Capítulo 28: O choque
Eu sei que você é bom, mas isso não parece bom agora, e eu sei que você pensa em coisas que eu nunca poderia pensar.
Às vezes eu tenho que parar e lembrar que você é Deus e não eu
Então, seja feita Tua vontade
Hillary Scott - Thy Will (mídia acima)
— Tem alguém nessa residência que mais se parece com a de uma celebridade? — Uma voz masculina ecoa.
Ainda assim meu corpo omite qualquer reação.
— Ajuda-me, Shaun. — A voz de meu marido, que quase se perde em gemidos, quebra o silêncio da cozinha.
Finalmente ele encara-me. Meu estômago aperta, já não resta quaisquer resquícios de dúvidas de que a dor esteja-lhe corroendo. Sua respiração funda, os tremores excessivos que sua estrutura física produz e os olhos que se encolhem a cada momento confessam isso. O medo paralisante de perde-lo queima-me o peito, tanto que sou incapaz de agir para prestar-lhe sequer algum tipo de ajuda, e inicio a tremer.
O som apressado de uma pessoa correndo pela cozinha, estimulou meu esposo a desviar-me o olhar.
— Droga! O que aconteceu com você, Willian?
Shaun leva o joelho ao chão e ao mesmo tempo analisá-o com eficiência. Ele usa a pequena lanterna para examinar os olhos, ausculta seu corpo com recurso do estetoscópio, e mede a pressão. Vejo meu marido absolumente falto de forças e minuciosamente seus olhos fecham-se. O corpo começa a entrar em declive, nada do que o profissional de saúde faz, melhora sua condição. Ele parece piorar e os meus tremores só intensificam.
— Não não, amigão. — Shaun distribui leves tapas em seu rosto, após de rasgar a camisa que meu marido vestia e envolver
uma toalha úmida em sua testa— Preciso que se mantenha acordado.
— Por favor.... — Falo num fio, inaudível e imóvel.
Ao que parece o proceder do enfermeiro resultou, pois meu Willie volta a estar lúcido e meu coração se esmoi a ouvi-lo dizer:
— Es-está doendo muito, — fala dilacerado — já não consigo.
Então Shaun coloca o rosto dele em suas mãos.
— Sei que é terrível. Mas precisa ir a um hospital agora e desperto, e eu prometo que você vai ficar bem.
Novamente Willie procura pelos meus olhos e ele os encontra. Vejo o sofrimento se espelhar nos olhos que eu mais amo e é como se uma pancada atingisse-me o estômago. Desejo falar algo ou tentar dá-lo conforto, mas nenhuma palavra ocorre. É como se um branco arrastasse a minha mente.
— Por favor, tire ela daqui, Shaun.
O mesmo assente e vem ao meu encontro. O jovem enfermeiro segura-me sobre o ombro e com gentileza completa:
— Eu sei o quão horrível é vê-lo assim, mas ficares aqui não será bom para nenhum dos dois. — Encara meu esposo por segundos breves e oferece-me o telefone da cozinha — Preciso que chame a ambulância agora, pode ser noutro comódo.
— Só me diga que ele vai ficar bem. — Sussurro.
— Se estiver no hospital em menos de 10 minutos, sim.
Engulo em seco e assinto.
— Ahhh! — Surge um clamor horrorizante que transporta tormento e agonia.
Derrubo o telefone ao chão no mesmo instante, ao ouvir o pior brado do que alguma vez testemunhei desde que conheço-me como humana. Eu sei que ele está piorando, o tronco nú está ensopado de suor, o que é incomum num dia em que a temperatura sofre forte declínio . Isso só prova a enorme febre que está a consumir o corpo de meu esposo. Está a ser massacrante vê-lo a padecer sem dó.
— Deixa que eu ligo a emergência, — Shaun intervém rapidamente digitando em seu smartphone — preciso que arrume algumas roupas quentes para o Willian. Ele vai precisar quando estiver hospitalizado.
