• VINTE E SETE • PEDRO
Não deveria estar aqui.
Tenho repetido mentalmente essas quatro palavras desde que deixei minha casa uma hora antes. No entanto meus pés me trouxeram até aqui, diante da porta da casa de tio Mika. Tento negar, mas meu corpo está em busca de André. Desejo sua companhia, seus longos períodos de silêncio e os sorrisos furtivos. Aqueles que ele dá quando pensa que ninguém está observando.
Insano ao extremo eu sei, mas é como me sinto. Quando não escuto ou vejo movimento algum dentro da casa, suspiro baixinho deixando meus ombros caírem, a ideia de que não está em casa se estabelecendo em minha mente turbulenta. Dou meia volta e sigo para meu carro, no mesmo instante um carro que conheço bem estaciona bem atrás do meu. Como se tivesse levado um choque, meu coração pulsa ferozmente.
A cinco passos de entrar em meu carro, paro em meu caminho. Minha atenção totalmente voltada para os homens com expressões sérias e cansadas em seus rostos. Acabo pensando que não foi uma boa ideia ter vindo até aqui. Me lembro que em uma das muitas mensagens que trocamos, André menciona que hoje tio Mika iniciaria seu tratamento. Assim que ambos estão fora, aceno fracamente.
- Que surpresa você aqui, Pedrinho! Como foi o encontro com Dudu?
- Foi tudo bem tio Mika. - me abraça fortemente. Por cima de seu ombro, seu sobrinho me observa atentamente. - E o senhor, como está?
- Um pouco cansado e enjoado, mas fora isso tudo bem! - se separa um pouquinho de mim. Os olhos claros um tanto opacos. - Entra para jantar conosco?
- Hum...- mais uma vez, olho para André. Ele dá de ombros, o terno se adequando perfeitamente em seu corpo. - Não acho...
- Deixa de besteira, janta com a gente! - ele murmura suavemente.
Seu braço envolve meu ombro enquanto ele me leva até sua casa novamente. Quando estamos dentro, tio Mika suspira baixinho, suor se acumulando em seu rosto. A palidez se acentuando gradativamente. Preocupação me domina, me ajoelho diante dele.
- Tio o que está sentindo? Está pálido e suando muito, o que posso fazer?
- Uma lata de lixo! - diz entre ofegos. Nem dou dois passos para longe dele, uma lata metálica de lixo surge diante dele. André me agradece com um elevar de queixo. Sua gravata assim se foi, alguns botões de sua camisa social clara estão desfeitos e nossa, como foi difícil desviar o olhar dali. - Obrigado garoto. Me viro aqui, vá fazer sala para Pedrinho!
- Primeiro vamos cuidar de você tio!
- Olha, eu posso voltar outro dia! - digo totalmente constrangido. - Na verdade, não sei o que estou fazendo aqui!
- Eu sei! Veio tirar uma casca do meu sobrinho.
- Tio! - nossas vozes se tornam uma. Uma pausa de silêncio para depois explodirmos em gargalhadas.
- Agora me deixem aqui! Vão conversar, me entendo com a lixeira, somos velhas conhecidas.
- Tem certeza?
- Absoluta!
Com uma toalha que André colocou em minha mão, limpo todo o suor de seu rosto. Ele ainda segura o estômago com uma leve careta desfigurando seu rosto. Beijo seus cabelos deixando o pano ao seu lado. André lhe entrega uma água com gás e com um sinal indica que o siga até o quintal traseiro de sua casa. No caminho Aquiles passa por mim, cheira e lambe meus chinelos para logo trotar em direção ao seu segundo amor que é tio Mika.
A lua está alta no céu, o cheiro de grama fresca invade minhas narinas. Aspiro o cheiro me lembrando de casa. Mamãe sempre manteve o jardim bem cuidado e limpo, acho que era uma segunda ocupação para ela, além de pintar. Isso me lembra dos momentos que passava com ela no atelier até altas horas. Sempre terminava com a gente coberto de tinta. Meu irmão também adorava uma farra.
Com suave André bate a mão no chão, ao lado de onde está. Me sento lentamente, ainda me questionando se foi uma boa ideia estar aqui. É um momento privado.
- Está pensativo hoje! - seu dedo cutuca minhas costelas. Dou um sorriso apertado.
- Não deveria ter vindo, você havia me dito que estariam indo ao médico hoje e que talvez ele não ficasse tão bem.
- Sim, eu disse! - disse polidamente. Aperto meus olhos em sua direção.
- Desculpa, eu só precisava conversar com alguém sabe?
- Entendo. Como foi lá?
- Intenso. - arrumo meu coque que se desfez no caminho para cá. Antes que eu termine o serviço, uma par de mãos me impede. Seu olhar me queimando é indicativo de alguma coisa. - O que foi?
