Capítulo 4
HELOÍSA
CINCO DIAS APÓS ACORDAR NO HOSPITAL
– Acordar sem memórias e saber da existência de uma filha era estar em um território completamente assombroso. Digo isso porque é a palavra perfeita para descrever sentimentos ambíguos. Ao mesmo tempo que é medo, também é deslumbre. É espanto, contemplação e temor. – eu finalizava minha narração relatando como foi encontrar Helena. – Mas tê-la em meus braços aguçou a vontade de recuperar lembranças especiais, como momentos da minha gestação e o dia em que dei à luz. Nós duas merecemos isso. Além do mais, é muito triste viver as consequências de um passado apagado.
Essas foram as últimas palavras que eu disse antes da consulta terminar. Doutora Ângela não me deu conselhos ou fez repreensões, apenas agendou nosso próximo encontro e me dispensou. Tive alguns segundos de dúvidas, me perguntando se aquele era o tratamento mais adequado para o meu ocaso. Por outro lado, ouvir o som da minha própria voz ajudava a reconhecer a mim mesma.
Voltei para casa revivendo tudo aquilo que não tive tempo de contar nos cinquenta minutos de sessão. Meu pai dirigia em silêncio. O homem não sabia conversar comigo, era travado e nitidamente ferido. Mas sua incapacidade de encontrar palavras para iniciar qualquer diálogo trivial era bem-vinda naquele momento.
Eu olhava a rua através da janela, absorta nas poucas lembranças. Os últimos cincos dias tinham sido de muito aprendizado. Lições que só a vivência me dera. Com medo de perdê-las, anotei frases aleatórias num caderno que estava ocioso em meu criado-mudo. Datei-as por prevenção. Não sabia se deveria dizer isso à psicóloga. A ação de escrever meus pensamentos me parecia íntima demais para falar em voz alta.
No domingo, o dia em que recebi alta do hospital, segurei minha filha nos braços, ciente de que teria muitos desafios. O maior deles não era recuperar a memória e sim criar um bom ser humano. Não tinha ideia de como fazer isso acontecer. Mas antes de tudo eu precisava ser uma pessoa consistente. Algo dentro do meu peito doía só de pensar que Helena poderia sofrer com qualquer atitude irresponsável da minha parte.
Quando Anelise me entregou Helena, me senti mãe. Foi como dar à luz pela segunda vez à aquela menininha. A dor não era física, a dor era a mera constatação que meu coração e minha mente estavam conectados, me fazendo entender que eu poderia ser passional e racional num único ato.
Chorei e amei aquele ser tão pequeno. Admirei cada detalhe de seu rosto, cada gesto e cada barulhinho. Assim eu ficaria por tempo indeterminado se não fosse interrompida pelo o mundo que nos assistia. Meu pai chegou com meus avós. Anelise tomou Helena em seus braços novamente.
Vó Margarida me entregou um embrulho. Disse que eram cosméticos da minha marca preferida. Segundo ela, eu reclamava que minhas mãos e meus pés eram ressecados. Agradeci um pouco constrangida porque ela tinha se preocupado com algo que eu desconhecia.
Recebi um abraço apertado de meu avô, José. Depois, frente a frente, seus olhos azuis me fitaram com ternura. Eu sabia que ele buscava algo em mim, mas me sentia mal por não corresponder o seu gesto esperançoso. Quando alguns segundos se passaram e pensei que ele se afastaria, sua voz bondosa me disse:
– Aproveite para reaprender, recomeçar, reviver e re-amar. O que para outros pode ser visto como uma condenação, para alguns pode ser uma segunda chance. Para melhorarmos precisamos de atitudes diferentes. Tente não se esquecer disso, minha neta.
– Vou tentar. – falei, entendo um pouco do que ele queria dizer. Das informações que tia Cris tinha me dado no hospital, uma me abalou bastante: ele estava no primeiro estágio do Mal de Parkinson.
– Mas se vier a esquecer, ouviremos Frank Sinatra e Fafá de Belém enquanto planejamos ser felizes.
– O quê? – perguntei, sem entender, e percebi que alguns riram.
– Uma longa história. Teremos tempo para falar sobre o assunto. – ele sorriu e se afastou.
Não demorou muito para tio Soren e Viktor chegarem. Meu outro primo era mais sociável que seu irmão mais velho. Se Hans parecia o vilão soviético do filme de Rocky Balboa, Viktor estava mais para um modelo de passarelas internacionais. Seu rosto era fotografável e sua personalidade era naturalmente afável. Com eles estava uma moça, que eu pensei que fosse namorada de Vik, mas que foi me apresentada como Laila. Entendi que éramos amigas de longa data.
