12. Assassinato
"A natureza nunca nos engana; somos sempre nós que nos enganamos."
- Jean-Jacques Rousseau, Emílio ou Da educação
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PALÁCIO DE LEONTIUS, PORTO REAL
REINO DE LEONTIUS
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- VOCÊ NÃO ENTENDEU O QUE eu disse antes? Flexione os joelhos! - gritei, chutando a perna de um dos rapazes mais novos - Sempre mantenham os joelhos flexionados!
- Desculpe, Basil - ele pediu, melhorando a postura.
Coloquei todos para treinarem em duplas, praticando golpes ofensivos e defensivos; caminhava por entre eles, observando e analisando cada um para ter certeza que seguiam minhas instruções. O vento estava forte e agradável, típico de meados do verão. Encostei em uma das colunas de mármore da área externa e cruzei os braços.
Havia dormido por no máximo duas horas durante a madrugada, pois pelo restante do tempo fiquei deitado na cama pensando em tudo que rainha Andromeda contara; eu sentia muito por tudo o que ela passou, e sentia ainda mais porque sabia como era ter sua vida arrancada de si e passar anos sendo um prisioneiro em tudo menos em nome.
Agora eu compreendia seus olhos tristes.
Não gostava de cogitar o que a rainha passou nas mãos dos barões sendo uma menina, sabia muito bem o que homens cruéis eram capazes de fazer. Ela com certeza passara por torturas psicológicas também, um exemplo disso era o fato de um deles ter destruído suas bonecas com fogo.
- Chega de treino por hoje! - gritei de forma súbita, atraindo a atenção dos presentes - Já é suficiente. Estejam aqui amanhã ao nascer do sol.
Com alguns murmúrios, os rapazes foram guardando os equipamentos e aos poucos foram deixando o pátio. Esperei que todos tivessem partido para sair do palácio.
Não segui para os estábulos, dessa vez fui para a cidade a pé, me esgueirando por entre as pessoas; nesse momento a montaria me fez falta, pois sairiam da frente se eu estivesse abrindo caminho sobre um cavalo. Como sempre, o lugar fervia pela agitação, mercadores gritavam anunciando preços; pareceu-me que um deles gritava sobre um elixir que curava a impotência e quase ri ao ouvir isso.
Fui passando os olhos por cada área, observando os mercadores e mercadorias. Temperos, loções, tecidos... Ah, ali estavam! Bonecas de pano!
Aproximei-me devagar; uma delas tinha lã marrom costurada para imitar um belo cabelo longo, e um tecido fino compondo um belo vestidinho branco. O homem atrás da bancada notou meu interesse e não demorou muito para que eu pagasse o preço e recebesse a boneca.
De volta ao palácio, recebi alguns olhares curiosos por estar segurando uma boneca, mesmo que tentassem disfarçar. Revirei os olhos. Será que não tinham nada melhor para fazer?
Diante das portas dos aposentos da rainha, hesitei por alguns segundos antes de bater. Um garoto de olhos e cabelos escuros, aparentando ter entre treze e catorze anos, abriu e me encarou com as sobrancelhas levemente erguidas.
- Quero ver a rainha - esclareci, tentando não soar grosseiro; aquele era um dos servos.
- Aguarde, por favor - respondeu com seriedade, voltando a fechar a porta.
Momentos depois ele voltou, abrindo caminho e apontando para o interior, minha deixa para entrar.
Andromeda não estava na primeira grande sala, mas sim em seu jardim particular. Atravessei o primeiro cômodo, passando pelo grande portal em arco onde cortinas de seda sacudiam suavemente com o vento. A rainha sentava em um banco de pedra cheio de almofadas para que pudesse se encostar relaxadamente.
O lugar era cheio de flores, com bancos e mesas feitos de pedra, assim como o parapeito que delimitava as extremidades; o vento trazia o cheiro de maresia, certamente vindo do porto real, o único porto que ficava dentro das muralhas e dava nome à cidade. Misturava-se com o aroma doce das flores, fazendo-me franzir o nariz, embora não fosse algo ruim.
Rainha Andromeda estava com vestes simples, um robe de seda púrpura por cima de um vestido branco e fino; seus cabelos escuros estavam totalmente soltos e emolduravam seu rosto e pescoço, caindo suavemente até abaixo dos ombros. Parecia cansada, mas sorriu ao me ver e acenou para que sentasse ao seu lado.
- O que posso fazer por você, Basilides? - ela perguntou, com sua voz elegante, observando meu rosto.
Sentei-me no banco, esticando os braços para trás confortavelmente, e logo em seguida estendi a boneca de pano em sua direção. Estava ansioso para ver se ela iria gostar.
