• TRINTA E NOVE • PEDRO
Abro apenas um olho, observando a luz do Sol adentrar o quarto através das cortinas abertas. Bufo pensando que André mais uma vez as deixou abertas. Sinto dedos subirem e descerem de forma lenta e prazerosa por minha pele, o ato me tem arrepiando por completo. Solto um gemido de felicidade, o calor do seu corpo me coloca quase em combustão. Me viro dando de cara com um par de olhos azuis sonolentos. Entre duas sobrancelhas há uma ruga, estranho aquilo. Como sempre faço, esfrego - a até que desapareça totalmente.
- Está preocupado. - beijo seu peito.
- Só pensando.
- Terreno perigoso?
- Meu tio tem ido bem em seu tratamento.
- Isso é bom não é?
- Sim, muito. Mas acho que ele está me escondendo alguma coisa.
- Por que?
- Saídas noturnas.
- As vezes ele só quer tomar um ar.
- Todo arrumado? - o tom de zombaria em sua voz é nítida.
- Ele tem uma namorada então?
- Não sei. Vou tentar sonda - lo hoje a noite.
- E se ele estiver namorando?
- Hum...
- André Lins, você está com ciúmes do seu tio? - ele tem a decência de revirar os olhos.
- Não!
- Sim. Está escrito em todo o seu rosto.
- Talvez.
- Mas....
- Ele é minha única família. E se ele me deixar de lado por causa da namorada? - é uma preocupação fora de contexto. Mas a vulnerabilidade explícita em suas palavras me quebra. Segurando seu rosto firmemente em minhas mãos, beijo seus lábios de forma lenta.
- Se ele realmente tiver uma pessoa agora, acredito que nada vai mudar. E tem o seu pai também.
- Não somos próximos Pedrinho, sabe disso.
- Eu sei!
Fecho meus olhos pensando no quão fragmentada é a relação dos dois. André tem feito acompanhamento psicológico três vezes por semana, mas ainda tem seus pesadelos quando dorme comigo, a falta de sono ou ele apenas se fecha em si mesmo. A relação entre ele e o pai nunca vai voltar a ser a mesma mas eles tem tentado. As pescas que eles saem em alguns fins de semana tem surtido efeito. Ele fala mais quando chega da pescaria e até sorri mais. No entanto há algo que o trava por completo. Há uma falha entre os dois, que acredito que não há jeito de ser reconstruída.
- Mas vocês tem tentado não é?
- Claro.
Meu estômago ruge para a vida, me envergonhando. Enterro meu rosto em seu peito, rindo baixinho. Sinto - o tremer ao ror silenciosamente
- Estou com fome!
- Eu ouvi. - seus dedos acariciam meus cabelos. O carinho é bem vindo, quase me fazendo ronronar feito um gatinho manhoso. - Vou fazer nosso café da manhã, o que acha?
- Sou todo a favor! Vou ver Ella.
Observo sua bunda enquanto ele deixa o quarto, coloco uma camisa e um short. Escovo meus dentes rapidamente e tento domar meus cabelos indo em direção ao quarto ao lado. Abro a porta, um sorriso se abre em meu rosto com a cena diante dos meus olhos. Minha bebê tinha os olhinhos abertos, os cabelos revoltos e seu inseparável navio de pelúcia. Ela estava sentada mas as vezes caia para o lado. Agora com seis meses quase sete, estava mais firme em seus movimentos.
- Vejo que meu amor está acordada! - bato palmas suavemente. Ela para e ri alegremente.
