• QUARENTA E NOVE • ANDRÉ
Três meses.
Três longos e tortuosos meses haviam se passado desde o dia que senti meu mundo ser abalado totalmente. A torrente de sentimentos crus é tão intensa que em muitos momentos, me vejo afogando em mim mesmo. Na dor de ver quem eu amo em uma cama de hospital, lutando pela vida. Eu não tenho mais lágrimas para chorar, me sinto tão seco quanto um deserto.
Depois que passou por duas cirurgias, uma na cabeça e a outra para conter a hemorragia na região torácica, assim como o médico havia informado, Pedrinho foi colocado em coma para que seu corpo se cure com o tempo. Um tempo que só seu próprio corpo sabe. Depois de duas semanas na UTI, seu estado se tornou estável, o que permitiu que pudéssemos respirar com tranquilidade, sem a sombra da morte pairando ao nosso redor.
Quando ele foi posto em um quarto, nos organizamos para que ele não ficasse sozinho. Então a cada dia um familiar seu, estaria como acompanhante dele. Nos dias que eu dormia no hospital com ele, somente o som das máquinas que monitoram seus sinais vitais eram a melodia que embalava uma parte de nossa história que preferia esquecer. Em seu quarto frio e imaculadamente branco, eu murmurava em meio a ofegos suas canções preferidas. Uma das enfermeiras responsáveis pelos quartos no andar que ele está, me disse com um sorriso simples mas que confortava que cantar para ele ajudaria. Não sabia se poderia me ouvir ou não mas eu não poupava fôlego para que ouvisse através das canções o quanto eu o amava.
A rotina das crianças também mudou, com tio Mika praticamente morando com Regina, sua namorada e estando muito bem, deixei o escritório em suas mãos pelo tempo que levasse para Pedrinho acordar. Os médicos não tinham uma data prevista mas não davam muita esperança para nós. Ainda que tenhamos poucos meses juntos, sinto que é uma vida. Tomei para mim, juntamente com Luana e Henrique missão de cuidar dos tesouros de meu namorado. As crianças que ele tanto ama. Sei que é o que ele iria querer. Todos os dias com a ajuda de Luana eu faço o café de Dudu, alimento Ella que já se acostumou a minha presença constante em sua casa. Ela é tão cheia de vida, que me perco a observando dormir tão calmamente quanto um bebê de um ano e alguns meses.
Sinto uma lágrima deslizar sorrateiramente por meu rosto e nela há tanta dor que me queima a alma. Com a mão que está livre de espuma, tento limpa - la para que ninguém perceba. A primeira gargalhada em meses de Dudu me faz querer permanecer forte, para mim e para eles. Olho por sobre meu ombro a tempo de vê - lo tentando guiar sua irmã pelo tapete. Suas perninhas rechonchudas as vezes parecem não sustentar seu peso, o que torna engraçado é o fato de sempre tombar para o lado, fazer um biquinho fofo para em seguida bater palmas animadamente rindo alto. Mesmo que não tenha uma gota de sangue de seu pai, sua gargalhada é tão contagiante quanto a dele.
- Precisa de ajuda aí André?
- Não Lua, mas obrigado mesmo assim. - sorri minimamente. A sombra da mulher de meses atrás, solta um suspiro baixo voltando sua atenção para os netos que agora espalham brinquedos por todo o chão. Ainda que não possa enxergar, Ella se diverte com os sons que os brinquedos emitem.
- Tem certeza? Está olhando para esse copo tem alguns minutos.
- Tenho. - asseguro terminando de lavar a louça, que foi suja durante o café da manhã.
Agora só o que há entre nós é o som das crianças brincando. Mesmo estando de costas, posso sentir seu olhar queimar minha pele. Durante esse tempo que estou aqui na casa de Pedrinho, tenho conversado bastante com ela. Henrique também tem se aberto mais para mim e nos tornamos bem próximos arrisco dizer. Entendi que o homem primeiro testa o terreno, se for digno de confiança, ele então nos deixa entrar.
- Sabe o que me conforta é que os monstros que fizeram isso, estão presos. - diz em dado momento. Seco minhas mãos no pano de prato logo o colocando sobre a bancada.
- A mim também.
- Seu pai foi de grande importância em tudo isso. - afirma me fitando com cuidado.
