• VINTE E SEIS • PEDRO
Carteira, celular, óculos de grau e óculos escuros. Com movimentos ágeis coloco esses objetos dentro de minha bolsa fechando e abrindo - a duas vezes, as mãos trêmulas confirmam a ansiedade correndo por cada veia de meu corpo. Respirando profundamente tento acalmar meu coração e faze - lo bater normalmente, não posso ter um ataque cardíaco no dia que irei ver Dudu novamente. Esse menino precisa de mim assim como eu dele.
Chego a sala a passos rápidos, minha família aplaude com excitação. Vô Geraldo segura Ella firmemente, enquanto a bebê está quieta parecendo curtir o colo logo cedo. Com minhas bochechas fervendo, pego um pouco de café preto bebendo o líquido escuro com avidez. Encosto meu quadril no balcão, minhas pernas instáveis.
- Você parece a ponto de desmaiar príncipe!
- Obrigado tia! - digo sarcasticamente. Piscando - me um olho, um sorriso maroto se abre em seus lábios carnudos.
- Estou aqui para ajudar!
- Filho, respira fundo e vai com tudo!
- Estou calmo mãe!
- Não está! Onde estão os artigos de papelaria que comprou para ele? - dou um salto em meu lugar, o café quente descendo pelo lado errado, meus olhos lacrimejam e com batidas violentas tento não morrer engasgado.
- Ah merda! Quase me esqueço! - deixo o que sobrou do líquido negro sobre a bancada pronto para correr em direção ao meu quarto e pegar tudo o que demorei algumad horas para embalar em papel presente.
- Relaxa o coração príncipe! Tia Lu já resolveu o problema! Coloquei a carga especial no banco de trás de seu carro.
- Obrigado tia! - me abano um pouco mais soltando o ar que não percebi ter prendido. A sensação de que morreria sem ar passando aos poucos.
- Não agradeça, agora repita comigo: vai dar tudo certo!
- Vai dar tudo certo!
- Agora se despeça dessa princesa linda e vá para o nosso garoto! - caminho até o sofá. Pego Ella em meus braços, ela resmunga um pouco, na certa não gostando nenhum pouco de ter seu colo aquecido retirado. Aproximo meu rosto do seu, meu nariz tocando o dela sutilmente. Um sorriso sem dentes se abre em sua pequena boca. Os cabelos loiros se enrolam nas pontas fazendo um harmonioso conjunto com seu rosto. Suas pequenas mãos se movem freneticamente, beijo seus dedos. Aspiro seu cheiro de bebê que é reconfortante.
- Me deseje sorte bebê!
Como se concordasse comigo, solta um muxoxo feliz. Os olhinhos cinzentos imóveis mas que parecem me enxergar por dentro tão profundamente que é atordoante. Entrego - a novamente para meu avô. Seu macacão vermelho escuro contrastando com sua pele branca como a neve. Recebo um abraço duplo de minhas tias, vó das Flores e vó Moira me beijam duplamente também. É bom receber o carinho delas, tenho a sensação de que carinho de vó é dado duas vezes mais. Vô Horácio me lança um sorriso encorajador, as roupas que usa no hospital ainda frescas em seu corpo, seu plantão terminou tem menos de uma hora, ao invés de ir para casa ele decidiu estar aqui comigo e é maravilhoso. Me viro para despedir de minha mãe, encontro - a de braços abertos, alegria contagiante e deixando cada poro seu, assim como a afirmação em seus bonitos olhos de que estou no caminho certo. Isso é tudo que preciso. Diminuindo o espaço entre nós, me deixo envolver por seu abraço quente e que me confortou tantas vezes.
- Sabe que te amo não é?
- E eu também mãe!
- Sabe que estarei aqui quando chegar esperando por notícias. Sejam elas boas ou ruins.
- Sim.
- Você me dá tanto orgulho amor. Todo o caminho que trilhei desde que descobri sua existência até hoje. Foram tantos percalços e dificuldades que passamos mas também tantos momentos alegres.
- Não trocaria vocês por nada nesse mundo. - minha voz soa estranha até para mim. Acho que estou prestes a chorar, engulo o choro e aproveito do seu carinho.
- Dudu terá um grande pai, assim como Ella. Tem feito um bom trabalho com ela. Nunca duvide disso entendeu?- aceno afirmativamente não confiando em minha voz para responder. Ficando na ponta dos pés ela beija demoradamente minha testa. - Agora vai, seu pai está te esperando para te levar! - dou uma risadinha limpando o canto dos meus olhos.
- Mãe, avise para meu pai que sou bem capaz de dirigir até o Lar de Luz.
- Não vou príncipe. Ele quer ter esse tempo com você.
- Eu amo estar com ele. - digo com toda a minha sinceridade. Amo estar com meu pai, mesmo que ele não diga uma palavra sequer em todo o momento que estamos juntos.