- Não prenda, gosto dele solto! - um momento que se parece como a eternidade se passa entre nós. E são tantas palavras não ditas mas que falam tanto. Engulo em seco quando meus olhos traiçoeiros vão para seus lábios.
- Tudo bem. - soltando o ar deeis pulmões com força, deixo meu coração se acalmar. Seu toque me causa algo que ainda não posso nomear.
- Me diga, como foi com Dudu!
- Ah, nossa foi simplesmente intenso como disse. Ele nunca havia ganho um presente acredita nisso? Comprei alguns artigos de papelaria e pintura para ele. Ele chorou André. Aquilo foi tão marcante, me pergunto como podem os pais negligenciarem os filhos dessa forma. Ele só tem sete sete anos sabe?
- Imagino. Na minha profissão eu já vi tanta coisa. Que hoje eu não me surpreendo com mais nada. - aperta meu braço sutilmente. - Ele gostou do presente?
- Sim, quis usar na hora. O levei para tomar um sorvete. Enquanto tomávamos ele desenhava.
- Qual é o sabor favorito dele?
- Morango.
- Também gosto de morango, nisso nos parecemos.
- E confeitos, ele adora! - seu rosto se transforma em uma careta. - O que? Não me diga que não gosta de confeitos?
- Não é minha coisa favorita!
- Um crime! - aponto um dedo em sua direção dramaticamente. Ele então se rende ao riso solto. Gargalhando realmente, após sua explosão nos fitamos intensamente.
- O que?
- Sua risada é linda!
- Nem tanto! - faz pouco caso. Sua atenção está em seus sapatos pretos.
- É verdade, deveria rir mais André! É bonito.
Não obtenho nenhuma resposta da sua parte. Ele se trancou novamente em si mesmo. Abraço a mim mesmo, sem me conter deixo minha cabeça cair contra seu ombro. Enquanto o silêncio nos embala algumas partes da conversa que tive com minha amiga antes de entrar no quarto de Dudu me vem a mente. Aquele bebê indefeso que perdeu a vida tão cruelmente.
- Está pesando demais novamente.
- Dudu teve uma irmã! - sinto seu corpo endurecer sob mim.
- E onde ela está? O sistema geralmente não separa irmãos, colocando - os em uma mesma família.
- Os pais biológicos de Dudu são piores do que imaginava.
- Eles...
- Tinham associação com o tráfico na cidade vizinha. Trabalhavam para um traficante e em um dos serviços, a bebê não teve chance. - minha voz racha. Jesus, estou emotivo hoje. - Desculpa descarregar tudo isso sobre você, tio Mika acaba de chegar do hospital e meu Deus. O que estou fazendo aqui?
- Ei! - não percebo ter ficado de pé até o momento que André se ergue em toda a sua altura. Os olhos marcados pela preocupação. Sua mão enrolada em meu pulso. - Pode contar comigo para o que for, você sabe!
- Não é justo eu...
- Somos... amigos Pedrinho. - sem minha permissão mostro todo o meu ódio pela última palavra dita. Ele ri baixinho, o dedo indicador traçando as linhas de meus lábios.
- Amigos não se beijam André! - lhe pisco um olho.
- Tem razão! - termina de invadir meu espaço pessoal. Nossas respirações estão misturados assim como nossos perfumes. Posso sentir a temperatura de sua pele, meus dedos se torcem para toca - lo. - Amigos não se beijam! Mas se apoiam não?
- Só queria ter alguém diferente para falar. Minha família me apoia como nenhuma outra mas ficam preocupados com meu estado emocional sabe?
- Imagino!
- E tem o fato de que sempre que me vem a mente a irmã de Dudu, me lembro de Ella. Se Manu não tivesse feito aqueles documentos, o que seria da minha filha no sistema? Ou vai que fosse adotada por uma família de pessoas abusivas. - meu corpo estremece com a possibilidade alarmante. - Aquela bebê não teve chance de se defender. É simplesmente tão injusto! - fecho minhas mãos em punhos. Com um olhar torturado no rosto, o homem loiro, alto e silencioso diante de mim, captura em seu dedão uma lágrima furtiva. Uma lágrima que nem sentir derramar.
- Há muitas pessoas no mundo como você Pedrinho. Dispostas a dar todo o amor que essas crianças precisam. Você não podia fazer nada por aquela criança, nem sabia da existência dela.
- Mas se eu...
- Acredito que faria o impossível por ela se estivesse por perto. - diz com uma convicção ímpar.
- Obrigado por me ouvir.
- Não agradeça! - acaricia as maçãs do meu rosto. Minha pele se arrepia cada vez que repete o ato. - Posso fazer algo que tive vontade de fazer tem dias?
- Sim! - digo sem hesitar. Acho que sei do que está falando. Se eu levar em consideração o olhar aquecido com que me presenteia.
