Capítulo 15 parte 2
Heloísa
Resolvi não contar para Hans que minhas lembranças iam além do dia que demos nosso primeiro beijo. Aconteceu que boa parte da minha adolescência passou como um filme dentro da minha cabeça na manhã do dia seguinte. Preferi ficar mais introspectiva, envolvida dentro dos meus pensamentos. Tentei compreender que tivemos várias despedidas no conflituoso relacionamento em que vivíamos.
Hans me perguntou duas vezes se estava tudo bem comigo. Nas duas vezes eu disse que sim e ele não me questionou novamente, pois me conhecia a ponto de respeitar o meu silêncio. Quando chegou à tarde, ele teve que ir à clínica, dizendo que precisava resolver coisas burocráticas por causa da ausência de meu pai.
Lise veio fazer companhia a Helena e a mim. Para não ficarmos enfurnadas o dia inteiro dentro do apartamento, ela nos levou à um shopping totalmente elitizado. Percebi que ela era uma espécie de habituè na refinada confeitaria daquele lugar. Sem rodeios, ela pediu o chá completo e adicionou como sobremesa uma porção de bombas de chocolate.
Minha prima era alta e corpulenta. Estava sempre vestindo jeans ou calças justas. Os quadris e as pernas eram redondos, a cintura fina, mas havia uma leve protuberância de gordurinhas na região do umbigo.
Anelise fazia o tipo que vivia em guerra com a balança. Seu físico nunca seria magro a ponto de revelar os ossos com facilidade. Tinha um rosto incrivelmente bonito, boca rosada, as maçãs do rosto definidas e avermelhadas. Seu jeito era introspectivo e sério, muito parecida com Hans. Contudo, era a mais tímida de todos os Nielsen de quem eu me lembrava até então.
Tia Cris dizia que éramos amigas. Eu até que acreditava, pois, uma parte das recentes recordações da adolescência era feita de bons momentos com minhas duas únicas primas, Lise e Karen.
Não poderia dizer que depois da amnésia continuávamos próximas. Lise não era totalmente agradável comigo ao mesmo tempo que não se comportava como uma pessoa insuportável. A verdade era que eu sentia uma certa resistência de sua parte.
Naquela tarde a resposta de seu comportamento veio à tona.
– Sua memória nem voltou direito, mas pelo visto você e meu irmão não dão a mínima para isso. – inicialmente ela falou com uma certa hesitação, parecendo lutar contra sua timidez ao tentar agir de maneira irônica.
– Como é? – perguntei assustada.
– Você levou meses para se livrar da dependência emocional que tinha com o meu irmão. – ela falava enquanto besuntava azeite numa focaccia. As bochechas estavam vermelhas como fogo e era nítido seu grande esforço em soltar tudo que estava preso em sua garganta. – Eu pensei que mesmo depois dessa sua amnésia as coisas continuariam do jeito que você decidiu que fosse nesse último ano; se esquivando e lutando para viver uma vida sem Hans. Era a sua chance, Heloísa! Uma baita oportunidade de ver o mundo sob outra perspectiva! – ela mordeu um pedaço generoso de seu pão e voltou a falar com a boca cheia: – Vou ser sincera, não vejo futuro em vocês e sabe por quê? Porque meu irmão gosta de ser solteiro! E pra falar a verdade, ele gosta de te ver nessa mesma condição, ou seja, sempre disponível pra ele. Isso nunca mudou e não vai mudar!
Lise mal tinha engolido a focaccia e já foi colocando uma fatia de pata negra dentro da boca para, logo em seguida, tomar um longo gole do suco de melancia. Ela fazia tudo isso sem me olhar nos olhos. Fiquei calada por alguns instantes observando o seu comportamento. Ela parecia constrangida por falar o que realmente pensava.
Então, tentando aparentar uma calma inexistente, falei:
– A situação é diferente. Eu sou uma pessoa diferente, Lise. Não tenho ilusões, só estou vivendo o momento.
– Sabe o que é ilusão? – ela riu com escárnio, fatiando um imenso croissant. – Sua falsa indiferença.
– Falsa indiferença?
– Isso mesmo! Você finge que não se importa, mas está mais uma vez se entregando a essa paixão unilateral.
– E se dessa vez for pra valer? Você tem alguma coisa contra se a gente começar a ter algo mais conciso?
