• QUARENTA E CINCO • PEDRO
Eu não consigo desviar o olhar da cena diante de mim. É tão bonita e crua em tantos níveis. A emoção que a envolve é tão palpável que posso senti - la em casa centímetro de minha pele, coração e alma. Mesmo que não possa ver seu rosto, sei que há arrependimento estampado por todo ele. Os cabelos quase ruivos estão na altura dos amplos ombros, sua massa muscular dobrou de tamanho e tem dia inseparável barba espessa que não ocupa mais seu rosto. Felippe mudou tanto em tão pouco tempo. Quando ele saiu daqui era apenas um jovem em busca de viver a vida, seu retorno no entanto nos trouxe um homem disposto a fazer as coisas corretamente. Felippe não sabe lidar com algumas emoções, eu o entendo. As vezes nem eu mesmo me entendo. Mas a maneira com que ele lidou com a perda tão prematura de nossa amiga por tão pouco tempo, foi extrema para mim. Mas para ele, era a saída perfeita.
Quando se inclina em direção ao berço e deposita um beijo nos dedinhos dela, endireito minha postura e limpo meu rosto das lágrimas que não sabia estar derramando, ao presenciar o cenário diante de mim. Não querendo constrange - lo, volto para a sala. Vejo brinquedos espalhados pelo chão e me ocupo em junta - los em suas respectivas caixas, depois de tudo junto as levo até o quarto de Dudu o mais silenciosamente possível.
Deixo um beijo demorado em sua testa, sua boca entre aberta se move quase minimamente. Por ela passam sons parecidos com roncos baixos. Verifico se as janelas estão fechadas e deixo seu quarto, sem necessariamente trancar a porta, para que eu possa ouvi - lo quase tenha outro pesadelo. Suspiro profundamente sem saber o motivo de terem surgido logo agora. Tanto tempo depois que chegou aqui.
Quase coloco meu coração para fora ao topar com Fe no corredor. Abro e fecho a boca por diversas vezes, resmungo baixinho ao ouvir sua baixa risada. Passo por ele, lhe socando o mesmo lugar onde o agredi na entrada da trilha que nos leva para Minerva. Conseguindo o resultado que esperava, ele grunhe se dobrando sobre si mesmo.
- Porra, no mesmo lugar Pedrinho? Isso é maldade.
- Minha raiva por ter me deixado está diminuindo.
- Quantos socos até ela ir embora?
- Não sei. - chegamos a cozinha. Abro a geladeira, olho por sobre meu ombro. - Cerveja?
- Sim! - senta no banquinho. O mesmo que ocupou hoje o dia todo. É o mesmo que Manu ocupava sempre que sentavamos aqui para somente jogar conversa fora. Pisco uma vez e pego sua cerveja, me perguntando se ele sabe desse fato ou se o faz inconscientemente. Tiro a tampa da garrafa, colocando - a na frente dele. Seu dedo indicador circula a borda dela. Pigarreio sabendo que eu terei que iniciar a conversa.
- Ficou no apartamento de papai?
- Ele não me deixaria ir embora, se não fosse ficar onde seus olhos pudessem me alcançar.
- Eu imagino.
- Nos primeiros dias, eu pensei que ficaria louco lá.
- Por que?
- Primeiro por que queria estar aqui. E segundo era o barulho da avenida e das pessoas. Muitas pessoas. Aqui no mínimo sete horas da noite, o comércio está fechado. Lá não, uma ou duas horas da manhã havia gente nas ruas. Acho que era falta de costume.
- Devia ser mesmo. - engulo em seco. Volto para a geladeira, pego uma garrafinha d'água. Tomo um bom gole.
- Eu sei que me queria aqui.
- Tem razão. Mas nem tudo o que desejamos, podemos ter não é?
- Eu mereço isso.
- Minha amiga morreu, me deixando um bebê ainda lutando pela vida aos meus cuidados e meu irmão vai embora assim que o corpo de Manu é enterrado. Fe nós somos irmãos, sua dor era minha dor. Recebi tantos abraços por dias seguidos mas não tinha o seu.
- Eu sinto muito. - sua cabeça cai entre os ombros já caídos.
- Eu sei que sente. - uma única lágrima desce por seu rosto. Não aguento, dou a volta pela bancada e envolvo meus braços ao seu redor.
Eu queria tanto fazer isso. Desde o momento que o vi hoje depois de quase um ano, mas queria primeiro bater nele como quando éramos crianças. Ele aprontava comigo e eu precisava bater nele, que revidava. No fim, mamãe ou papai tinham que interferir. Mas nos resolviamos. Afundo meu rosto em seus cabelos, aspirando seu cheiro. Tão familiar. Quando ele sofreu a primeira sacudida, eu acompanhei o ritmo. Ambos choramos por tudo. Pelas perdas que sofremos, pela vida as vezes ser tão injusta e pelo fato que teremos de seguir em frente sem aqueles que tanto amamos.