Aceno lentamente, pensando no quanto sua descrição sobre a aparência dos três agressores que tiraram suas máscaras durante o acontecido, ajudou na hora da polícia fazer seu trabalho. Quando Vinícius nos encontrou no hospital, uma semana depois do depoimento do meu pai, dizendo que os responsáveis estavam presos, senti uma parte do peso em minhas costas se esvair como água pelo ralo. A sensação de que a justiça havia sido feita foi libertadora.
- Eu sei.
- Precisam conversar, você sabe sim?
- Eu sei. - repito quase automaticamente. Lua sabe de tudo sobre minha vida. Contei a ela em um dia, depois de colocar as crianças para dormir e sentia meu peito tão apertado que era difícil respirar.
- Bem, por que ele está vindo aí! - diz simplesmente. Sinto meus olhos se arregalarem durante o tempo que a observo atentamente em busca de traços de humor, onde ela iria rir descaradamente de mim dizendo que não passava de uma brincadeira. Mas eu sabia que esse não era o caso.
- Quem aí está a fim de dar um passeio no parque?
- Eu vovó! - Dudu praticamente dança em seu lugar. Os olhinhos brilhando de alegria.
- Vai lá pegar seu boné, enquanto eu pego uma garrafa d'água.
O menino dispara em direção ao seu quarto, no qual não tem dormido tem muito tempo. Um sorriso completo corta meu rosto, ao me lembrar de sentir todas as noites seu pequeno corpo entrar sob as cobertas ao meu lado. Ele faz tanto silêncio que só consigo nota - lo quando no meio da madrugada, ele de alguma forma se enrola em mim. No início eu tinha medo de rolar por cima dele e esmaga - lo mas então me acostumei. Assim como eu, ele tinha medo de perder o pai. Dormíamos dividindo o travesseiro de Pedrinho, seu cheiro nos mantendo na linha, longe do desespero iminente que nos rodeava.
Cinco minutos depois, ele está de volta. Ella já está nos braços da avó, seus dedos firmemente enrolados nos cachos castanhos escuros. Sua cabeça deitada no ombro dela. Dudu me lança seu mais bonito sorriso, abraçando minhas pernas. Acaricio seus cabelos suavemente.
- Se dêem uma chance tudo bem?
- Obrigado! - beijo sua testa. Ela respira profundamente. Com um tapinha em meu peito, ela segura a mão do neto que dá pulinhos em direção a porta, tagarelando sobre seu novo amigo que fez no parque.
Batem na porta exatamente dez minutos depois que Lua me deixou aqui, no meio da cozinha pensando em como será minha conversa com Gustavo. Eu não tive tempo e nem psicológico para tratar com ele sobre o assunto que me fez explodir naquele dia, antes de viajar. E minha atenção está voltada completamente para meu namorado e sua recuperação.
- Pai!
- Filho!
Dou dois passos para o lado, permitindo que ele entre. Fecho a porta atrás de nós, ele olha aí redor, mãos nos bolsos e uma postura um tanto tensa. Seus cabelos estão tão longos quanto os meus. Com um suspiro trêmulo, se vira em minha direção.
- Aceita uma água ou suco?
- Não! - olha para os sapatos por um breve momento. - Só preciso que me escute, tudo bem?
- Claro. - cruzo meus braços em frente ao meu corpo.
- Queria te pedir perdão por tudo.
- Hum...
- Por meu abandono, pelas brigas que tive com sua mãe, por não ter te visto como deveria, por lhe esconder sua irmã. Por tudo.- ele engole em seco, os olhos suplicantes inundados de tantos sentimentos, que é quase opressor.
- Pai...
- Eu juro que não me aproximo mais de você. Só preciso que me perdoe. - esfrego o espaço entre minhas sobrancelhas, minha atenção fixa no chão. Meus pés descalços.
Cansado de lutar contra meus próprios sentimentos, me lanço em direção ao meu pai. Envolvo seu corpo tão grande quanto o meu em um abraço que desejei por anos. Um onde eu encontraria todo o seu amor e cuidado por mim. O primeiro soluço corta o ar, seu corpo estremece por inteiro, me levando junto. Seu choro se mistura ao meu, são tantos anos de negligência e ressentimentos acumulados. Aos poucos sei que podemos ter um recomeço. Onde possamos estar em um mesmo ambiente, sem que fiquemos constrangidos.