Aproveito que ela está distraída com seu brinquedo e separo sua roupa do dia. Como está quente mesmo sendo tão cedo, opto por lhe colocar um vestido de alças e uma tiara de tecido na cor azul. Encho sua banheira com água quente do chuveiro, deixo tudo pronto na mesa perto do trocador e vou até seu berço, pego - a em meus braços e cheiro seu pescoço. Suas mãos se fecham como se já soubesse em meus cabelos, os puxando com força. Indo até o trocador, deito - a lá, tiro sua calça de moletom estilizada juntamente com suas meias e camisa. Tiro sua fralda molhada ao extremo e com cuidado tomo meu tempo a lavando. Ela bate com as mãos na superfície da água, me molhando no processo. Não me aguentando, me rendo a sua bagunça. No fim, tenho um bebê cheiroso e irradiando alegria por onde passa. Enquanto eu pareço um gatinho molhado. Não me importando, sigo em direção a cozinha. Quase tropeço em meus pés quando consigo registrar a imagem diante de mim.
A mesa está arrumada e preenchida com toda sorte de comidas. Vou até o cercadinho de Ella e a deixo ali para que eu possa fazer sua mamadeira. André se vira terminando de fazer o suco de laranja, me lançando um sorriso preguiçoso. Olho para seu peito, é a primeira vez que ele fica totalmente a vontade em minha casa. Ele veste somente sua calça de moletom cinza surrada e nada mais. Com passos lentos, me aproximo dele. Abraço sua cintura estreita e beijo seu peito. Bem em cima do seu pulsante e tão grande coração. Um suspiro trêmulo deixa seus lábios.
- Você fez todo café da manhã.
- Sim.
- Quando passou a ser um chef na cozinha?
- Horas de tutoriais no YouTube. - beijo seu queixo, feliz em ve - lo tão aberto.
- Santo YouTube! - dou alguns passos para longe dele. - Pode se sentar, vou fazer a mamadeira da minha bebê.
- Sobre isso...
- Sim? - meu namorado tem ambas as mãos em sua cintura. Os olhos fitando intensamente seus pés descalços.
- Está pronto!
- O que está pronto?
- Veja! - aponta para a mamadeira perto do microondas.
- Oh!
- Eu só queria adiantar seu lado. Assim Ella não ficaria esperando tanto tempo.
- Como?
Rindo baixinho, balança o celular de um lado para o outro no ar. A leveza ainda presente nele. Dando de ombros, olha para onde minha filha já começa a resmungar. Sorrindo brilhantemente, não consigo domar o sorriso em meu rosto. Beijo sua bochecha demoradamente e pego a mamadeira para alimentar um certo bebê ansioso. Me sento no sofá e com paciência espero que Ella se alimente no seu tempo. Observo que mesmo ela estando com muita fome, não toma a goles desesperados o líquido morno. Ela toma em goles curtos mas demorados. Coloco - a no cercadinho novamente e me sento ao lado de André que me observa quase em reverência.
- É a primeira vez que dorme aqui!
- Como? - toma um pouco de seu café.
- Disse que é a primeira vez que dorme aqui.
- Não, não é!
- Em minha cama pelo menos.
- Sua família geralmente estava ao redor, não queria faltar com respeito.
- Um cavalheiro.
- Tio Mika diz que sou quase um Lord.
- Versão séria.
- Mal humorado quer dizer.
- Você quem disse.
- Sim. - ficamos por um tempo em silêncio. O café está uma delícia assim como o misto quente. Solto um gemido ganhando um olhar conhecedor dele. - Adoro quando geme.
- Sério?
- Sim, principalmente se for baixinho e no meu ouvido enquanto te fodo! - me lança um olhar intenso.
Engasgo com o pão crocante. Alcanço a água para livrar minhas vias respiratórias. Lágrimas deixam meus olhos. Alguns segundos depois, consigo respirar normalmente sem ter pão ou queijo na mistura. Lhe dou um soco no ombro, ele apenas ri. Ri de jogar a cabeça para trás e mostrar todos o seus dentes. Por um momento me perco no som e magia de sua gargalhada. Mas me lembro que quase morri engasgado instantes antes.
- Não se fala essas coisas pela manhã, homem! Muito menos comigo comendo.
- Por que? Adorei ver seu rosto se tornar escarlate.
