43 - O Inquisidor Cai
Heimewdall estranhou quando, a caminho para seus aposentos opulentes após aquele jantar conturbado, dois guardas da corte o pararam no meio do hall, o informando de que o Rei Supremo exigia sua presença imediatamente.
“Ele exige?” O vice-rei tinha questionado com uma sobrancelha erguida, e tudo se tornou ainda mais suspeito para ele quando tentou dispensar os guardas e ambos disseram que deveriam acompanhá-lo por ordens da rainha.
Mesmo estranhando, ele seguiu com sua costumeira postura soberba que considerava imaculada. Devido ao ocorrido com Akenmyuu à mesa, ele imaginou que o chamado de Kinmyuu deveria se tratar disso, praguejando mentalmente que seus tão importantes afazeres da noite estavam sendo interrompidos devido a prováveis choramingos de seu mimado sobrinho neto “malcriado”.
A imensurável tensão que permeava no ar atingiu Heimewdall como uma lufada assim que atravessou as portas do escritório, fazendo um calafrio atravessar cada fibra de seu ser, instigando todos os seus sentidos de alerta. Seu olhar foi direto ao de Kinmyuu, sentado em sua mesa ao fundo da sala.
Encarando o tio fixamente, seus olhos azuis safira nunca estiveram tão frios, em meio aos músculos tensos de sua face, carregando uma expressão impassível como se uma nuvem negra carregada pairasse sobre ele.
Heimewdall fazia o máximo para manter sua pose de falsa superioridade inabalável, no entanto, ao tentar dar o próximo passo, sentiu como se cada músculo de seu corpo o imobilizasse, fazendo-o congelar onde estava, como uma presa acuada por seu predador. A imagem do sobrinho nunca lhe pareceu tão ameaçadora, mas ainda assim, Heimewdall não estava disposto a ceder facilmente.
Engolindo seco, o vice-rei fez seu melhor para se recompor e caminhou de cabeça erguida até a mesa do Rei Supremo, por fim sentando-se numa das poltronas ricamente adornadas de frente para a mesma.
Sem dizer uma palavra sequer, com os braços apoiados sobre a mesa e as mãos entrelaçadas com força na altura do queixo, Kinmyuu continuava o encarando com uma intensidade feroz perfurante; suas pupilas contraídas espelhando toda sua indignação e raiva proeminentes.
No entanto, Heimewdall apenas o olhou de volta com a expressão livre de qualquer culpa.
— Algo errado, sobrinho? — Ele perguntou com um certo tom de desconfiança e ao mesmo tempo falsa inocência.
Kinmyuu suspirou profundamente, com cada músculo de seu corpo ardendo enquanto forçava seu autocontrole, para não explodir em fúria naquele exato instante.
— Vou ser bem direto com você, Heimewdall. Eu sei o que houve aqui durante minha ausência, e de suas atitudes repugnantes e inaceitáveis perante o Magistrado Mewhicann!
Heimewdall arregalou os olhos levemente, se perguntando em primeira instância como aquela informação chegara ao sobrinho tão rápido. Logo, concluiu erroneamente que Diamewd devia ter cumprido sua ameaça de contar a Kinmyuu sobre o ocorrido, o “pintando” como o errado e Mewhicann como uma vítima.
O vice-rei percebeu que estava numa situação delicada, e precisava agir com cautela. Sendo assim, recuperou um pouco de sua compostura e adotou a costumeira expressão egocêntrica.
— Vamos com calma, Kinmyuu. Você precisa entender que…
— Silêncio! — A voz de Kin ecoou autoritária pelo salão, conforme ele interrompeu a tentativa de argumentar de seu tio. — Não me insulte tentando criar desculpas para seu comportamento deplorável. Você foi preconceituoso, intolerante e cruel. Uma total desonra a sua coroa e a essa família, demonstrando totalmente o oposto de tudo que devemos representar como os descendentes da Luz, que você diz se orgulhar tanto de carregar em seu sangue. Não existem justificativas para sua atitude!
O Rei Supremo acusou, bruscamente se colocando de pé, conforme apontava um condenatório dedo em riste para o tio. Sua respiração chegava a ser irregular pelo esforço tremendo de conter sua fúria reprimida. Seu olhar impiedoso se mostrava mais feroz e intimidador do que nunca.
Heimewdall sentiu-se estremecer por dentro. Ele tentou manter a compostura, mas era nítida a preocupação em seus olhos enquanto ele percebia que a imagem que mantinha nos últimos dez anos perante o sobrinho estava começando a desmoronar.