Andromeda pestanejou, seus olhos de corça fixos na boneca por um segundo, antes de novamente estarem em mim, e voltar a abaixar o olhar, finalmente pegando-a com as duas mãos. Alisou o vestido e os cabelos da boneca, em silêncio, com toques delicados e quase contemplativos; era certo que estava se lembrando de suas antigas bonecas.
- Obrigada, Basil - seu tom soou baixo.
Percebi uma lágrima escorrer por seu rosto, Andromeda parecia tentar esconder, e eu desviei o olhar. Lágrimas me deixavam um pouco sem jeito, nunca sabia o que fazer.
- Não precisa agradecer, eu só... - comecei a falar, mas me interrompi. Eu só queria fazer o que? Nem eu sabia direito por que fui comprar uma boneca de pano para ela. Talvez por pena de tudo que ela passara. Pigarreei - Eu só achei ela parecida com você, então precisei lhe dar.
Um sorriso completamente aberto iluminou seu rosto quando ela voltou a me encarar, seus olhos cor de mel estavam estreitos, e pude ver agora que a rainha tinha covinhas nas bochechas. Pela primeira vez desde que a conhecera, a tristeza em seus olhos parecia ter aliviado um pouco.
Outra lágrima escorreu, mas dessa vez ergui a mão e toquei seu rosto, enxugando-a. Para minha surpresa, ela fechou os olhos lentamente, aninhando a face em minha mão. Alisei sua bochecha com os dedos, sentindo sua pele quente e macia.
Tracei sua bochecha, nariz, sobrancelha e cabelos, antes de alisar seu queixo e tocar seus lábios. Eles eram cheios, e estavam vermelhos; senti outra vez o calor dentro de mim aumentar, como da última vez em que estivera sozinho com ela, e alisei também seus lábios.
Andromeda suspirou de forma audível, o que me fez voltar a mim e parar de tocá-la. Respirei fundo e esfreguei a nuca, enquanto ela abria os olhos, piscando, com as bochechas vermelhas. Vê-la assim me fazia ter vontade de agarrá-la, porém, obviamente não iria fazer isso. Desviei o olhar para longe dela, encarando à frente.
- Estava pensando em tentar voltar ao hospital mais tarde, para conversar com a curandeira e descobrir se ela manteve contato com Phillip - cuspi as palavras rapidamente, apenas para tentar me distrair do fato de que sentia o calor do corpo de Andromeda bem perto de mim - Já passaram alguns dias, talvez não levante suspeitas e ela não se assuste.
Pelo canto dos olhos pude ver seu pequeno sorriso; ela ainda segurava a boneca com as duas mão, como se fosse algo precioso que não pudesse perder.
Sua mão quente segurou meu pulso, para chamar minha atenção.
- Vá durante a noite, mas vá acompanhado - falou - Eurynax está a par dos acontecimentos, deixe que ele vá com você.
- Sim - a olhei novamente - Minha rainha.
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- Então quer dizer que há suspeitas sobre a boa curandeira trabalhar com Phillip? - Eurynax ergueu as sobrancelhas - E você nem mesmo desconfiou que ela pudesse estar lhe enganando?
- Esta não é a primeira vez que isso acontece comigo - confessei.
- E provavelmente não será a última.
Isso era verdade.
- Quando estava em Greekia, - contei - uma mulher fez amizade comigo e me ofereceu comida e uma cama para que eu pudesse passar a noite. Fui enganado por sua gentileza quando, na realidade, ela estava tentando fazer a mesma coisa.
- Você tem essa habilidade tácita de fazer as pessoas lhe perseguirem - riu Eurynax.
Não achei seu sarcasmo divertido.
Ele me acompanhou até os estábulos e mais uma vez escolhi Zephyros. Antes, porém, que eu pudesse montar o animal, Eurynax deteve-me.
- Este é o cavalo da rainha.
- Sim - ergui as sobrancelhas.
- O cavalo favorito da rainha - repetiu.
- Eu ouvi corretamente.
- Então você não pode simplesmente pegá-lo, Basilides.
- É um bom cavalo.
- Um excelente cavalo - Eurynax concordou - Mas não é seu. Pegue este - gesticulou para um cavalo marrom, tão grande quanto Zephyros.
Respirei fundo, decidindo não discutir com Eurynax por isso; ele montou em seu próprio cavalo - preto com manchas brancas -, e me seguiu de perto enquanto começávamos a avançar pelas ruas tranquilas.
- Você está com sua espada? - perguntei.
- Tenho certeza de que não precisaremos de armas.
- Péssima decisão - zombei - Devia trazer alguma arma, nunca se sabe o que pode acontecer - pelo menos eu tinha minha adaga escondida e presa sob a manga.