- Bem, quase morri só para constar.
- Eu te...- ele para no meio da frase. Senti meu coração vacilar uma única batida para voltar a pulsar com força total. O riso vai embora e no lugar só permanece o silêncio. Ella solta uma risadinha alta e se deixa cair para trás.
- Sente falta de Londres?
- No início sim. Eu morei com tio Mika por um tempo depois...- balança a cabeça para um lado. Suspira baixinho e bagunça os cabelos. - Passei uma temporada com tio Mika aqui além das férias escolares e feriados, mas meu coração sempre esteve em Londres. Acho que era por que minha mãe era de lá.
- É a primeira vez que fala nela. - aperto sua mão suavemente.
- Não há muito o que falar sobre ela.
- Mas ela é sua mãe...
- Nunca se portou como uma Pedrinho. Por isso te digo que tem sorte de ter a família que tem.
- Eu queria saber mais sobre você André. - cruzo meus braços contra meu peito. Meu tom sai um pouco amargo sem minha permissão.
- Não há muito para saber sobre mim.
- Não para mim. Quero saber tudo sobre você. Seus medos, alegrias, sonhos, inseguranças e tantas outras coisas.
- Pedrinho...- diante de mim a leveza que o rodeia tem dias vai se esvaindo como água através do ralo. As defesas que mantinha erguidas começam a se erguer novamente. Não aceito isso.
- Não se feche André. Por favor! Não para mim.
- Você não entende!
- Você tem medo! - sussurro acariciando seus dedos. Os olhos estão em meu rosto e nem piscam. - Estamos namorando, não somos casados eu sei. Mas gostaria de saber um pouco mais sobre o homem que dorme ao meu lado.
O que se parecem ser horas e não simples dez minutos se passam. Sua mão ainda está na minha, ela está fria e em seu rosto há horror estampado. Começo a achar que fui longe demais em fazer com que ele se abra. Mas sua voz plana e sem emoção alguma me atinge.
- Foi ela quem causou essas cicatrizes em mim.
- O que? - sufoco a palavra sem mover um músculo sequer.
- Minha mãe colocou fogo em nosso apartamento duas vezes. Na primeira eu tinha dez anos. Na noite anterior ao ocorrido, meu pai havia chegado de viagem. Era para ser um momento de comemoração já que ele ficou duas semanas fora. Mas foi totalmente o contrário. Minha mãe estava bêbada demais para receber o marido e de madrugada discutiram sobre meu pai ter uma amante. Eu ouvi tudo como sempre acontecia. Ouvi quando o carro dele deixou a garagem e por dois dias dormiu em um hotel. Ele nem ao menos foi me dar um beijo. Acordei no terceiro dia a sua chegada com os pulmões ardendo e com fogo para todo o lado. Os bombeiros chegaram a tempo de evitar uma tragédia. Passei cinco meses aqui com tio Mika. Foram os melhores meses da minha vida. Então, minha mãe se dizia estar bem e exigiu que eu voltasse. A vida seguiu como se nada tivesse acontecido. Eles eram bons em fingir. Eu não. Eu passei a odia - los, então London surgiu e não tinha motivos para estar em casa. Com treze para quatorze anos, as discussões voltaram com força total. Minha mãe chegou a tentar queimar meu pai com seu álcool e esqueiro. Ele novamente saiu de casa, naquela noite tinha uma festa para eu ir. Só fui convidado pois andava com London. - uma risada áspera deixa seus lábios. Sem me conter, abraço seu corpo incrivelmente tenso. - Mas não fui. A madrugada chegou e senti quando ela entrou no meu quarto, se abaixou e beijou minha testa. Lembro perfeitamente dos meus pulmões congelarem com esse gesto há tempos ansiado. Sussurrou um "eu te amo" e se trancou no banheiro. Dormi depois disso acordando com fumaça para todos os lados. Corri desesperado pelo apartamento, não conseguia enxergar nada e o calor era tão intenso que pensei que iria ser cozinhado vivo.