– O que é conciso para você, Heloísa? Transar com Hans enquanto sua filha dorme no quarto de hóspedes?
– Não precisa falar assim.
– Preciso sim! Abra os olhos! Isso está ficando ridículo e ninguém vê a gravidade da situação! Nossos avós estão velhos demais e parecem que perderam o senso crítico, o tio Antônio é omisso, a tia Mônica conivente e agora até a minha mãe, que é a evangélica mais beata de todas, está apoiando esse relacionamento doentio.
– Não é doentio. – sussurrei, me sentindo ofendida.
Olhei para Helena, que tirava um cochilo no carrinho ao lado, depois olhei para Lise, que continuava comendo compulsivamente. Por algum motivo senti a necessidade de defender Hans daquelas acusações. Não era justo que ele fosse julgado por atos do passado sendo que no presente ele era a pessoa que mais me ajudava. Por isso, acabei falando algo complemente automático e quase ilógico:
– Ele parece diferente.
– Já ouvi isso antes. – Lise retrucou rápido. – Muitas vezes, diga-se de passagem.
Ela estava perdendo a insegurança com as palavras e partindo para um ataque impiedoso.
– Ele me faz sentir bem. E sentir bem, lutar para ser feliz em meio à turbulência em que eu vivo, tem sido um desafio, Anelise.
– E depois que sua memória estiver completamente recuperada? E depois que ele enjoar de você mais uma vez? O que você fará?
– Eu não sei. – respondi, acuada. – Mas eu já lidei com outros términos, não é mesmo? Talvez eu já esteja calejada o suficiente para saber exatamente o que fazer.
Ela levantou o queixo me encarando com um rosto enigmático. Minha comida estava praticamente intacta e meu apetite tinha desaparecido.
– Pode pedir a conta? Quero ir pra casa.
– Quando você diz ir para casa se refere ao apartamento do meu irmão?
– É.
– Lá não é o seu lar, Heloísa. – ela me desafiava como se quisesse me arrancar uma reação mais explosiva.
– Seu irmão me faz sentir em casa. – retruquei friamente.
– Ele só quer te foder.
Engoli sua resposta por alguns segundos. Semicerrei os olhos, disfarçando a irritação com aquele diálogo cruel. Eu não deixaria que a explosão da antiga Heloísa dominasse o momento. Então, coloquei minhas mãos sobre a mesa, encarando a minha prima. Com uma precavida calma, falei:
– E eu só quero ser fodida por ele.
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No caminho de volta para casa, eu estava com Helena no banco de trás do carro de Lise. O clima não estava bom. Por mais que eu compreendesse a preocupação da minha prima, eu me sentia chocada com suas duras palavras.
O orgulho era grande demais, a antiga Heloísa estava a todo momento querendo dar as caras e colocar tudo a perder. Minha vontade era gritar com minha prima e até mesmo dar uns belos tapas em seu rosto. Mas, por mais difícil que fosse, eu precisava mostrar alguma mudança de comportamento e superioridade diante da situação.
Agressão física e verbal definitivamente não resolveriam meu problema. Logo, fiquei me perguntando o que eu poderia fazer.
Foi então que, olhando pela janela, vi um grupo de moradores de rua numa fila que dava acesso a um albergue. O carro estava parado, pois o semáforo tinha acabado de ficar vermelho. Lembrei que as sobras do nosso chá da confeitaria estavam sobre o banco da frente. Eu sabia que Lise não perderia a oportunidade de mais tarde se esbaldar naquele banquete requintado. Ela era o tipo que não desperdiçava uma boa refeição.
Não será dessa vez, Fofinha! – pensei, pegando as sacolas que tinham comida suficiente para três adultos e abaixei o vidro do carro.
– Ei moço! Você aí! Tá com fome? Quer um lanchinho grã-fino? – gritei para o primeiro homem que vi.
– Opa! Eu quero! – o sujeito maltrapilho veio correndo em nossa direção.
– Heloísa! – Lise me repreendeu entredentes, mas já era tarde demais. Entreguei as sacolas para o homem.
– Obrigado, madame. Deus abençoe a senhora.
– Ele tem me abençoado. Tenha uma boa refeição.
Lise subiu o vidro da janela e arrancou o carro assim que o semáforo ficou verde.