Com um grunhido acaba com o mínimo espaço entre nós, tomando minha boca. Uma mistura de lábios, línguas e dentes é o que nós somos. Suspiro em seus lábios, pensando que nunca vou me cansar de seus beijos. Beijos esses que me acendem ferozmente. Uma de suas mãos agarra minha cintura, seu corpo se adequando ao meu. Como peças que finalmente se encaixam. Sinto que seus cabelos são macios ao toque assim que meus dedos se esbaldam ao se enredar por entre os fios. Puxo - o para mim, sua língua maravilhosa busca a minha, mordo seu lábio inferior com força arrancando dele outro grunhido que não deveria ser sexy, mas é.
- A pizza chegou meninos! - pulo para quase um metro longe de André. Sua mão que havia descido para minha bunda ainda no ar. Piscando algumas vezes me oriento e não resisto, quando vejo estou rindo histericamente.
- Te ataquei não foi? - sua voz está rouca.
- Não, essa carga é de nós dois! - continuo sorrindo largamente. Envolvo meu braço no seu e juntos entramos na cozinha sendo recebidos pelo aroma maravilhoso de pizza e pelo olhar presunçoso de tio Mika. Ambos nos sentamos ignorando prontamente o indagação em seus olhos. E tenho um momento onde meus pensamentos não se desviam de possibilidades que não existem.
[....]
Quando seu resmungo corta o silêncio da noite, coloco o livro que estou lendo desde antes de dormir horas atrás, sobre a mesa branca em seu quarto. Esfregando meus olhos que parecem ter areia neles, me espreguiço indo em direção ao berço. Como imaginava Ella tinha os olhos cinzentos abertos e um biquinho em seus lábios. Suas bochechas estavam vermelhas assim como suas orelhas.
- Ei, como chegou tão rápido aqui? - vó Moira diz suavemente a partir da porta.
Chamo - a com gestos apenas, ela entra vestindo seu pijama de flores. Hoje ela insistiu em dormir aqui, o que agradeço internamente. Ella não está bem. Já dei banho, mamadeira e troquei suas fraldas. Depois de muito custo ela dormiu minutos antes mas acordou novamente, foi aí que minha avó resolveu o problema. Minha menina está com cólicas.
- Estava sem sono. - minto facilmente. - Decidi ficar aqui, estando para ela assim que acordasse.
- Oi coisa fofa! Com dor ainda?
Como se concordasse com minha vó, Ella dá um berro estridente movimentando os braços e pernas desordenadamente. Lágrimas molham suas bochechas. Sentindo a dor dela, pego - a no colo, beijo sua cabeça suavemente. Seu cheiro de bebê invadindo minhas narinas, me acalmando um pouco. Volto para onde estava sentando anteriormente, vó Moira disse que estaria no quarto se eu precisasse dela, me deixando sozinho logo em seguida. Deito - a de costas sobre minhas pernas.
- Não chora meu amor. Papai está aqui! - massageio sua barriguinha com movimentos suaves. Ela choraminga um pouco se retorcendo. Ficamos ali por alguns minutos, a cólica não estava cedendo. - Ainda com dor? - minha voz sai estrangulada pelo fato de odiar que esteja com dor. É normal na maioria das crianças mas mesmo assim, me quebra a um nível extremo.
Assim que ela chora um pouco mais, me coloco a andar pelo quarto com ela. Faço com que meus braços passem por seu tronco e ela fica de costas para meu peito. Seu pequeno corpo se retorcendo ferozmente. Meia hora depois e nada. Estava quase chamando minha avó quando uma ideia me vem a mente.
Com toda a suavidade do mundo, viro - a de modo que sua barriga esteja perfeitamente sobre meu peito. Suas mãozinhas capturam meus cabelos soltos, ela os puxa firmemente e me surpreende sua força. Com a ajuda da temperatura do meu corpo, um pouco da cólica vai embora. Alguns passos depois, minha filha simplesmente só solta alguns barulhinhos fofos, ela já não chora mais. A dor parece ter ido embora e isso me faz sentir no topo do mundo.
Não querendo solta - la imediatamente, me deito na cama extra da solteiro que há em seu quarto. Me arrumo nos travesseiros de modo que ela permaneça sobre mim. Enquanto seguro meu pacote precioso com todo o meu amor, sem que eu permita a imagem de um bebê sem vida saqueia minha mente e alma. Um bebê que não teve ninguém para lutar por ele. Um bebê que não teve o amor que era destinado a ele. Um bebê que perdeu tanto da vida. Ella é meu amor, assim como o garotinho de sete anos de idade, que chorou ontem por ter ganhado um simples presente. Crianças que não são meus sangue, mas que terão tudo de mim.
- Te amo Ella, nunca duvide disso!
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