15. Vilões Com Rostos de Heróis
"A História não foi feita por aqueles que não fizeram nada."
- The Crown
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REINO DE LEONTIUS
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O PORTO VERMELHO ESTAVA EXATAMENTE do mesmo jeito que Nerin se lembrava, demasiadamente cheio, barulhento e com peixes sendo vendidos aos gritos. O lugar era caótico, mas ela sentiu um pequeno sorriso surgir no canto de seus lábios; apesar de tudo, preferia mil vezes estar de pé neste porto do que nos salões de Gaheri.
Fora uma viagem tranquila pelo mar, levando-se em conta que os piratas andavam se tornando cada vez mais ousados, atacando navios e saqueando mercadorias, até mesmo no arquipélago de Nisí haviam confrontos ocasionais. Perguntava-se como Andromeda lidava com eles ou se considerava-os insignificantes quando comparados a outras ameaças.
Avançou por entre a multidão, notando que as ruas e ruelas estavam mais lisas, as pedras do chão tinham sido repostas; Andromeda cuidava de tudo, na medida do possível.
- MARISCOS! MARISCOS FRESQUINHOS! - um rapaz passou gritando.
Detestava lugares cheios, porém, era bom ver as pessoas mais animadas depois de anos. O céu estava nublado, o que não era surpresa; mesmo no final da primavera, quando o calor vigoroso do verão começava a se aproximar, volta e meia haviam chuvas - Algo muito bom para as plantações. Ainda não era meio-dia, se conseguisse um cavalo poderia chegar no palácio em duas horas, talvez.
Apertou a bolsa que transpassava seu corpo e continuou a andar.
As tavernas pareciam estar cheias, em alguns andares acima de um dos estabelecimentos a janela foi aberta e uma prostituta de vestes finas e transparentes inclinou-se gritando algo para alguém ali embaixo, até que um homem a abraçou por trás e afastou dali.
- Ei! Você! - foi a vez de Nerin gritar, porém, encarando um rapaz poucos anos mais novo que ela - Eu gostaria de comprar seu cavalo.
Ele arregalou os grandes olhos negros, parecendo não acreditar no que ela disse.
- Moça, não posso vender o cavalo...
Nerin enfiou a mão na bolsa e retirou dali uma bolsinha de couro, jogando em direção ao relutante.
- Acredito que seja o suficiente - ela falou, tirando as rédeas da mão do rapaz, enquanto ele encarava a grande quantidade de moedas de ouro ali - Foi bom fazer negócio com você.
Sem perder tempo, montou no cavalo e o incentivou a avançar; havia mais movimentação nas estradas, comerciantes e viajantes se preparando para atravessar o reino. Isso era bom, sem dúvida traziam ouro e prata para Leontius, enriquecendo a todos.
O porto dentro da cidade era apenas para convidados políticos e partidas oficiais dos membros da corte. Como veio em um navio mercante e escondida, desembarcou em um dos portos nas terras da Coroa, áreas que ficavam nos arredores de Porto Real.
Nerin estava cansada; torcia para que Chrysaor pudesse recebê-la assim que chegasse ao palácio e a oferecesse uma taça de vinho. Quanto mais rápido ela passasse as informações importantes, mais rápido poderia se retirar. Adorava estar perto do senescal, mas queria se recolher nos aposentos que lhe seriam dados para se lavar e saborear uma refeição quente antes de dormir.
Quando finalmente atravessou os portões da cidade, o vento fez o capuz de seu manto de viagem abaixar. Os estandartes com o símbolo de Leontius - um leão dourado sobre campo carmesim - sacudiam imponentemente com o vento que soprava. Cortou caminho pelas ruas mais estreitas, assim sabia que não encontraria nenhuma carroça para atrapalhá-la.
- Abram caminho! - gritava, quando percebia muitas pessoas.
Por sorte a ouviam e se colocavam de lado, evitando serem atingidas e derrubadas, ou pior, pisoteadas pelas quatro patas poderosas do cavalo.
Ao chegar no Palácio de Leontius, os guardas estavam vigiando, por isso desmontou e entregou o animal para um dos jovens cavalariços que se apressaram em sua direção. Os guardas não a deixariam entrar sem que declarasse seu nome e seus assuntos, principalmente por conta de suas vestes de viagem desgastadas e aparência cansada - e talvez desconhecida para aqueles homens.