- Ele sabe! Seus tios desejaram boa sorte e disseram que estarão aqui no mês que vem. Agora vai! - um tapa ardido em minhas nadegas me faz pular.
Deixo mais um beijo em Ella e saio rapidamente em direção ao carro, o qual meu pai vai dirigir, mesmo tendo dito inúmeras vezes que eu podia facilmente faze - lo. Lá dentro Henrique Delgado tinha as mãos envolta no volante, dedos taborilando na superfície de couro escuro, acompanhando o ritmo da música baixa que soava em todo o interior do veículo, sua banda favorita pelo que me lembre. Assim que me vê, destrava as portas me cumprimentando com somente um elevar de queixo barbudo. Assim que estamos com nossos cintos de segurança travados, coloca o carro em movimento. Uma parte do caminho é feito com nós dois perdidos em nossos próprios pensamentos. Ainda olhando através da janela, esfrego minhas mãos suadas em meus jeans.
- Estou nervoso! - digo simplesmente.
- Eu vejo!
- Mas não diga para mamãe sobre isso. Não quero preocupa - la.
- Não vou. E não é errado se sentir assim! Todos nós sentimos medo, uns demonstram mais abertamente e outros não. É simples filho.
- Eu te amo sabia?
- E te amo mais meu filho! - com a mão livre aperta fortemente meu ombro. - O filho que nunca pensei em ter, mas que vi crescer e ganhar o mundo com toda a sua simpatia e alegria.
- É sério que vai me fazer chorar logo agora pai?
- Não posso fazer nada se tem o coração mole!
Gargalho alto me aconchegando um pouco mais no banco. O ar condicionado refrescando minha pele e nos protegendo do calor que se ergueu orgulhoso hoje. O restante do caminho é feito rapidamente, a estrada alardeada de árvores altas é vista através de um borrão. Assim que estacionamos em frente ao Lar de Luz, Raquel já está a nossa espera. Assim que pego as coisas que comprei para Dudu, me despeço do meu pai com um abraço rápido e um beijo no rosto, ele diz que vai ficar pela cidade e comprar tintas para minha mãe.
- Olha como está bonito! - me faz dar uma volta de 360°.
- Entenda uma coisa, eu sou bonito Raquel! - lhe pisco um olho, ela ri baixinho me abraçando novamente.
- Nada convencido não é? - envolvo sua cintura com meus braços e juntos entramos.
O ambiente em si está silencioso, Raquel me informou que as crianças estavam em um passeio coletivo que havia sido marcado há algum tempo. As funcionárias estavam juntamente com as crianças se divertindo em um aquário na cidade vizinha. Passamos pelo pátio e a lembrança de meu primeiro encontro com Dudu me vem a mente. Chegamos ao segundo andar, onde os dormitórios ficam. Quatro portas escuras e maciças depois, estamos diante do meu futuro. Antes que minha amiga bata na porra, seguro seu braço. Ela me olha maneira interrogativa, as sobrancelhas bem feitas franzidas.
- Só queria tirar uma dúvida. - assentindo devagar, eu pigarreio me preparando para ouvir todas e qualquer tipo de informação.- Isso vem rondando minha mente tem duas já.
- Desenvolva homem!
- É sobre a irmã de Dudu! Onde ela está? - uma sombra se instala em seu bonito e delicado rosto.
Ela olha para ambos os lados, como se esperasse que alguém poderia surgir de algum lugar e nos ouvir. Sua atenção se fixa na porta novamente e soltando o ar com força além do recomendável, aperta levemente meu braço. A passos ligeiros ela me leva para o fim do corredor, então em sussurros me diz as palavras que iriam abalar meu mundo.
- Como havia te dito semanas atrás, os pais tem um histórico de vício e violência. Depois de deixarem o filho sozinho por dias, o conselho tutelar foi chamado como em tantas outras ocasiões. Só que nesse último episódio Dudu estava desidratado, faminto e sujo além da conta. O juiz enfim decidiu retirar a guarda dos pais e o colocou sob a tutela do estado. - desvia seus olhos por alguns segundos do meu rosto.
- Está me deixando nervoso Raquel!
- Quando ele chegou aqui ele realmente citou nas poucas vezes que falou, o nome da irmã. Entrei em contato com uma amiga minha que era responsável pelo caso dele, já que na cidade de onde Dudu é, não há um abrigo que atenda as necessidades de...
- Eu sei! Jesus, você quer realmente me matar do coração!
- A verdade é que eu realmente cogitei matar os pais daquela criança, tem noção disso? Eles estão envolvidos até o pescoço com um traficante muito perigoso. Em um dos muitos trabalhos que fizeram para ele, levavam as crianças, usando um veículo com condições precárias. Em uma de suas saídas, sofreram um acidente. Dudu teve apenas alguns machucados superficiais, os pais o mesmo mas a bebê...- pisco uma ou duas vezes.