- Meus Deus! Por favor, para! - ele parecia não me ouvir no entanto. A medida que ele avançava em seu relato, seu aperto em minha mão se tornava ferrenho.
- Eu fiz a única coisa que podia naquele momento. Chamei por ela. Eu me lembro de cair no chão da cozinha, cortar minhas mãos no vidro sobre o piso e gemer de dor. Cheguei ao banheiro de seu quarto encontrando - o trancado. Não consegui abrir, voltei para a sala a fim de abrir as janelas só para ser lançado contra a parede pela explosão vinda da cozinha. Então eu senti o cheiro de carne queimada juntamente com a dor absurda para logo apagar.
- Você era só uma criança André. - disse após um tempo em silêncio. Só o que havia entre nós eram nossas respirações profundas e curtas, Ella estava estranhamente quieta como se sentisse a tensão fluindo em ondas no ar. Olho brevemente para onde a deixei, ela estava deitada em silêncio.
- Não vai perguntar sobre ela?
- Ela não sobreviveu eu imagino.
- Cortou os pulsos em sua banheira depois de incendiar o lugar.
- Jesus Cristo!
- É daí que vem meu ódio por bebidas. Essa maldita acabou com minha vida.
- Você ainda a odeia?
- Estou trabalhando nisso. - murmura vagamente.
- Você foi muito corajoso em sair em busca dela.
- Mesmo com todos os erros dela, eu ainda a amava. Era minha mãe no final de tudo. Mas ela simplesmente me deixou aqui, para crescer sem mãe.
- Você tem seu tio e seu pai.
- Por muito tempo foi somente meu tio. Gustavo só surgiu agora que está aposentado.
- Ele está tentando...
- É o mínimo que deveria fazer.
- Minha mãe sempre diz que às vezes para lutar contra o passado, é preciso se perdoar e perdoar aos outros. Deixando ir.
- Sua mãe é a luz em pessoa. Gostaria de ter conhecido ela com mais tempo.
- Ela tem um carinho especial por você sabia?
- Eu sei. E eu por ela. - seus olhos antes nublados pela dor e rancor, tem um brilho intenso. Há carinho ali.
Pela primeira vez desde que nos conhecemos, eu o vejo. Vejo André totalmente despido diante de mim. Sem seus muros, máscaras e palavras certas. Ele é somente um homem quebrado por um acontecimento que o marcou tão profundamente que influenciou sua vida até os dias de hoje.
Sem dizer nada, ele me puxa para seu colo. Sua pele quente combinada a minha, faz - me esquecer quase que totalmente do que estávamos falando. Enquanto seus dedos acariciam meu ombro vagarosamente e com um olhar fascinado, vejo suas paredes se erguerem aos poucos. Mas ao contrário de como me sentia anteriormente, agora não me sinto fora. Eu me sinto participando de tudo. Pois eu sei quem é o verdadeiro André. Sei de cada sorriso, cada palavrão, cada respirar. De tudo.
- O que tanto pensa?
- Que não foi tão ruim.
- Se abrir?
- Ficar totalmente vulnerável diante de você. Foi.... libertador.
- Obrigado.
- Eu que agradeço. - nesse instante uma certa bebê exigente, grita a partir da sala. Seus resmungos nos arrancando risadas agora leves. - Posso pega - la?
- Claro!
Com uma nítida adoração, assisto ao meu namorado pegar com toda a delicadeza existente nesse mundo Antonella que se move em busca de uma posição boa de se estar em seus braços firmes e bronzeados. Sem conseguir me segurar suspiro chamando sua atenção, que beija seus cabelos me lançando uma piscadela marota.
Ali eu sei que quando André retornar para Londres, o único machucado na história serei eu que mesmo sabendo de sua não permanência fixa aqui, ainda assim o deixei entrar.
Estou fodido.
Sem revisão
17/08/2019
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