- Meu nome é Nerin Belevonis. Chrysaor Cirillo, o Senescal da rainha, aguarda minha chegada - declarou - E meus assuntos são somente meus. Irão ficar parados aqui ou irão levar-me até ele?
Ela foi levada até Chrysaor.
Ele estava do jeitinho que Nerin se lembrava: em seu escritório, afogado em papéis e pergaminhos, completamente ocupado; os cabelos castanhos escuros estavam na altura dos ombros e sua pele escura ainda tinha o mesmo brilho. Até mesmo a barba permanecia do mesmo jeito, e os olhos castanhos estavam agitados.
- Chrysaor - ela falou seu nome, quando ele se ergueu da poltrona atrás da mesa para recebê-la.
- Nerin Belevonis - houve um leve sorriso no canto de seus lábios - Sente-se.
Chrysaor encheu uma taça com vinho e entregou a ela, que se sentou em uma das poltronas e tomou um longo gole, respirando fundo.
- E então? - ele perguntou, assim que voltou a sentar-se atrás da mesa - Quais as novas?
- Temos um problema, recém-saído do forno e quente como o inferno - foram as primeiras palavras de Nerin - Gaheris mantém seu exército mobilizado e em treinamento. Mobilizado, entende o problema? Claro, isso não necessariamente pode significar o interesse em uma ofensiva contra à Ilha, ainda mais após um tratado oficial de paz, entretanto, não há outro lugar para onde facilmente o império possa ser expandido em Nótos, por conta das cordilheiras de montanhas. E é mais do que óbvio que ele tem grande interesse nesta ilha. O que iremos fazer?
- Nada - o senescal respondeu.
- Nada? - Nerin repetiu, incrédula - Mas, como assim nada?
- Andromeda decidirá o que deve ser feito, e ultimamente anda em um estado de contemplação - Chrysaor suspirou - Conversarei com ela amanhã, e talvez ela se reúna conosco depois.
Nerin esfregou as têmporas.
- Preciso comer algo - falou - E preciso de uma boa noite de sono, algo que não tenho desde que parti de Leontius.
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PALÁCIO DE LEONTIUS, PORTO REAL
REINO DE LEONTIUS
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- NERIN RETORNOU. CHEGOU ONTEM à tarde com relatos de Gaheris - Chrysaor dizia, enquanto eu me forçava a engolir o forte chá que havia na taça em minhas mãos - Seria bom que a recebesse.
- Irei recebê-la, mas somente quando retornar de Vrachos. Assim terei mais tempo e calma - garanti, e então notei que havia um leve sorriso no canto de seus lábios - O que foi?
- Estou tão satisfeito em vê-la tomando seus medicamentos - seu tom era quase o de um pai orgulhoso - Vamos, beba tudo!
Ergui as sobrancelhas, surpresa, mas virei a taça e tomei até o último gole; o mel ajudava um pouco, mesmo que o gosto permanecesse amargoso. Pus a taça já vazia na bandeja de prata e voltei a sentar-me na poltrona de frente para ele.
- Conte-me tudo o que Nerin lhe disse - pedi.
Escutei calmamente enquanto o senescal repassava as notícias que Nerin Belevonis trouxera; particularmente estava quase satisfeita por ter previsto tudo. Quando ele terminou, encarou-me em silêncio, como se aguardando que dissesse algo.
- Interessante - falei, esticando a perna para frente tentando relaxar os músculos.
- Interessante...? - Chrysaor repetiu - Andromeda, em pouco tempo receberemos uma delegação gaheri aqui! Precisamos traçar planos, ou então forjarmos um bom motivo para cancelarmos a vinda...
- Não - o cortei - Em hipótese alguma iremos cancelar. Receberemos a delegação e o embaixador, deixe que venham para Leontius onde estarão sob meu controle.
- Mas e se isso for justamente o que eles querem? - as sobrancelhas do senescal se ergueram.
Eu sabia que a paz com o Império Gaheris nada mais era que um pedaço de papel com a assinatura do imperador e dos três reis dessa Ilha, e este pedaço de papel poderia facilmente ser rasgado. O que ninguém parecia ver era que Gaheris buscava uma aliança com algum monarca daqui, para aumentar sua influência ou facilitar uma investida militar.
Não iria tratar de tudo isso com Chrysaor neste momento.
- Estaremos com a vantagem - optei por responder, sorrindo - Acho que você precisa de uma boa noite de sono, Chrysaor. Vá se banhar e se deitar. Confie em mim e não se preocupe com isso.