- Eu sinto tanto a falta dela sabe? Sei que minha própria família não entendeu no início. Manu chegou aqui meio que de repente. Precisava de ajuda e só. Eu sabia que quando fosse a hora, ela iria embora para viver sua vida junto com seu bebê. Mas me deixei envolver tão rápido. Quando vi não podia ficar sem beijar ou toca - la. Adorava o rubor em suas bochechas e pescoço. O sorriso que iluminava tudo ao redor e suas poucas mas tão fortes palavras. Me apaixonei e não me importei que ela não sentisse o mesmo por mim. Mas ela sentia, confessou dois dias antes de...- ele gagueja completamente sufocado por suas emoções.
- Estou aqui. - nada e dito por alguns minutos. Tomando uma respiração rasa, ergue o rosto e olha diretamente em meu rosto. Os olhos tão idênticos aos do nosso pai, em profundidade fixos nos meus.
- Eu me sinto tão sufocado as vezes. É difícil respirar quando ela não pode mais fazer isso.
- Fe...
- Eu só queria sumir, sabe? Mas papai não deixaria se não mantivesse contato, então aceitei ficar em seu apartamento em São Paulo até que eu estivesse pronto para voltar.
- Já passou tudo bem?
- Eu me arrependo de ter perdido tanto de minha sobrinha. Ela é tão linda. E é a versão de minha Manu.
- Você pode fazer parte da vida dela agora, o que acha?
- Vou adorar. E obrigado por ter me apresentado ao Dudu.
- Bem, isso foi ideia de nossa mãe. Quando ele está com ela, ficam no estúdio dela. Acabam em um mar de tinta e risadas.
- Bem a cara dela.
- Fe, entra tinta até no tímpano do garoto.
- Ah, eu quero participar dessa guerra de tintas deles.
- Não dê corda cara.
Ficamos por um bom tempo abraçados, curtindo o calor corporal um do outro. Fe termina sua cerveja pedindo por outra. Um pouco mais calmo, resolvo acompanha - lo. Perto da meia noite, estamos ambos rindo baixinho, dizendo piadas s sentido e hora chorando, hora sorrindo. Enquanto me embebedava, contei para ele o que aconteceu durante o tempo todo que ele ficou fora. As caretas que ele fazia eram épicas. Ele perguntou também se estava tomando cuidado, por causa desses ataques que estavam ocorrendo pela cidade. Disse que sim, não contando para ele e nem para minha família que tem dias que me sinto sendo observado. Ando com o número da polícia na discagem rápida e há viaturas espalhadas pela cidade, o que me faz ficar um pouco mais seguro.
- Hum...vai fazer o quê com esses lençóis? - digo ainda esparramado no chão da sala. Fe sai do meu quarto levando lençóis e um dos meus travesseiros.
- Dormir?
- Eu sei mas vai ser aqui?
- Claro!
- Avisou para mamãe?
- Acho que sim.
- Olha lá em Fe.
- Relaxa, que quero matar a saudade do meu mano preferido.
- Tudo bem, só deixa eu levantar daqui. - bufo sentindo meu corpo muito pesado. Ele só ri enquanto arma o sofá em um sofá cama.
- Quer ajuda aí Pedrinho? - seus lábios estão se contorcendo.
- Não, eu consigo!
- Se você diz!
[.....]
Eu não consegui.
Penso assim que me viro, quase gritando de dor no pescoço. Ele está em um ângulo estranho. Sinto um gosto horrível em minha boca resultado de ter bebido a vontade ontem. Tento inutilmente abrir meus olhos mas a claridade quase me cega, suspiro me movendo o mais calmamente que consigo. Quando consigo me sentar, ainda não abro meus olhos.
- Olha seu pai acordou.
- Pelo amor de Deus mãe, não grita! - massageio minhas têmporas.
- Mas eu não estou gritando garoto!
- Mãe, você fez isso agora!
- Não se mete menino.
- Não está mais aqui quem falou. - Fe diz logicamente se divertindo.
- Dê um comprimido com um pouco de água para seu irmão.
- Ele que se resolva. Vou passear com princesa Ella no jardim. Está um clima tão bom lá fora.
- Fique sobre a tenda com ela, tudo bem? Aqui tem sua mamadeira com água, sua frutinha amassada e seu boné.
- Essa coisa brilhosa é capaz de cegar alguém, sabia disso?
- É presente de sua tia Martina.
- Vamos lá bebê!