— Eu posso lhe garantir que apenas agi no melhor interesse dessa família e do reino, sobrinho…
Vendo que Heimewdall continuava tentando se justificar, a raiva borbulhante em Kinmyuu apenas ardeu mais intensamente.
— E desde quando discriminação, violência e abuso de poder são dos interesses desse reino?! Você não apenas foi contra nossos os valores, como contra as LEIS que o meu pai e o seu determinaram em complemento àquelas estabelecidas por nossos antecessores, após todo o genocídio e caos causados pelo Arcanjo da Morte! E você ainda tem a audácia de achar que pode se justificar por agir praticamente igual a ele?! Eu não vou tolerar isso!
A ira de Kinmyuu se tornava a cada segundo mais palpável. E por mais que quisesse demonstrar a convicção de sua postura irredutível, pela primeira vez, Heimewdall se sentiu acuado, tentando buscar uma saída que mostrasse ao sobrinho que estava certo no modo como agiu com Mewhicann.
— Kinmyuu, se você soubesse o que aquele Mewhicann realmente é, você não estaria…
— Cale-se! — O Rei Supremo não permitiu que seu malévolo tio tentasse manipular a situação a seu favor. — Eu sei tudo o que preciso a respeito do Magistrado Mewhicann, então não ouse nem tentar me manipular com mentiras conspiracionistas baseadas no seu racismo declarado. Não estamos aqui para falar dele, que aliás, foi o meu convidado de honra a esse palácio e agora é meu aliado na busca ao Grimório de Mizantri, e sim de você! O modo como agiu com ele, e todo o ódio irracional demonstrado através do seu preconceito descabido apenas me abriram os olhos para quem VOCÊ realmente é, Heimewdall!
Pego de surpresa e um tanto intimidado pelas palavras atiradas pelo sobrinho, Heimewdall paralisou, se vendo momentaneamente atordoado diante das acusações contundentes de Kin. Com olhos arregalados e uma sobrancelha erguida em incredulidade, ele tentava desesperadamente encontrar palavras para se defender.
— O… o que quer dizer com isso?! — Ele indagou, sendo essa a única frase que conseguiu formar no momento.
Apesar do turbilhão de emoções que o consumia, com toda altivez digna de sua posição como um rei semideus supremo, Kinmyuu apenas retornou ao seu assento, fitando Heimewdall com uma determinação feroz sob seu olhar gélido e condenatório.
— Sei que o que houve com o Magistrado Mewhicann não foi um incidente isolado. Eu me lembrei, Heimewdall. Me lembrei que você, com seu preconceito extremo e irremediável, sempre foi um supremacista incorrigível. Eu não posso e não vou admitir alguém com um caráter tão pútrido atuando em minha corte, e muito menos governando ao meu lado!
Heimewdall não precisou usar de seus dons de clarividência para presumir onde Kinmyuu queria chegar. Aturdido por suas palavras, não houve mais nenhuma falsa postura de autoconfiança que o salvasse, pois seu rosto estático não escondia mais a verdade: se Kinmyuu tinha realmente se lembrado, ele não podia mais negar que sua máscara foi finalmente arrancada perante o sobrinho.
Uma enxurrada de questionamentos inundou sua mente, sobre do que exatamente Kinmyuu poderia ter se lembrado. Estava certo de que não poderia se lembrar de tudo, pois se assim fosse, falar em defesa de Mewhicann não seria sua prioridade.
“Se Kinmyuu tivesse se lembrado daquele demônio e do que fiz com Odimyuus, ele entraria em colapso como no passado e já teria tentado me matar outra vez…”
Chegando a esse raciocínio rápido, Heimewdall tentou usar de sua conclusão numa última tentativa ardilosa de salvar sua pele, e tentar preservar a imagem de si que vinha fazendo Kinmyuu acreditar nos últimos dez anos.
Ele sorriu de modo malicioso.
— Então, você teve um lapso de memória repentino? Que ótimo, sobrinho, fico muito feliz por isso. Afinal, imagino que não ter ideia do que se passou em sua própria vida dos seis aos dezessete anos deve ser no mínimo, frustrante, pra não dizer perturbador. Quer dizer, foram os marcantes anos da formação de sua personalidade e você não se lembrar de absolutamente nada… Que tormento mais injusto logo para um semideus, não?
O tio o encarou com um olhar serpentino, sua face transformada num semblante vil, dessa vez não mais fazendo questão de disfarçar sua manipulação como preocupação legítima e altruísta. Estava disposto a usar a insegurança de Kin com sua maior vulnerabilidade para desestabilizá-lo e virar o jogo ao seu favor.
