mãos vazias, eu iria apanhar. Eu já apanhava pra caramba!
Na maior parte das vezes, os comerciantes diziam um "não" bem redondo. Pior do que a humilhação de receber esse "não", era voltar pra casa sabendo que iria apanhar e ouvir mais humilhações. Dona Selma iria me acusar de não ter sido convincente o bastante. De não ser esperta o bastante. Minha angústia era enorme.
Eu tinha apenas 8 anos de idade.
***
Mamãe mentia praticamente sobre tudo e sobre todos. Eu não era exceção... Para começar, ela alegou que eu fora avaliada como deficiente mental porque, segundo ela, fazia tudo errado. Que eu era incapaz de entender as coisas, afinal, nunca correspondia as suas expectativas. Eu cresci acreditando que fosse verdade... Anos mais tarde, é que fui descobrir a mentira. Na verdade, eu tinha um QI de 136.
Ela também costumava me dizer que o vovô jamais gostou de mim – apenas me tolerou em sua casa, por causa dela. Disse que o vovô me achava um estorvo...
Na época, eu acreditava em tudo o que ela me dizia, porque era a minha mãe! Na minha cabeça, as mães não enganavam seus filhos. Não inventavam as coisas premeditadamente, apenas para feri-los. Não tentavam se aproveitar deles. À medida que fui crescendo, porém, dei-me conta de que nem todas as mães eram iguais, muito menos iguais às dos livros, novelas, e filmes.
Anos mais tarde, quando eu estava entrando na adolescência, minha mãe decidiu que não queria mais viver numa cidade "de interior", como ela denominava, em tom depreciativo. Sentia-se "tolhida" pela memória do vovô, como se este pudesse "vigiar" a sua conduta do Além, por intermédio das pessoas que o conheceram e o estimaram. Ela tinha a necessidade pungente de se libertar da sombra do sobrenome Quint, para poder fazer o que bem entendesse. Não aguentava mais ser desconsiderada pelas pessoas ofensivas e invejosas daquela cidade tão simplória.
Palavras dela, não minhas.
Dona Selma sempre classificou as pessoas em dois grupos distintos: as que estavam do seu lado, e as que estavam contra ela (estas últimas, a seu ver, constituíam a maioria da cidade). É óbvio que isso tudo era uma desculpa furada para fugir dos problemas e das responsabilidades. Ela queria mesmo era se esquivar da reputação que construiu, e do controle a que se imaginava sujeita.
Meu avô havia sido uma figura de destaque na sociedade local, e um exemplo a ser seguido. Ela, ao contrário, fora estopim de vários escândalos. Um atrás do outro. E mesmo com o seu comportamento reprovável, acreditava piamente ter sido vítima da maledicência alheia.
Por um bom tempo, fiquei indecisa em deixar Santa Maria para trás, e os momentos maravilhosos que eu e meu avô compartilhamos. Mas minha mãe me convenceu de que o melhor para mim era a mudança. Assim, eu me deixei levar.
Para ser franca, havia pouco a ser feito, já que eu era menor de idade. Não podia ir contra as decisões dela, mas... Ainda hoje, isso me chateia. Eu me arrependo de ter deixado para trás as minhas raízes. Me arrependo de ter ficado calada tantas vezes.
***
Esse desejo todo de mudança apareceu cerca de nove anos após a morte do vovô. Eu desconfio de que o timing teve a ver com o chute que ela levou do último amante.
Nos primeiros dias do ano de 1988, assolado por um verão particularmente abafado, mudamo-nos de Santa Maria, no Rio Grande do Sul, para Florianópolis, capital de Santa Catarina. Eu, então, contava com 16 anos de idade.
Mudar para um lugar ensolarado, próximo ao mar, bem longe "daquela gente chata e interiorana"... Para um point da moda, com pessoas descoladas... Seria como obter a carta de alforria para Dona Selma. Um recomeço em grande estilo. Pelo menos, ela assim imaginava.
Apesar de não estar certa de que queria deixar Santa Maria, para uma adolescente ingênua e deslumbrada, como eu, Floripa pareceu ser a oportunidade perfeita para conhecer gente interessante.
Pela primeira vez, desde a morte de meus avôs, acalentei pensamentos otimistas em relação ao futuro... No meu íntimo, tinha esperança de que o recomeço servisse para fazer minha mãe se modificar. Infelizmente, eu estava apenas me iludindo.
As coisas não mudaram... Elas pioraram.
***
Não, definitivamente, elas não mudaram. A filha da conhecida louca da cidade continuava sendo a mesma filha da louca da cidade, só que em outra cidade. Afora o peso de uma micro-família desestruturada, e o fato de ter sido uma nerd contumaz, eu era extremamente solitária. Não era popular - nem no meio dos nerds! Sentia-me dividida entre o anseio de me tornar mais sociável, e a necessidade de me isolar. Eu gostava de me isolar, na verdade, como parte de uma necessidade maior que eu tinha de autopreservação. Com a minha mãe em casa, não existia clima de segurança e aconchego. Eu vivia ao sabor das necessidades dela, das mudanças de humor dela, das loucuras que aquele cérebro cometia, em termos de raciocínio lógico... Enfim, meu sonho de consumo era viver sozinha, só com meus animais de estimação. Aos 16 anos, não me dava conta do quanto se perde com isso.
Por outro lado, eu achava os outros adolescentes muito agressivos. Viviam alfinetando, agredindo, xingando, humilhando uns aos outros. Sempre provocando situações para expor e ridicularizar os seus desafetos. E a fofoca, que rolava solta, só aparecia na superfície por intermédio de olhares velados e risadinhas trocadas na hora do recreio.
Muitas vezes, eu me tranquei no banheiro feminino e chorei durante todo o recreio.
É, eu sei... Nada mudou nos últimos anos, no que diz respeito ao universo adolescente. Exceto que, hoje, a internet ocupa a vida das pessoas de maneira diferente do que na minha época.
***
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