Imediatamente corro para o nosso aposento e separo algumas de suas vestes, as minhas mãos não param de tremer de jeito involuntário, contudo inicio a declarar em voz audível que meu marido irá passar por tudo isso. Não encontro situação mais exata para exercitar a fé. Na ocasião em que termino de organizar as coisas de Willian e trajar-me por algo propício, já que usava um robe, espreito pela janela uma ambulância na entrada do edifício.
Os pés pensam mais rápido do que a cabeça e descem as escadas a caminho de onde deixara meu esposo. Vejo uma dupla de paramédicos que parece agitado ao analisar a condição clínica de Willie, igualmente emociono-me ao encara-lo nesse instante e não contenho a lágrima que cai. Seus olhos estão abertos, porém, ao contrário de antes, lhe está faltar a consciência. Ele já não move nenhum único músculo.
— Precisamos tirar ele daqui agora. — O homem de aparência hispânica comenta firme e o outro acena — Aos três...
Os dois, com a ajuda de Shaun, colocam meu esposo na maca e de jeito veloz aplicam um cateter na determinada cavidade corporal, juntamente com a máscara CPAP. Fico perdida ao constatar tudo a ocorrer tão depressa, apenas vejo os profissionais, da área de socorro pré-hospitalar, partirem apressadamente com meu marido para o elevador.
Shaun percebe a vulnerabilidade que apega-se ao meu corpo e oferece-me seu abraço onde consigo desprender os meus gemidos, é impossível não me agoniar ao ver o homem que amo padecendo, tão pouco tempo depois de ele ter vencido a morte. Parece que ela ainda não o deixou e continua lhe perseguindo. Mas novamente o Espírito Santo lembra-me de que não há angústia, tribulação e perseguição que não esteja abaixo da provisão divina, ainda que a morte fique a espreita e tudo estiver sem saída, Deus ainda é Deus, está no controle, é fiel e jamais irá desamparar os que depositam sua confiança em Si.
— Aqui tem, — meu primo repousa sobre a mesa uma embalagem de papel, com o aroma similar a um sanduíche de atum e um copo de plástico de cacau quente com creme, — conforme você gosta.
— Obrigada Steve, mas estou sem fome.
Ele nega com a cabeça depois de sentar-se ao meu lado.
— Mas precisa comer neném, deve fazê-lo pelo bebê, e eu prometi ao Willian que ficaria de olho em vocês sempre que ele não poder.
Sorrio fraco.
— Tudo bem, farei isso. — Ele sorri levemente mostrando certo alívio — Até quando vai-me chamar de neném? Seu sobrinho está a caminho, irá chamar-me assim ao seu lado também?
— E daí, qual é o problema? — Arregalo os olhos, ele dá de ombros — Sou quatro anos mais velho do que você, e mesmo quando for mãe, isso nunca mudará. Serás sempre uma neném para mim, por isso continuarei olhando por você.
Sorrio com pouca solidez e escoro-me em seu ombro enquanto alguns médicos, enfermeiros e psicológos figuram pela sala de espera. É tão insano que esteja-me familiarizando com esse cenário.
— Eu só quero que possamos ser um casal normal, nós nem conseguimos aproveitar a nossa recente vida de casados como o suposto. Estou tão enjoada dessa rotina de hospital daí e acolá. É de loucos acreditar que mal saí de um centro médico, meu marido deu entrada a um outro. — A voz sai embargada.
— Queria poder lhe oferecer uma resposta coerente para isso. Mas a única coisa que posso dizer é que você decidiu entregar e confiar sua vida a Jesus, desde esse instante é a vontade Dele que deve prevalecer em vocês, e embora que no momento isso parece não fazer sentido e tudo estiver distorcido, ainda assim Sua vontade jamais deixará de ser boa, perfeita e agradável na vida daqueles que creem em Seu nome. — Ele beija-me o topo da cabeça — Nunca esqueça que isso não é sobre como começa, mas sim sobre como termina. Não permita que as circunstâncias da vida vos privem de sonhar e muito menos que vos impossibitem de prosseguir com os vossos planos e a vossa felicidade.