Minhas pernas virando gelatina por um instante. A imagem de Ella alimentada, banhada e tirando seu cochilo da tarde me acerta em cheio e agradeço por poder ama - la e cuidar dela com tudo o que posso e sou. Além do apoio que ganho de minha família sempre que preciso. Agora entendo o motivo de Manu te - la deixado aos meus cuidados, mesmo que no início eu não soubesse trocar uma fralda ou aquecer sua mamadeira sem lhe causar uma queimadura. Manu foi embora tranquila, pois deixou sua filha em boas mãos. Mas e essa bebê, irmã de Dudu que não teve a mesma sorte. E tantas crianças nesse mundo cruel. Meu Deus!
- Jesus! Pedrinho, respira! Está ficando roxo. - Raquel usa suas delicadas mãos para abanar meu rosto.
- Estou bem!
- Não está! Vem, vamos tomar um copo de água.
- Não, meu filho... Dudu está me esperando. - sua boca se comprime em uma linha dura, como se estivesse desaprovando minha atitude. - E por favor, não quero ouvir mais nada.
- Ela não resistiu ao acidente...- sussurra lentamente. Suas palavras são levadas ao vento.
- Eu... Obrigado por me dizer de qualquer maneira. Assim me policio em não cita - la na presença dele. Posso leva - lo a uma sorveteria?
- Deve, é seu momento com ele. - beija meu rosto. Eu vou deixar vocês, estarei em minha sala ok?
- Tudo bem!
Observo - a descer as escadas aos poucos, assim que está fora de minha linha de visão, deixo meus ombros finalmente cederem ao peso da revelação que me foi feita minutos atrás. Régulo minha respiração e tento parecer um pouco alegre. Dudu me espera. Bato na porta por três vezes, o clique dela se abrindo soa alto aos meus ouvidos. Baixo meus olhos para a pequena preciosidade me encarando com os olhinhos escuros curiosos. Para facilitar nosso diálogo, me ajoelho para ficar da sua altura. O leve erguer de seus lábios, me lembra meu pai.
- Oi Dudu!
- Oi Pa...- meu coração vai na garganta e volta. Se for o que estou pensando, não estou preparado. - Tio Pedrinho.
- Você cresceu mais ou é impressão minha? - o olho de cima a baixo. Ele ri baixinho, os cabelos castanhos até os finos ombros, sendo contidos por seu inseparável bone surrado.
- Não cresci não tio!
- Não está me enganando, está?
- Não! - sua atenção se fixa na enorme bolsa que seguro. Pigarreio gravemente e me inclino em sua direção. - O que é isso?
- Um passarinho me contou, que um certo rapazinho foi bonzinho e merece ganhar um presente é verdade?
- Oh! - sua pequena e rosada boca se abre em choque, esperança nadando em seu rosto.
Estendendo a enorme sacola em sua direção, ele hesitar por um breve momento, mas logo toma - a de minha mão. Se ajoelha e com mãos ansiosas tira de dentro dela, tudo o que comprei. Um jogo de lápis de cores com as mais variadas tonalidades que nem sabia existir, tintas guache, giz de cera, massa de modelar e dois cadernos próprios para desenho.
De repente meu filho fica estático, a cabeça baixa. O queixo quase tocando seu peito e quem observasse de longe, apostaria que o menino não respirava. Suas mãos se fechando quase agressivamente nas bordas da sacola, quase recuo pensando que o chateei de alguma forma. O som de início baixo, vai tomando escalas maiores e quando minha mente um tanto nebulosa de tantas informações registradas desde que cheguei aqui, captam o que significa, quero bater na minha cara. O soluço dolorido que me toca profundamente, é o único som além de nossas respirações que flutua no ar. Meus próprios olhos se tornam úmidos de uma maneira irritante.
- Dudu, o que há de errado? Não gostou do presente? Olha, se não, posso comprar outra coisa. Qualquer coisa!
Nesse instante se tivesse de rastejar aos seus pés, eu o faria. Tudo por ele.
- Eu gostei tio! - mais soluços, fungados que me marcam a alma. Sua mão trêmula vai até às bochechas, tentando seca - las com movimentos bruscos.
- Você está chorando...
- Nunca tinha ganhado um presente tio.
- Nunca? - minha voz é irreconhecível para mim. Uma mistura de grunhido e sussurro.
Nega ainda sem olhar para mim. Com um bufo engasgado. Me ergo do chão escuro com aspecto luminoso, com uma praticidade pego o pequeno em meu colo, seu rosto indo de encontro ao meu pescoço. Seus fungados ainda presentes. Retiro o boné de sua cabeça beijando seus cabelos no processo. Aspiro seu cheiro e ali de pé, com o som de seu choro contido fluindo no ar, seus artigos de papelaria no chão e seu corpo diminuto em meus braços, faço mais uma promessa: faria de tudo para que ele fosse meu filho. E estaria estragando ele de tanto amor que lhe daria.
07/08/2019
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