– Sua louca! Como tem coragem de nos colocar em perigo?
– Não coloquei ninguém em perigo. – respondi, indiferente.
– Como não? Imagina se esse homem tem uma faca! Pessoas drogadas agem de modo irracional!
– Ele não estava drogado. – revirei os olhos.
– Como você sabe, hein?
– Viciados em crack não vivem muito tempo. É um vício que mata rápido e pouco lucrativo para o mercado a longo prazo do tráfico. A maioria dos moradores de rua brasileiros estão nessas condições por causa do álcool. Provavelmente esse senhor que levou as sobras do nosso lanche é um viciado em cachaça.
– Como sabe dessa informação Se lembrou de algo?
– Não me lembrei de nada. Eu simplesmente sei. – respondi com sinceridade, mesmo sabendo que minha memória brincava comigo ao me dar essa informação aleatória.
Ficamos em silêncio por alguns minutos. Cada uma envolvida nos próprios pensamentos.
– Você costumava ajudar esse tipo de gente.
– Que tipo de gente?
– Alcoólatras, drogados.... Pessoas com quem quase ninguém se importa.
– Já me disseram algo parecido. – falei me recordando da conversa que tive com Viktor. – E você? Costuma fazer isso?
– Não.
– Por quê?
– Os trabalhos sociais das igrejas se tornaram algo mais político do que piedoso. Não quero fazer parte disso.
Eu não tinha perguntado sobre igreja e religião. Mas sua resposta me mostrava o quanto Anelise era arisca a assuntos que direta ou indiretamente estavam ligados ao cristianismo. Não retruquei, escolhi me calar. Eu não queria mais um embate com ela.
– Não me entenda mal, não acho ruim quando você e a Layla ajudam crianças carentes, até aí eu concordo. – ela começou a falar, mostrando interesse em continuar o assunto. – Mas esses homens e essas mulheres moribundos são um grande desperdício de verba. O índice de recuperação é baixíssimo.
– Isso foi cruel de dizer, Lise.
– Eu sei. Eu não deveria dizer essas coisas. – ela suspirou. – Acontece que as obras sociais das igrejas são apenas uma camuflagem para a podridão de seus líderes.
– Não generalize.
– Não gosto de lugares com pessoas hipócritas.
– Então você não deve gostar de nenhum lugar no mundo, né? Pelo que eu sei, hipócritas estão em toda parte!
Não consegui me calar diante dos equívocos dela. Sua opinião me pareceu um tanto injusta. Anelise se mostrava estranhamente uma pessoa amarga.
– Não deveria ser assim nas igrejas. – falou, com um certo lamento.
– Não deveria ser "assim" em vários lugares, Lise. – a palavra "assim" saiu de maneira enfática.
O comportamento de Lise, juntamente com o do meu irmão, era bem peculiar quando se tratava da religião de nossa família. No último mês percebi o quanto eles agiam de forma debochada quando tia Cris demonstrava a genuína vontade de reunir todos para a celebração de um único culto. Apenas um culto de duas horas num domingo qualquer não arruinaria com a vida que eles viviam.
Dentro de mim, eu tentava respeitar a escolha deles e não fazer julgamentos sem conhecimento de causa. Cada um tinha a sua história e experiência de vida. Outra coisa era a peculiaridade de assuntos relacionados a fé, algo completamente individual. Contudo, eu não poderia deixar de perceber o quanto eles eram ingratos ao anular as coisas boas que o cristianismo tinha trazido para nossa formação ao compará-las com algum desagrado pessoal.
Em minhas poucas memórias, apesar de viver erroneamente em muitos aspectos, ir à igreja nunca foi um problema para mim. Podia até dizer que eu estava instigada em retomar alguma atividade eclesiástica. Era interessante constatar que a amnésia não havia afetado a minha crença em Deus.
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Olá,
Esse capítulo dedico a aniversariante marques_thays !!!! Thays, minha conterrânea, feliz aniversário! Que Deus te abençoe!
Para quem não sabe, a Thays escreve! Entrem no perfil dela 😉
Aviso: esse capítulo não acabou não. Mas só postarei o restante (antes do dia 2 de outubro) se ultrapassar 20 (VINTE) votos. Porque sou dessas... rsrsrs
Abraço,
Naty
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