Assinto emotiva, essas palavras chegaram na instância ideial. Somente consigo sussurrar um “obrigada” com toda a veracidade da alma.
— Quem são os parentes de Willian Brown...
— Somos nós! — A voz de Steve ecoa pelo lugar.
— Eu sou a esposa, como ele está? — Expresso tão logo que nos levantamos ao passo que o médico se avizinha.
— O Sr. Brown está estável. — Uno as mãos com um suspiro de alívio e agradeço a Deus, interiormente — Não houve alterações do quadro clínico que nos foi dado pelos médicos de Manhattan, os tratamentos são os mesmos, foram dores severas nos tecidos, por ele não estar a seguir as orientações médicas. Ele vai precisar de muito descanso e cumprir com todas as recomendações, ou pode vir a suceder algo fora do nosso controle. Hoje foi possível intervir a tempo, mas pela próxima isso pode não dar certo.
Por um momento me encontro confusa ao ouvir os falatórios do doutor, não percebo o por que de ele afirmar que meu esposo não cumpre com as recomendações médicas. Não parece-me eloquente, Willian tem sido rigoroso nisso. Contudo, não contradigo o ortopedista e apenas assinto.
— Quando ele terá alta, e eu posso vê-lo agora?
— Como têm um enfermeiro que acompanha-o como devera, não há necessidade de manter seu marido cá, ele pode voltar para casa hoje mesmo. Basta apenas eu dar algumas instruções ao enfermeiro, e é claro que pode vê-lo.
Meus lábios desenham um sorriso grande, o mais verdadeiro e alegre que conseguira por hoje.
— Muito obrigada doutor. — Aperto sua mão e em seguida Steve faz o mesmo — É a melhor notícia que poderia-nos oferecer.
— Estamos aqui para servir. — O médico completa com um sorriso sútil e retira-se.
— Vá ver seu esposo, estão precisando um do outro nesse momento. Vou a procura do Shaun, para o médico não aguarda-lo por muito tempo. Depois irei ao vosso encontro. — Steve completa e abraço-o fortemente antes de nos apartamos.
Caminho a passos velozes até o quarto que acolhe meu esposo. Assim que desfecho a porta visualizo Willian sentado sobre o leito, agora sim, é ele. Ao notar-me seu sorriso viciante é ostentado pelos lábios rosados, aquecendo-me desesperadamente o coração.
Foi tudo o que procurei para acalmar-me a alma. Um bico se forma sobre os meus lábios a medida que os pés se apressam em deitar para a cama, e por derradeiro os braços de meu marido recebem-me num abraço seguro e perpétuo.
— Promete que nunca mais vai-me pregar um susto desses. — Acalento-me com intensidade em seu corpo e delicio de seu calor.
— Uhm... — ele hesita, fazendo carícias em meu cabelo enquanto a cabeça esteira em seu peito — penso não estar a fim de abrir mão de toda essa atenção disponibilizada a mim. É terno ver-te preocupada comigo.
— Eu não brinco, prometa para mim, por favor...
Sinto um beijo terno sendo depositado sobre a testa e os olhos se fecham através desse ato.
— Você manda, e sabe muito bem disso, meu anjo. Prometo sim, em nome de sua infelicidade irá aturar-me até perceber que sua única seja essa até o resto dos nossos dias.
Sorrio sem ainda desprender os olhos.
— Eu te amo.
— Larga tudo aqui, por dois meses, e vem viajar comigo!
— Como? — abro os olhos e encaro-o pasmada.
— Eu só quero ficar com você e esquecer o mundo, viver como se somente nós os dois existissemos, — ele faz uma pausa — preciso de ti desesperadamente. Por isso quero umas férias ao teu lado, sumirmos de toda essa tenção e aproveitar te amar e amar sem fim. Meus pais ofereceram-me uma casa de férias em Viena. Não se preocupa com seu trabalho, eu vou tratar de tudo e não sairá prejudicada, muito menos seus alunos. Te dou um mês para continuar aqui e depois venha comigo pelos arredores da Europa!