O clima era amistoso, as pessoas falavam umas com as outras e riam e, dentro das possibilidades, estavam felizes. Mas não saía de mim a sensação de estranheza. Eu era desconhecida em minha própria vida e tudo que queria era me afastar e caminhar pelo jardim daquele casarão com minha filha nos braços. As vozes aleatórias me confundiam, me intimidavam e, de certo modo, me desrespeitavam. Mas qualquer atitude excêntrica poderia gerar receio entre meus entes. Precisei me segurar e deixar a angústia para outra hora. A verdade é que tal sentimento estava a todo momento querendo se manifestar. Eu sofria constantemente uma batalha interna de emoções e dúvidas. Mas nenhuma daquelas pessoas presentes precisava sentir o mesmo que eu.
Avistei Hans dizendo algo a sua mãe, para logo se afastar do grupo. Depois, escutei o barulho de seu carro. Ele não ficou para o meu almoço de boas-vindas. Eu poderia ter me esquecido de tudo, mas ainda conseguia discernir algumas atitudes. Sei que meu primo estava em seu limite. Só não sabia o motivo. Cogitei a hipótese de ele me odiar, mas me suportar por causa de nossa família.
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No fim da tarde, com pensamentos sobre os últimos dias – os únicos que eu era capaz de recordar – resolvi andar pelo jardim com minha filha. Já fazia mais de uma hora que a consulta havia terminado e eu me via dentro de uma introspecção enfadonha. Me atormentava não ter lembranças antigas. Concluí que não era saudável viver daquele jeito. Por mais que tentasse deixar as coisas leves, por mais que fosse positiva, havia momentos de inquietações cortantes. As vezes meus sentidos faziam sentir como se certas memórias estivessem voltando, como quando sentia certos cheiros ou ouvia alguma música. Vô José me fez ouvir diversas canções. A voz Frank Sinatra me fez chorar. Meu avô disse que era bom que eu botasse tudo para fora. Eu revidei, dizendo que não era justo minha memória ser tão desleal comigo mesma. O velho riu da minha resposta atrevidamente infantil.
Passeei pelo jardim, ainda balançada pela angústia de esquecer. Eu não sabia até que ponto era ruim e até que ponto era bom ter a memória deletada. Os meus pensamentos se debatiam nessa grande contradição. Esse era um infortúnio e uma dádiva que só a amnésia poderia me dar. Empurrei o carrinho de Helena, certa de que poderia enfrentar aquela situação. Quando meus braços e pernas já não aguentavam mais dar voltas ao redor do casarão, fui em busca do deck que ficava nos fundos do jardim. Árvores e plantas verdes rodeavam aquele canto, deixando-o escondido e aconchegante. Na lateral direita havia uma pequena fonte onde a queda de água gerava sons apaziguadores. Julieta deixou escapar que aquele espaço era desocupado, só tinha gramado e nada mais. Até que um dia eu insisti para que meu pai confiasse a mim a construção de um refúgio arborizado.
Do deck era possível ver tudo que acontecia em outras partes da casa. Cheguei até a pensar que talvez eu fosse do tipo que gostava de bisbilhotar. Mas o casarão era praticamente deserto, as únicas coisas que poderia observar eram os pardais e os insetos.
Peguei Helena e sentei num banco acolchoado de madeira. Vi meu primo Viktor sair pela porta dos fundos. Ele se aproximava de nós com o semblante leve. Não pude deixar de comparar seu jeito acessível com do jeito taciturno de Hans.
– Pensei que sua irmã fosse a próxima no revezamento. – falei, quando ele ainda caminhava pelo gramado. Tia Cris tinha feito uma escala com horários para que eu pudesse ser vigiada constantemente sem precisar sobrecarregar uma única pessoa.
– A Fofinha teve problemas com o pula-pula de uma das casas de festas. Parece que entupiram o motor com brigadeiros. – se explicou, sem deixar de mencionar um dos inúmeros apelidos que dava à irmã. – Esqueça a Lise. Serei todo seu, até dez horas da noite. – piscou, depois beijou o topo da minha cabeça e sentou numa espreguiçadeira a minha frente.
Entre todas as pessoas que me cercavam como sentinela, Viktor era o mais falante. A vantagem é que sempre estava soltando alguma informação importante.
– Como vocês duas estão? – perguntou com bom humor.
– Helena segue com sua rotina. Dorme, mama e sente cólicas. Ontem ela fez algo novo: soltou um pum e expirou ao mesmo tempo.
Ele riu.
– E você, Helô? Como foi a consulta com a psicóloga?