- Você também precisa descansar - ele rebateu, mas se levantou e seguiu até a porta - Tome a poção para dormir.
Eu não iria tomar e evitei dizer isso a ele, limitando-me a sorrir mais uma vez enquanto nos despedíamos e observei-o sair pela porta. Permaneci ali sentada, enroscada na poltrona em minha sala; não queria dormir e correr o risco de prender-me em pesadelos, então não fui para meu quarto de dormir.
O vento agitava as cortinas de seda dos portais em arco e faziam as chamas dos fogos oscilarem; logo entraríamos no verão e o calor faria bem à minha saúde, e em seguida viria o outono, com sua umidade e chuvas constantes. Após ele, viria o inverno que, com seu frio e nevascas, castigava-me a saúde. Eu tinha tanto o que resolver e pensar. Assassinos misteriosos, cartas misteriosas, artefatos misteriosos... Talvez nada disso estivesse relacionado comigo, mas com certeza trariam problemas indesejáveis para Leontius, o que frustrariam meus planos - e isso não poderia permitir. Porém, haviam assuntos um pouco mais urgentes com os quais teria que lidar.
Não sei por quanto tempo fiquei ali, imóvel, perdida em pensamentos, mas quase me assustei ao ouvir batidas na porta. Como já havia dispensado meu servo, Kato, antes de receber Chrysaor, ergui-me da poltrona confortável e fui até a porta, abrindo-a.
- Basil, o que faz aqui? - perguntei, ao mesmo tempo o dando passagem para que entrasse, sentindo um sorriso surgir em meus lábios - Já está tão tarde, deveria estar dormindo.
O rosto bonito e anguloso de Basilides Ariti parecia iluminado, como se ele estivesse de bom humor, e um sorriso erguia discretamente seus lábios, como se estivesse tentando contê-lo. Quando o vira pela primeira vez, seus olhos azuis eram selvagens e cansados, mas agora parecia que a tempestade neles havia se acalmado.
- Ah, não está assim tão tarde - dessa vez seu sorriso se abriu - E eu vim lhe trazer isso.
Ele estendeu a mão esquerda - que estivera atrás das costas durante esse tempo, percebia agora - e entregou-me uma boneca de pano, como a anterior que havia me dado, porém essa tinha lã amarela para os cabelos e um vestidinho púrpura.
Peguei com as duas mãos, rindo alegremente.
- Basil, não precisava me dar outra - falei, mas abracei a bonequinha contra o peito, como tinha feito com a primeira.
Pareceu que ele diria algo, mas no fim apenas pressionou os lábios, ainda com um sorriso, e me encarou nos olhos.
- Precisava sim - respondeu.
Alguma coisa em seu tom ou em seu olhar pegou-me de surpresa; foi estranho, embora não tenha sido ruim. Havia certa... gentileza em sua voz... Mas gentileza não era a palavra correta. Doçura. Havia certa doçura em sua voz e em seus olhos. Era estranho ver isso em Basilides.
Sem saber muito bem o que dizer, optei por deixá-lo à vontade enquanto deitava-me no longo e largo sofá que havia em frente a lareira, que ficava do outro lado da sala, oposto das varandas. Ali daquele lado também ficavam estantes com livros e outros objetos; Basilides os examinava, passando os dedos delicadamente pelas prateleiras.
- Gosta de ler? - perguntei.
- Sim - assentiu - Quando estou com paciência suficiente, gosto de ler.
- E isso é algo que não acontece com frequência, é? - mordi o lábio - Você estar paciente, quero dizer.
- Eu não sou paciente - virou-se para mim e sorriu - Sou imprudente, tenho o sangue quente e uma facilidade enorme para me irar. Sinto uma tempestade em mim todos os dias, como as que se elevam do próprio mar.
Ergui as sobrancelhas, surpresa por suas palavras.
- Acredito que cada um tenha uma tempestade dentro de si - afirmei.
- Até mesmo você?
Refleti por alguns segundos antes de responder:
- Sim, até mesmo eu.
- É quase impossível imaginá-la estando de outro modo que não seja calma - tombou levemente a cabeça, analisando-me - Ou com sangue nas mãos.
- Quase sempre consigo manter a calma, este é um dom que tenho: um grande domínio próprio. Permite que eu pense com clareza em situações complicadas - me sentei com um pouco de dificuldade, encolhendo as pernas mas ainda mantendo-as sobre o sofá - Porém, tenho sim sangue nas mãos, e se necessário for sou capaz de tomar várias decisões desonrosas e dar ordens que poucos teriam estômago suficiente para dar. Para manter um trono e um reino, não se pode ser uma ovelha mas sim um leão.