Fito-o extasiada aquando o frio intruso se acumulando pelo abdômen. Aproximo seus lábios dos meus e beijo-o com afago, sem pressa alguma, sobretudo por ele estar a corresponder de jeito tão afeiçoado enquanto acarinha-me a nuca.
— Se for contigo, — colo as nossas testas não deixando os lábios distantes — eu iria até o fim do mundo. É claro que eu aceito, amuleto.
Willian sorri, o sorriso doce que consegue derreter o mais gelado coração. Eu nunca perceberei como ele consegue transmitir tanta paz. Alguns minutos correram no relógio e tive de ir resolver alguns procedimentos burocráticos do hospital a fim de darem alta ao meu esposo. Enquanto isso deixei-lhe na companhia de Steve. Pela graça, os processos não foram demorados e em pouco tempo Willie estava a largar o centro médico.
— Eu realmente odeio hospitais. — Exibe uma careta.
Eu rio.
— Basta ser um pouco mais paciente, meu amor. Em breve se livrará disso. — Digo a medida que aperto o cinto de segurança.
Ele apenas suspira e dirige o olhar pela janela, a qual é visitada pelas gotículas da precipitação. Depois de ligar o pára-brisa e o ar quente, inicio a arrancar o carro.
— Eu preciso-lhe contar algo, Jas. — Sua expressão se assume firme, na verdade desconfortavelmente séria —É a última pessoa a quem gostaria de confessar, mas é a única que tem o direito de sabê-lo.
Apanho amplo desconforto com tais palavras.
— O que quer dizer?
— Para o carro agora!
O nervosismo só acresce depois de ouvir isso, mas obedece-o e estaciono no meio da rua pouco movimentada, acredito que é devido o atual tempo atmosférico. Lanço-o um olhar persuasivo e sua língua despreende-se da seguinte maneira:
— Quando ainda estava em Nova Iorque, a última sessão de fisioterapia foi marcada por dores ósseas infinitas, na verdade foi torturante. O fisioterapeuta estranhou aquilo e decidiu que se fizesse alguns exames, dentre os quais uma biópsia.
O clima congela.
Ele faz uma pausa por breves segundos, cerrando os maxilares. Certamente engulo seco, com vontade de voltar ao passado onde outrora não éramos obrigados a confrontar imensos dramas.
— Jas, eu já não estou tão saudável. — Fala entridentes. Seus olhos se tornam obscuros — Essa dor infernal não para porque fui diagnosticado com câncer ósseo. — Arregalo os olhos cobrindo a boca com as mãos, novamente trémulas — Não sabia como assimilar a situação e pedi para que os médicos responsáveis não te contassem sobre. Shaun sabe disso, e o médico que atendeu-me não é apenas um ortopedista, mas sim um ortopedista oncologista. Fui orientado a fazer quimioterapia, mas os efeitos colaterais são extremos. Você está a carregar o nosso filho, precisa da minha atenção e com os quimioterápicos isso não resultaria. Então rejeitei esse tratamento. Acreditei que tomaria conta da situação, porém as dores estão me massacrando a cada momento. Eu uso uma cadeira de rodas não porque as pernas perderam o costume, mas porque o meu corpo está se tornando dorido de minuto em minuto e andar é uma elevada tortuosidade. Antes era estágio dois, mas a uma semana o tumor avançara para o estágio quatro.
O enorme nó forma-se pela gargante. A sensação amarga do desgosto estilhaça o peito e incontrolavelmente meus olhos marejam.
— Co-como teve a audácia de esconder-me tudo isso? — Soluço.
Contra o meu controle, meu corpo é impulsionado para frente e me sinto presa em seus braços. Willian abraça-me com firmeza, sustentando minha cabeça sobre seu peito e lá sou incapaz de me manter forte por ele e emito gemidos encarniçados.
Sede fortes e corajosos; não temais, nem vos atemorizeis diante deles; porque o Senhor vosso Deus é quem vai convosco. Não vos deixará, nem vos desamparará.
Deuteronômio 31:6. (JFA)
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