Quando chegamos ao hospital, amarramos os cavalos à uma árvore; Eurynax estava pronto para tomar a frente, mas o impedi.
- Deixe-me ir primeiro, ela vai me reconhecer - falei, e Eurynax assentiu.
Atravessamos a praça, em direção às portas da frente. Estava quieto à noite, o que parecia incomum para mim, já que estava acostumado a ver o lugar lotado de mercadores. Algumas janelas estavam abertas, com uma pequena vela iluminando os quartos. Batemos na porta e esperamos. Alguém deve ter nos ouvido, pois escutei passos do lado de dentro. A porta não se moveu, mas a janelinha foi aberta para que vissem quem era; um homem que ali trabalhava nos espiou.
- Sim? - falou.
- Desculpe, mas você se lembra de mim? - perguntei - Eu costumava ficar aqui alguns dias atrás. Estou procurando uma curandeira daqui.
- Você sabe o nome dela?
Eurynax e eu nos entreolhamos.
- Sobre isso... nunca perguntei o nome, mas lembro-me de que estava encarregada do segundo andar. Ela costumava trocar os lençóis de linho também. Trabalhava à noite, senão ela estava no templo, aquele onde...
O homem acenou com a cabeça e fechou a janelinha. Pressionei os lábios; ele devia ter notado que não parecíamos ameaçadores. Ele poderia ter dito para esperarmos em vez de irmos embora. Só nos restava esperar.
Alguns momentos se passaram até que o homem voltou, abriu a porta e chamou uma curandeira para se aproximar; a reconheci como a Igétis daquele hospital, pois era a responsável por organizar e comandar o lugar.
- Você deve estar procurando pela Irmã Honoria - disse a Igétis - Ela estava encarregada de seu andar, eu me lembro bem. Infelizmente, ela foi embora há pouco tempo.
- O que quer dizer com isso? - arregalei os olhos.
- De volta para Firentía, a última vez que ouvi.
Quase engasguei com a saliva.
- Firentía? Pensei que você queria dizer que ela partiu por alguns dias, não para o continente Nótos! - senti o sangue sumir de meu rosto.
- Sim, Firentía - repetiu, como se eu fosse estúpido.
- Eu ouvi você da primeira vez, senhora - meu tom saiu grosseiro.
A mulher parecia claramente irritada comigo. Nossa presença provavelmente não era muito bem-vinda, especialmente àquela hora da noite.
Eurynax, sentindo que as coisas iriam piorar se ele me deixasse no comando, decidiu intervir:
- Ela disse alguma coisa antes de partir? Talvez tenha deixado alguma coisa para trás?
A Igétis olhou para o chão como se estivesse tentando se concentrar.
- Bem, ela parecia nervosa. Eu não saberia lhe dizer o motivo. Achei que pudesse ter a ver com dinheiro, mas isso não era algo que não pudesse ser consertado, afinal, temos navios chegando e partindo de Porto Real constantemente. As viagens podem ser caras, mas ainda assim, eu não entendia o que a preocupava tanto, não era como se ela não tivesse um lugar para ficar até conseguir juntar mais dinheiro. E os navios vêm e vão, todos os dias da semana, certamente se perdesse um, poderia partir em outro.
- Muito obrigado - disse Eurynax, e voltamos para nossos cavalos enquanto a Igétis fechava a porta do hospital.
- Não acredito nem por um momento que Irmã Honoria estivesse indo para Firentía - lancei um último olhar para trás de mim, sobre os ombros - Ela provavelmente trabalhou com Phillip.
- Não podemos ter certeza até perguntarmos a ela - comentou - É possível que tenha sentido o perigo e decidido fugir. Estava com pressa de deixar Leontius, mesmo sem dinheiro.
- Temo que algo tenha acontecido com ela.
- Devemos relatar isso a Chrysaor antes de tirar conclusões precipitadas - Eurynax parecia começar a perder a paciência.
Dessa vez eu não estava com vontade de brigar, então decidi ceder, poderia tentar convencer Chrysaor a enviar alguns homens para procurar a irmã Honoria. Estava dividido entre esperar por mais instruções ou fazer uma busca sozinho; se ela tivesse partido hoje, talvez a encontrasse em um dos portos, poderia ter a chance de encontrá-la antes que o sol nascesse. Ainda assim, não sabia onde procurá-la. Firentía talvez fosse apenas um local escolhido aleatoriamente como uma maneira de enviar-nos em uma caçada sem rumo.