Ele continuou:
— No entanto, todos sabemos que infelizmente, sua condição anômala é irreversível, e mesmo que surjam fragmentos de memória, eles são apenas isso, fragmentos. Não pode confiar neles como a absoluta verdade. Está passando por muita tensão e estresse com a situação do Grimório, e seus ânimos estão alterados, o que é totalmente compreensível devido ao fato de você… não reagir muito bem sob pressão… Sua mente sobrecarregada está tentando preencher as lacunas que te faltam e deve ser por isso que criou essa ilusão. Mas eu estou do seu lado, meu querido sobrinho, assim como estive durante a conturbada época do nascimento de seu príncipe herdeiro, e como sempre estarei. Não vamos deixar que os truques da sua mente perturbada estraguem o forte laço que temos, Kinmy…
Havia um brilho malicioso no olhar de Heimewdall, deixando escapar um reflexo da parte de sua personalidade que se deleitava em ser um manipulador cruel, se aproveitando dos pontos mais vulneráveis e dolorosos daqueles que queria atingir, fazendo com que desmoronassem internamente.
Kinmyuu realmente sentiu vacilar por um momento, contudo, imediatamente se lembrou do exato sentimento que o citado lampejo de memória lhe trouxe. Toda a determinação e coragem impulsionada por sua indignação e raiva pelas atitudes de seu tio. Aquela chama se acendeu novamente queimando qualquer insegurança que as venenosas palavras de Heimewdall tentaram lhe causar. De forma alguma o Rei Supremo se deixaria levar pela tentativa do tio de desacreditá-lo.
Com a expressão austera e uma postura que chegava a ser assustadora de tão inabalável, Kinmyuu apenas se inclinou apoiando os braços sobre sua mesa e chegou com seu rosto a milímetros do de seu tio, o encarando com a severidade avassaladora de um deus punidor.
— Boa tentativa, meu caro “tio” — Kin disse friamente com um tom de voz desdenhoso — Mas não irá funcionar dessa vez. Minha mente nunca esteve tão lúcida quanto agora. A sua investida para me desacreditar e me abater nada revelou além da sua própria insegurança, e que aliás, eu considerei um desacato, no modo mais baixo e desesperado o possível. Continue com essa atitude e o único laço que haverá aqui será aquele em volta do seu pescoço.
As palavras imponentes e confiantes do Rei Supremo ecoaram no salão como uma ameaça sussurrante, tornando impossível que Heimewdall escondesse o temor que brotou de seu âmago ao ouvi-las. À parte da raiva adolescente externada no passado, Heimewdall jamais vira o verdadeiro lado sombrio de Kin, e o quanto não hesitaria em impor sua autoridade com mão de ferro se assim fosse preciso. Aquilo não foi uma ameaça pessoal durante um surto de fúria como quando tinha 17 anos; foi uma declaração. Seu sobrinho não era mais um adolescente descontrolado em sua revolta e luto. Era o Rei Supremo de todo um mundo agora, um rei que poderia condená-lo à morte com um simples estalar de dedos por ser desacatado, e ninguém seria ousado ou insano o bastante para questioná-lo.
Heimedall percebeu que não poderia mais manipular Kinmyuu como vinha fazendo na última década. Seu método caíra por terra, e com o cerco se fechando sobre ele, só lhe restou pânico enquanto tentava buscar uma saída que o livrasse de enfrentar as consequências de suas ações. Mas a esse ponto, ele sabia que não havia mais nenhuma.
Com um olhar temeroso, sentindo a garganta seca e a respiração arfante, ele recuou alguns passos tentando se afastar de Kin como uma presa frágil acuada por um caçador.
— Ora, m-mas… o que é isso, sobrinho? N-não seria capaz de… de mandar executar seu próprio tio, não? Você não faria isso!
Heimewdall exclamou, sua voz trêmula por frustração, medo e raiva, claramente estampadas em seu rosto vermelho de indignação e pelas mãos tensas cerradas em punhos apertados ao lado do corpo.
— Você não tem ideia do que eu sou capaz... — Afirmou o rei semideus, seus olhos emitindo um brilho que quase poderia ser considerado malévolo, sob um semblante frígido de olhar perfurante — O que me leva a declarar a decisão que tomei desde o momento em que soube do que fez ao Magistrado Mewhicann.
Kinmyuu então se levantou de seu assento. A postura impávida carregando toda a majestade que lhe cabia. Sua voz, ao invés de rugir como um trovão, soou firme e controlada, tornando aquele momento ainda mais intimidador.