- Obrigado pai.
- Pelo o que?
- Por salva - lo!
Se não fosse por ele ter estacionado perto do carro de Pedrinho e avistado os homens o agredindo, meu namorado poderia não estar vivo. Pelos ferimentos demonstrarem serem graves, penso que eles tinham total intenção de mata - lo naquele dia.
- Não agradeça. Eu fiz o que tinha que fazer.
Nos separamos, seu rosto assim como o meu está úmido pelas lágrimas derramadas. Lágrimas de perdão, essas não queimam como as anteriores. Elas libertam nossas almas dos grilhões do ressentimento. Um minuto de silêncio se faz até que estamos rindo histericamente.
- O que sabe sobre ela?
- Sua irmã?
- Sim.
- Acho que agora vou aceitar aquele suco. - concordo silenciosamente, lhe entrego o copo com o suco que fizemos para o café da manhã. Nos sentamos lado a lado no sofá. - Eu não a conheci como deveria. Como você disse naquele dia, eu fui um covarde em não lutar por ela. - não nego sua afirmação, dou de ombros, ansioso por cada pedaço de informação sobre minha irmã que possa conseguir. - Então a única coisa que sei é que seu sonho era estudar direito, essa informação foi dita por sua mãe durante uma de nossas ligações. Ela dizia que Manuela era muito rebelde, que nunca fazia nada que ela mandava e tantas outras coisas.
- Ela seria uma advogada como eu.
- Seria.
- Ela morreu tão nova. Se não for pedir muito, mas sabe a causa?
- Sônia me manteve no escuro depois que seu marido me ameaçou para mais me aproximar de minha filha. Então quando descobri que ela havia desaparecido, já tinha se passado muitos meses. Então veio a notícia de sua morte. Ela estava grávida, pelo que a mãe contou por alto, foi decorrente de uma hemorragia após o parto.
- Ela estava grávida. - murmuro fitando a mesinha de centro abarrotada de desenhos feitos por Dudu. - Mas e a criança? Onde está? Sobreviveu? - metralho ele de perguntas. Apertando meu ombro suavemente, tenta me acalmar.
- Não tive a oportunidade de terminar o telefone daquele dia. E Sônia não me atende mais. Com tudo o que aconteceu, esqueci totalmente de entrar em contato com um investigador particular. Se tenho uma neta por aí, farei o possível para encontra - la.
- Você disse neta?
- Era uma menina.
Uma ideia pisca em minha mente, mas logo a descarto pois seria muita crueldade da vida em si. Seria possível? Em minha mente surgem trechos das conversas que tive com Pedrinho sobre Manuela e sua família. E também as circunstâncias de dia morte tão prematura. Tal como nossa breve e incômoda conversa em meu escritório naquele dia quente. Me levanto em um salto, tomando um susto Gustavo derrama um pouco de suco no tapete da sala mas no momento não me importo.
- Qual o nome completo dela?
- Manuela Fontanela.
- Ela esteve perto de mim o tempo todo. - digo com a voz rouca.
- Como?
- Minha irmã, eu a conheci.
- Impossível!
- Vem, vou te mostrar.
Com um semblante de pura confusão, meu pai me segue. Entro no quarto de Ella quase tropeçando em minhas próprias pernas indo diretamente para a cômoda branca, sobre a qual o porta retrato de Manu fica. Escuto a ingestão de ar atrás de mim e sei que ele viu a foto. Gustavo passa por mim, os olhos arregalados em pavor. Seu dedo indicador trilha cada traço da foto em contemplação.
- Esses olhos! Nunca esqueceria esses olhos, são da sua avó.
- É ela?
- Sim. Mas como?
- Ela passou por alguns momentos difíceis.
Me calo não citando que se envolveu com um cara de péssimo caráter, que se envolveu com um traficante e muito menos que foi agredida no abrigo onde estava. Acho que sua cota de culpa já havia alcançado o topo do aceitável. Quem sabe talvez, com tempo eu diga aos poucos, orando para que não se culpe muito mais.
- Queria estar lá por ela.
- Não podemos voltar no tempo pai. Mas podemos ter um futuro diferente. - digo suavemente. Ele acena no mesmo instante que uma lágrima quente desliza de seu rosto, se chocando contra o porta retrato.