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No dia seguinte, desde o nascer do sol até pouco antes do meio-dia, treinei os recrutas do lado de fora do palácio, à céu aberto. Dessa vez os fiz correr e pular, e por último para lutarem entre si, enquanto meus pensamentos permaneciam em irmã Honoria e sua urgência em sair de Leontius.
Liberei a todos sem nenhuma justificativa, mas eles estavam gratos por isso, já que hoje treinaram em jejum.
Observei os rapazes caminharem para longe. Enquanto eles desapareciam por entre as colunas, junto com alguns guardas que assistiram o treino, o silêncio se instalou logo depois. Um pássaro cantou em uma árvore, enquanto eu seguia para meus aposentos; iria lavar-me e ir para a cidade. Talvez não fosse a coisa mais sábia a fazer, pois Chrysaor teria pedido a alguém para me acompanhar - ou melhor, vigiar -, mas enquanto ficasse calado e voltasse em boa hora, passaria despercebido.
Depois de tomar banho e trocar de roupa, desci as escadas e me esgueirei até os estábulos. O homem no comando deve ter se familiarizado comigo agora - ele sabia sobre meus malfeitos ou fora informado sobre eles por Eurynax (porque, honestamente, quem mais teria sido?). Fiz questão de dar uma cenoura a Zephyros antes de montar em outro cavalo. Não queria atrair mais atenção para mim, mas precisava admitir que me afeiçoara ao cavalo branco - assim como fora afeiçoado à Pegasus.
Agora mais familiarizado com as ruas de Porto Real, evitei as áreas lotadas e avancei com o novo cavalo até os arredores da cidade. Ao me aproximar do antigo esconderijo de Phillip, prestei mais atenção nele. Parecia estar totalmente vazio, sem uma única alma ao redor para ficar de olho ou defendê-lo. Não havia mais nada naquele lugar, exceto uma velha ruína. Decidi não me concentrar mais nisso.
O cavalo me levou para uma trilha deserta, um caminho familiar que geralmente levava estrangeiros à capital. Foi o caminho que eu mesmo tomei para chegar em Porto Real, e viajantes e peregrinos o usavam constantemente. Ocasionalmente via cavaleiros em armaduras, e mantinha o olhar baixo, para que não me observassem demais. Felizmente, ninguém prestou atenção em um homem e seu cavalo, e segui minha jornada em paz. Foi horas depois que cheguei ao mar, com a água se estendendo no horizonte. Havia conseguido, meu objetivo era encontrar o porto mais próximo e perguntar às pessoas sobre todos que embarcavam em navios para Firentía.
Depois de seguir a estrada e perguntar aos peregrinos sobre o porto mais próximo, fui guiado até uma vila de pescadores onde muitos navios traziam carga. Encontrei um lugar onde poderia amarrar o cavalo e perguntei às pessoas sobre a rota dos barcos. E assim, andei pela pequena cidade, mas não encontrei nenhuma informação útil. O outro porto mais próximo vinha do norte, que era muito longe para viajar até lá em uma única noite. Além disso, uma mulher nunca teria feito essa viagem sozinha, então Irmã Honoria teria saído daqui se tivesse realmente deixado o Reino de Leontius.
Horas depois, voltei para meu cavalo, frustrado por minha falta de descobertas. Massageei a testa e olhei ao redor; o sol quente do meio-dia havia baixado no céu fazia tempo e já era hora de voltar se não quisesse ser interrogado por Chrysaor. Montei no cavalo e voltei. Devia ter me desviado da estrada por acidente e tomado outro caminho porque cada vez menos peregrinos estavam usando o caminho pavimentado. Convencido de que não estava perdido, continuei. Porto Real não ficava longe - de uma forma ou de outra, chegaria ao meu destino, pois todas as estradas da costa levavam à mesma cidade.
Pensei que estava alucinando devido ao cansaço, mas ao longe, algo chamou minha atenção. Era algo disforme, deixado na terra, talvez um objeto perdido. Desci do cavalo e o guiei pela terra escura e gramas que se acumulavam à medida que avançávamos. Ao me aproximar do objeto amorfo, percebi que era algo muito maior, meio coberto de terra. O chutei e o vi se mover, então comecei a desenterrá-lo. Percebi que não era uma bolsa nem outro objeto grande como uma sela, mas sim o corpo de uma pessoa. Estava quente, coberto de roupas e exposto ao sol. Virei o corpo e fui tomado de uma sensação terrível.
O capuz que cobria o rosto de Irmã Honoria caiu. Seu cabelo loiro cobria sua face, e todo seu rosto parecia severamente machucado. Nada era surpreendente sobre o lugar remoto - ideal para cuidar de negócios particulares. O certo era que a mulher não estava mais respirando.
Ela havia sido brutalmente espancada e deixada para morrer.
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