— Heimewdall, devido aos seus atos de violência incitando preconceito e ódio através de palavras e ações em ameaça a vida de um de meus súditos inocentes, cheguei a uma decisão que é minha obrigação como o Rei Supremo em função do bem-estar desse e de todos os reinos, e daqueles que neles habitam independente de sua raça, biotipo ou origem. Em nome da minha autoridade, estou destituindo-o de todas as suas funções na corte e suspendendo-o permanentemente de qualquer atividade política e governamental que represente qualquer um dos reinos do Mundo Puro. Isso inclui todas as suas anteriores responsabilidades como vice-rei e qualquer outra função que você exerça em nome da coroa, o que é claro, também revoga qualquer privilégio e autoridade atrelados a posição de seu antigo cargo.
A declaração de Kinmyuu deixou o tio em silêncio por um momento, sua expressão oscilando entre indignação e choque, para não mencionar o pânico, enquanto ele tentava processar o que acabara de ouvir. Aquilo não podia estar acontecendo, não outra vez.
— E-espere… v-você está… ME DEMITINDO?!
Kinmyuu apenas se sentou outra vez e elegantemente entrelaçou novamente as mãos na altura do queixo, enquanto fitava o rosto resignado de seu tio com uma expressão autoritária contendo nada além de apatia.
— Qual parte de “destituído permanentemente” você não entendeu? Sua intolerância absurda e sua postura odiosa degradante são inaceitáveis, Heimewdall. Não há lugar para tipos como você em minha corte, e eu JAMAIS vou permitir que atos criminosos como esse saiam impunes. Que seu exemplo sirva como um lembrete para todos de que a discriminação e o preconceito não serão tolerados sob o meu governo.
Concluiu Kinmyuu, sua voz ecoando rígida e inquestionável.
E foi nesse momento que todo o suposto autocontrole e posição arrogante de Heimewdall em seu egocentrismo, desabaram como um frágil castelo de areia, diante dos olhos impiedosos do sobrinho.
— Não pode fazer isso! Você precisa de mim! Não sabe o que está fazendo, Kinmyuu! Eu estava tentando proteger esse reino, essa família! Proteger a SUA MÃE daquele reverso imundo, e é assim que me retribui?! Vai preferir ficar do lado daquele maldito de sangue demoníaco em vez de a mim, sangue do seu próprio sangue?! Não pode fazer isso comigo!
O ex vice-rei exclamava em um surto quase psicótico, revivendo o amargo momento de uma das maiores revoltas de sua vida: quando seu falecido irmão mais velho e pai de Kinmyuu, tomou exatamente a mesma atitude em razão de seus tratos discriminatórios para com seu filho adotivo reverso. Na época, Odimyuus não só depôs Heimewdall de seu cargo como também o expulsou do palácio.
— Não só posso como já fiz! E uma vez que dou minha palavra como Rei Supremo, não existe NADA que me faça voltar atrás! Minha decisão está tomada, e se ainda lhe resta algum pingo de dignidade, sugiro que a aceite calado e de uma vez por todas! Guardas!
Kinmyuu bradou, chamando a guarda real que escoltou Heimewdall e ainda aguardava do lado de fora, ao lado das grandes portas entalhadas em dourado, antes que Heimewdall seguisse com seu ataque descontrolado. Kin chegara ao seu limite e estava farto de ter que lidar com ele, além de não haver mais nada a ser discutido.
— Conduzam Heimewdall para uma das celas da Doutrina Dourada e garantam que ele permaneça lá até segunda ordem. Um tempo encarcerado fará com que ele enxergue o peso de suas ações e aprenda a respeitar minha autoridade e as leis imutáveis que imperam nesse reino.
Kin acrescentou, sua voz permanecendo calma e controlada apesar das circunstâncias, o que apenas servia para torná-lo ainda mais intimidador.
Tornando a situação ainda mais vergonhosa para si mesmo, Heimewdall tentou resistir aos guardas, enquanto a expressão surtada em seu rosto se tornou ainda mais sombria à medida que ouviu as palavras de Kinmyuu. Entretanto, seus protestos ridículos foram tão inúteis quanto sua tentativa de resistência física. Os guardas treinados do palácio facilmente o retiveram, e quando deu por si, Heimewdall estava com uma coleira de retenção de poderes em seu pescoço e um par de algemas em suas mãos.
Não havia mais nada que Heimewdall pudesse fazer para reverter a decisão do Rei Supremo. Aquele era o princípio de sua queda inevitável, e agora, perdendo as graças do sobrinho que não mais poderia ser enganado por ele, só restava ao ardiloso ex vice-rei se preparar para o pior.
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