- Ou uma leoa - Basilides acrescentou, fazendo-me sorrir.
- Não posso ser bondosa e misericordiosa todo o tempo. Um monarca não mantém sua coroa se não sujar as mãos de sangue quantas vezes forem necessárias - respirei fundo, esfregando os olhos com suavidade - Qualquer um que diga algo diferente disto está mentindo ou vive em um mundo de fantasias. E qualquer governante que contradiga é um fraco e está sendo manipulado.
Basilides sentou no sofá ao meu lado, relaxado.
- Você faz parecer que reis e rainha são vilões, e olhe que eu sou o assassino aqui!
Soltei uma risada.
- Talvez todos os governantes sejam vilões com rostos de heróis - pensei em voz alta - Talvez eu, a rainha, seja uma vilã com rosto de heroína. E você, o assassino, seja um herói com rosto de vilão.
- Você não é uma vilã, Andromeda - mais uma vez gostei do jeito que ele disse meu nome - Você é uma grande e forte rainha, que sobreviveu à grandes adversidades com uma resiliência inacreditável.
Senti meu coração aquecer com suas palavras.
- Você é gentil... aqui - toquei seu peito, na altura do coração, com a ponta dos dedos - Você pode negar, mas tem um coração gentil.
Ele passou a mão pelos cabelos e esfregou a nuca, encarando-me pelo canto dos olhos depois de olhar ao redor.
- É solitário aqui - falou, subitamente - Se me permitir, poderia vir visitá-la mais vezes, após o jantar, e lhe fazer companhia. Tenho várias histórias que talvez goste de ouvir.
Ergui a mão e toquei seu rosto, como ele já havia feito comigo, e acariciei sua bochecha sentindo a barba loira sob minha palma.
- Seria um prazer ter sua companhia à noite, Basil - concordei - Eu agradeço.
- Você está cansada - os olhos claros percorreram meu rosto - Não costuma dormir bem, não é?
- Não - respondi - Realmente não durmo. E não gosto de tomar poções para dormir, eu... Eu me sinto desprotegida em sono profundo.
- Eu entendo - seu olhar suavizou-se.
Ficamos em silêncio por um tempo, ouvindo os trovões que começavam a soar lá fora e a chuva que os acompanhava.
- Quando era criança, tinha dificuldade para dormir - Basilides virou o corpo em minha direção - Só minha mãe conseguia me acalmar o suficiente. Posso tentar fazer com você o mesmo que ela fazia comigo.
- Basilides...
- Eu fico com você até que adormeça - se pôs de pé e estendeu a mão em minha direção.
Hesitei por alguns segundos antes de segurá-la e me levantar. Deixei que me acompanhasse pela parte coberta do átrio até chegarmos em meu quarto de dormir, e levei-o até a grande cama.
- Deite-se - pediu, suavemente.
Empurrei as cobertas para o lado e me deitei, sentindo seu olhar em mim.
- E agora? - murmurei.
- Vire de lado e feche os olhos.
Virei de lado, porém não fechei totalmente os olhos; senti Basilides se ajoelhar ao lado da cama e, para minha surpresa, senti seus dedos se enroscarem em meus cabelos enquanto lentamente ele acariciava as madeixas.
Era realmente relaxante, embora não fosse a primeira vez que ele tocasse meu cabelo; gostava de seu toque e fechei os olhos sem nem sentir.
Ele começou a murmurar algo, parecia uma canção.
- Silêncio agora, ouça minha estória - consegui entender o que ele cantava, em voz grave e rouca - Feche os olhos para dormir, sinta as ondas do mar por vir...
Nunca haviam cantado para mim assim antes, e era bom. Tão bom. Concentrei-me apenas em sua voz, respirando fundo, deixando a canção ecoar em minha mente. Basil não era nenhum bardo, mas sua voz não era desagradável.
Estrelas estão a brilhar
O vento está se erguendo
Palavras sussurrando
Antigas canções de ninar
Oh, você não virá
Comigo para um lugar
Onde a lua é feita de ouro
E pela manhã o sol sempre brilhará?
Oh você não virá
Comigo para um lugar
Onde o oceano encontra o céu
E ouviremos a canção do mar?
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