Gustavo foi embora meia hora depois, nos abraçamos mais uma vez com a promessa de jantarmos juntos assim que Pedrinho estivesse bem o suficiente para me acompanhar. Pois ele queria conhecer formalmente meu namorado. Lua chegou com as crianças em seguida, a abracei com toda força que tinha lhe dando um beijo demorado em sua testa, agradecendo por me apoiar em todos os momentos. Fui tomar um banho para que pudesse ir ao hospital render Felippe que havia dormido lá.
Lua deixou Moira com as crianças e foi comigo. Chegando lá ela foi procurar pelo médico responsável por Pedrinho, como sempre fazia. Encontrei com Felippe vindo da lanchonete do hospital, ele tinha dois copos de café em ambas as mãos, um pão francês na boca e um olhar cansado. Me cumprimentou erguendo um copo na altura do rosto, dei batidinhas em suas costas e esperei que comesse seu pão.
- Alguma melhora?
- Não. - toma um gole de seu café.
- Para quem é esse outro café?
- Para mim? - me olha como se tivesse lhe feito uma pergunta idiota.
- Tudo bem! Sua mãe está conversando com o médico. As crianças estão com Moira na casa dela. Está liberado, eu vou ficar com ele.
- Obrigado cara. - seu rosto suaviza, um pequeno sorriso brincando no canto de seus lábios. Eles podem ser filhos de pais diferentes, mas seus sorrisos são idênticos.
- Não agradeça! Ele é minha vida, se pudesse faria muito mais por ele.
Abro a porta do quarto, a esperança de ver seus olhos abertos é desfeita assim que encontro outra pessoa ao lado de sua cama. O homem que segura sua mão com tanto cuidado, está tão entretido que não ouve minha aproximação. Os ombros largos, cabelos negros cortados rente a cabeça e braços fortes não me dão indicação alguma de quem ele seja. Mas a forma como segura a mão do meu futuro marido me incomoda. Pigarreio gravemente atraindo sua atenção para mim.
- Eu conheço você? - digo de maneira neutra.
- Acredito que não. - limpa seu rosto.
Ele estava chorando, andando até a outra extremidade da cama, me coloco ao lado da cabeça de Pedrinho de forma quase protetora. As faixas que envolviam sua cabeça se foram, as madeixas antes longas foram cortadas. Uma parte de seu cabelo foi raspada para que pudesse ser feita a cirurgia. Suas bochechas estão fundas mas nada lhe tira sua beleza. Ainda sob o olhar intenso do estranho, me inclino depositando um beijo na testa de Pedrinho.
- Então?
- Me chamo Lucas. Amigo de Pedrinho.- sem me conter, faço uma careta. Me lembrando imediatamente de quem se trata e a vontade que tenho de socar seu rosto como fez com ele meses atrás, me domina mas tomo respirações profundas e tento ser civilizado e não ser expulso do hospital.
- E também o ex namorado.
- Isso também. Mas primeiro eu fui amigo dele. Mesmo depois do que fiz com ele, Pedrinho me perdoou. Só pude estar aqui por esses dias, quando soube o que aconteceu fiquei com muita raiva. Ele não merecia isso.
- Não, não merecia. - digo distraidamente. Estico cada dedo seu, estão pálidos assim como todo o restante de seu corpo. Vejo as horas no relógio sob a porta e constato que o fisioterapeuta já passou por aqui.
- Você deve ser o namorado.
- Noivo! - grunho as palavras, pois é isso que serei de Pedrinho assim que despertar.
- Só o faça feliz. - diz quando o silêncio se torna denso.
- Eu vou. - prometo firmemente. Não o vejo partir, o som da porta se fechando é a única indicação de que ele se foi. Acaricio os cabelos de Pedrinho, beijo sua testa e nariz carinhosamente. - Volta para mim amor, por favor!
Sussurro pertinho de seu ouvido. Não tenho nada de volta, seu peito subindo e descendo lentamente é minha esperança de que não é o fim. De que meu coração que bate fora do meu peito desde o momento que o vi sobre essa cama, voltará a bater profundamente dentro de mim, tão logo seus olhos azuis escuros se abrirem para mim.
23/08/2019
Bạn đang đọc truyện trên: Truyen247.Pro