– Foi... – suspirei, pensando o que poderia responder. – Bem, foi esquisito e diferente de tudo que eu esperava. Me dispus a falar e falei, falei e falei mais um pouco. No final, ela se despediu, dizendo que me aguardava na próxima semana. Isso foi tudo.
– Ela estudou psicologia. Foi treinada pra ter atitudes contrárias àquelas que os pacientes esperam.
– Nada científico vindo de um profissional da área da saúde, Viktor. – respondi, subindo minha blusa para amamentar minha filha.
– Jesus Amado! Cobre isso, Heloísa! – Vik virou o pescoço para lado. – Não quero ver seus peitos.
– Não vou me cobrir e deixar minha filha com fome. – retruquei, mas continuava com o pescoço virado para o lado. – Cara, como você é médico? Não aguenta nem ver uns peitinhos!
– Peitinhos? Seus peitos estão enormes!
– Cala a boca, seu fresco. – peguei uma manta e cobri a parte que estava exposta. – Pronto, Viktor. Agora você pode olhar pra mim.
– Bem melhor! – ele sorriu, mostrando seus dentes brancos e alinhados. – Esse domingo, como todos os outros, vamos almoçar na casa de nossos avós. Mas no próximo minha mãe quer que todos compareçam ao culto matinal. Disse que devemos agradecer por você estar bem.
– Ela me disse algo parecido.
– Mas a verdade foi que ela usou a sua situação para fazer todo mundo ir à igreja.
– Eu percebi. – sorri com a astúcia da minha tia.
– O pessoal não gostou muito da ideia, mas acabaram cedendo ao pedido dela.
– O pessoal? Quem são as ovelhas desgarradas do rebanho em nossa família?
– Maurício, Hans e Lise.
– E você? Não se enquadra no grupo? Aposto que ficou contrariado também.
– Por que eu ficaria? O reverendo Esdras é gente boa. O coral é afinado. Os copos da Santa Ceia são limpos e as velhinhas me amam! – disse, convencido. – Não vou todos os domingos, mas faço o esforço de ir pelo menos uma vez no mês e nas datas festivas. Dos quatro irmãos, Karen era a mais frequente. Mas não sei se ela ainda vai a igreja, agora que mora fora do país.
– E eu? Que tipo de cristã eu sou?
– Antes da Helena, você era a mais nova da nossa família, então era fácil te arrastar para as reuniões e te fazer participar das atividades infantis religiosas. Mas aí você cresceu, começou a fazer o que queria e passou ir aos cultos somente quando as coisas ficavam feias para o seu lado. Nunca se afastou totalmente. Mas nos últimos meses, depois que voltou dos Estados Unidos e engravidou, começou a frequentar os domingos que não batiam com seu horário de trabalho. Também passou a contribuir com as ações sociais, porém sempre muito discreta. Se envolvendo sem se envolver, entende?
– Mais ou menos. Tia Cris disse que ajudo Laila a arrecadar material escolar, brinquedos e roupas para as crianças de comunidades.
– Você costumava fazer mais do que isso. No último semestre, obrigou Maurício a liberar dois caminhões de brinquedos. Além disso, intimidou outros empresários a doarem filantropicamente. Coitados, você fez eles se sentirem culpados pelo simples fato de serem ricos. Acabaram doando mais do que o necessário.
– Parece que sou boa de lábia. – comentei, me divertindo com seu jeito. – Eu gostava desses trabalhos sociais ou fazia isso para ter a consciência limpa?
– Heloísa, a vida inteira você só fez o que queria realmente fazer. Não acho que negócio de consciência pesada era o que te fazia agir. Mas na minha opinião, acho que você sempre curtiu essa coisa de dialogar com pessoas de classes sociais e culturas diferentes. Afinal, você acabou se tornando jornalista, uma comunicadora profissional. – ele sorriu de lado e continuou – Vou te contar uma coisa: não foi uma vez, mas foram várias as vezes em que você salvou os eventos sociais da nossa igreja. Mesmo quando ficava meses sem frequentar os cultos, era só a Laila te chamar para tudo se resolver. Três minutos, no máximo cinco de conversa eram o bastante para fazer com que mulheres e homens poderosos desembolsassem o valor que você queria. Sua habilidade de convencimento é incrível!
– Uau! Difícil de acreditar que eu seja assim. – falei, mas no fundo estava gostando de ouvir algo bom sobre mim. – Se a igreja que nossa família frequenta é boa, por que os outros não comungam?
– Você quer dizer Lise, Maurício e Hans? – gesticulei que sim com a cabeça. – Não sei, mas minha opinião é que cada um escolhe a vida que vai levar. – Ele deu a resposta mais básica que poderia dar. Mas não me importei. Meu primo estava certo. Cada um tinha suas próprias escolhas, até eu tive as minhas, e mesmo acometida por uma amnésia, ainda assim conseguia fazer escolhas.