O silêncio se segue por uns dez minutos, me sentindo mais humano. Decido abrir meus olhos, quase beijando o chão ao não sentir tanto incômodo. Me espreguiço ouvindo minhas juntas estalarem, escuto uma risadinha partindo da cozinha. Me viro pegando Dudu sobre a bancada, ele usa um avental do seu tamanho, os cabelos estão domados sob sua bandana e ele quebra com uma concentração de dar inveja, um ovo dentro da bacia.
- O que estão fazendo?
- Um bolo para tio Fe!
- Nossa eu também queria um bolo! - faço beicinho, sendo envolvido pelos braços finos mas muito fortes de dona Luana.
- Não fica com ciúmes do seu irmão.
- Não estou!
- Está sim. - beija meu rosto. Dudu quebra mais um ovo. - Sabia que quando seu irmão nasceu, você não deixava ninguém chegar perto dele?
- Sério?
- Sim. Nos primeiros dias, quando recebíamos as visitas você literalmente grunhia para elas. Ninguém podia pegar seu irmão que você chorava de soluçar. Só depois de alguns meses que você foi melhorando. Mas você sempre foi grudado com ele.
- Ele é minha metade né? Mesmo não sendo gêmeos, ele me completa.
- Vocês são os amores de minha vida. - ela segura minhas bochechas. O som de algo caindo nos tira de nossa bolha.
- Hum...papai?
Segurei a gargalhada, Dudu tinha os olhos enormes quando tentava não chorar. Havia farinha por todo o lado e no ar também. O pacote caído dentro da bacia. Me apoio na bancando, rindo silenciosamente. Recebo uma cotovelada de minha mãe, que murmura um "seja um pai sério!" para mim quando vai em direção ao neto. Depois de limpo, mamãe consegue colocar outra massa para assar. Faz a cobertura e jogamos conversa fora enquanto ela e meu filho confeitam o bolo. Fe entra quando terminamos de arrumar a mesa, o remédio que tomei fazendo seu efeito. Minha cabeça não parece que vai explodir e meu estômago está calmo.
Com Ella no cercadinho, nosso café tem início.
- Onde está papai?
- Não fale de boca cheia menino! - Fe recebe um tapa no braço. Ele engole e toma um pouco de seu suco.
- Precisa bater mãe?
- Sim. Ele está no batalhão.
Uma batida na porta, nos tem congelados. Me levanto indo para atender, já que nem minha mãe ou meu irmão não se moveram para faze - lo. Dou um sorriso pequeno para Vinícius, mas ele não retribuiu como é esperado. Pigarreio gravemente lhe dando espaço para que entre. Sua atenção para instantaneamente na sobrinha.
- Desculpe se estou atrapalhando o café da manhã de vocês. Mas eu preciso falar com você Pedro.
- Sente - se. Quer alguma coisa?
- Não. É rápido pois tenho que voltar para a delegacia. Vou colocar uma viatura na frente de sua casa.
- Oh mas por que?
- Os ataques estão acontecendo nas casas agora.
- Meu Deus! - em segundos minha mãe está ao meu lado. Fe também mas apenas observa. - Ainda não sabem quem são os responsáveis?
- Tivemos a descrição da última vítima, ela conseguiu tirar a máscara de um deles.
- Isso é bom não é?
- Muito. Mas não significa que vão parar. Por isso estarei enviando uma viatura para qualquer eventualidade.
- Olha... não é necessário.
- É e muito! - Fe fala pela primeira vez. - Com isso não se brinca.
- Tudo bem.
Vinícius faz uma ligação de cinco minutos. Volta com um semblante mais suave, enfiando as mãos em seus bolsos, fita a sobrinha que brinca calmamente. Há saudade em seus olhos.
- Posso pega - la um pouco?
- Claro, mas que pergunta. Tem certeza que não quer ao menos um café?
- Eu aceito, preto e sem açúcar.
Fe me empurra até nós sentarmos no sofá. Joga suas pernas sobre minhas coxas me lançando um piscadela marota. Vinícius toma seu café calmamente em uma conversa agradável com mamãe. Analiso sua postura por completo. Os ombros largos, cabelos loiros com cachos nas pontas e rosto composto por linhas duras lhe dão um aspecto de respeito. Mas seus olhos dizem muito sobre ele. Por exemplo, quando está com a sobrinha nos braços, há tanto arrependimento e culpa neles que é doloroso estar perto dele. Ele errou com a irmã mas vejo - o tentar ser o melhor para a sobrinha. Ella não poderia ter um tio melhor que ele.
E é acreditando nisso que o observo envolver a sobrinha em um abraço tão leve quanto a brisa de uma tarde de outono. Mas que é tão forte para protege - la quanto uma tempestade. Ele a ama. E é isso que importa.
20/08/2019
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