– E Hans? – tomei coragem para entrar no assunto.
– O que tem Hans, Heloísa?
– Ele me odeia?
Viktor sorriu e se inclinou para frente.
– Por que ele te odiaria?
– Viktor, eu não sei. Tive uma amnésia, esqueceu?
– Como posso te explicar? – ele parou de sorrir e se recostou no banco. – Preciso ser direto com as palavras, então por favor não me entenda mal, ok? Promete não surtar ou cair em depressão se alguma coisa te contrariar? – fiz um sim com a cabeça. – Você tinha três anos quando sua mãe foi embora. Hans tinha catorze anos. Ele era o mais velho dos netos, o cara que tomava conta de todos nós e que levava a bronca quando aprontávamos. Você costumava passar muito tempo em nossa casa, principalmente quando seu pai não conseguia contratar uma babá de confiança. Cresceu com a gente, aos cuidados da minha mãe e da nossa avó. Mas Hans sempre foi o seu preferido. Se caía e machucava, era para ele que corria e chorava suas dores. Você simplesmente cismou com ele, foi insistente, estava o tempo todo atrás dele, invadia nosso quarto, mexia em nossas coisas, jogava nosso videogame e forçava a amizade. Várias vezes pensei que Hans perderia a paciência. Meu irmão sempre foi fechado, nunca gostou de mostrar sentimentalismo. Acontece que aos poucos ele foi cedendo à sua companhia. Passou a te levar no estádio para assistir partidas de futebol, te ensinou andar de bicicleta, te incentivou a entrar no jiu-jitsu, estava sempre te dando presentes em datas comemorativas como natal, aniversário e dia das crianças.
– Então ele é meu amigo?
– Sei lá. Nunca intrometi nessa conexão de vocês. Mas sei que as coisas foram mudando ao longo dos anos. Era nítido seu amor platônico por ele. Hans quase sempre ignorava esse fato. As vezes te repreendia, principalmente quando você enlouquecia e dizia que um dia se casariam e teriam filhos. Ninguém te levou a sério. Você só tinha dez anos e era uma garota carente de atenção. Com os anos, meu irmão começou a trazer namoradas para o convívio da família. Foi aí que os problemas começaram. Helô, você aprontou bastante. – ele riu, como se lembrasse de algo. – Hans ficava louco de raiva. Vocês discutiam, ficavam sem se falar por uns dias, depois se desculpavam e voltavam a viver em paz. Essa situação se prolongou sem que ninguém pudesse pensar que algo acontecia.
– E acontecia algo? – Perguntei com medo da resposta.
– Calma! Não vá pensando que meu irmão é um pervertido. – ele desfez o sorriso. – Acontece que você cresceu. Aprendeu a seduzir e usou ao seu favor a vantagem de ter tanto em comum com Hans. Heloísa, Heloísa querida... – puxou uma longa respiração. – Nenhuma mulher poderia competir com o que você oferecia. Por mais que meu irmão negasse, seus relacionamentos fracassavam porque as comparações vinham sem que ele quisesse.
– Meu Deus, isso é mais do que imaginei. – sussurrei para mim mesma.
– Veja bem. – Viktor me fitou com seriedade. – Nunca os vi em situações comprometedoras, por isso não posso dizer o que exatamente acontecia, além disso nenhum dos dois falava nada e ninguém ousou a perguntar. Não acredito que o tio Antônio e Maurício desconfiem de algo. Há anos os dois vivem suas próprias vidas. Talvez minha mãe e o restante das mulheres da família saibam de alguma coisa.
– Se tia Cris soubesse de alguma coisa, com certeza ela já teria me contado.
– Não se engane, minha mãe é uma excelente estrategista. – Vik voltou a sorrir. – Mas respondendo à sua pergunta, Hans não te odeia.
– Ele pode não me odiar, mas no momento sei que não sou sua pessoa preferida.
– Ou talvez seja tão preferida que ele não sabe o que fazer. – ele disse, não acreditei em sua última frase. No hospital, Hans havia dito que sua presença não era por minha causa.
Tirei Helena de uma mama e expus a outra. Ouvi Viktor reclamar:
– Sério, Heloísa. Você precisa parar de mostrar os peitos por aí. Isso é muito esquisito.
– Como é fresco. – resmunguei baixo para não acordar minha filha.
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Olá pessoal, espero que tenham gostado. Esse capítulo explica um pouquinho (mas só um pouquinho mesmo) o que pode ter acontecido no passado de Hans e Helô. Dia 25/05 tem capítulo novo.
Até mais e não esqueçam de votar no capítulo.
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