I
Acidente
— Droga! — xingou o artista plástico Alberto após sentir que seu carro não andaria um metro a mais.
O veículo quebrou numa estrada deserta. O homem de trinta anos estava indo visitar seus pais na pequena cidade de Maria Hercília do Norte, a 20 km dali, passou por uma placa com essa informação há poucos metros. Pegou o celular e viu que estava sem sinal.
Andar 10 km a pé, para voltar à conveniência de um posto, estava fora de cogitação. O homem olhou em volta e não viu nada, nem sinal de vida por ali.
Depois de tentar, em vão, mexer no carro, ele desistiu. Pegou um trapo na caixa de ferramentas e limpou as mãos. Verificou o celular novamente e estava sem bateria.
— Que legal! Quebrado no meio do nada, sem celular. — disse em tom aborrecido, abriu a porta do carro e pegou sua mochila.
Pediria carona e chegaria à cidade dos pais. Lá conseguiria ajuda para buscar o carro. Colocou a mochila nas costas, um boné na cabeça e começou a andar.
O sol estava posicionado no meio do céu, naquele momento. Um calor imenso que se aproximava dos quarenta graus fazia companhia a Alberto, que ouviu barulho de carro e olhou para trás, viu um caminhão se aproximando. Fechou a mão com o polegar levantado e acenou pedindo carona.
O caminhoneiro não só fingiu que não o viu como passou muito perto dele, que para não ser atropelado, se jogou por cima de uns arbustos, caindo numa ribanceira íngreme de alguns metros de altura. Bateu a cabeça em pedras e galhos, que também rasgaram sua pele avermelhada pelo sol.
Alberto caiu já inconsciente no meio da mata fechada. Foi visto por alguns bichos da região, que o observaram e saíram de perto. Um pequeno macaco de pelagem esverdeada se aproximou dele, tocou em seu rosto e emitiu um grito agudo, fazendo os pássaros das árvores voarem ao mesmo tempo, assustados.
Poucos minutos depois apareceu Alina, uma bruxa com aparência idosa, rosto enrugado e cabelos grisalhos sob um capuz escuro, volitando sobre os pequenos arbustos contornando as árvores enquanto segurava uma bengala. Usava uma pesada e tenebrosa roupa. Apesar de sua aparência, Alina se mantinha ereta.
Apenas olhando para Alberto ela conseguiu erguê-lo do chão e o levou dali. Andou por uns minutos, acompanhada do macaco, que levava a mochila do acidentado; entraram na fenda de uma grande árvore. Andaram por uns segundos em meio a uma intensa escuridão e chegaram a um universo repleto de criaturas. Havia pequenos homens trabalhando na construção de um prédio de alguns centímetros. Crianças voavam, brincando com alguns duendes. Rios de várias direções faziam seu curso pelos caminhos por onde passavam. Uma imensa lua cheia expondo suas crateras adornava o céu azul e sem nuvem daquele dia ensolarado.
Alberto abriu os olhos e se viu flutuando, viu o macaco andando ao seu lado carregando sua mochila. A mulher andava a sua frente. Entraram numa caverna com paredes cobertas por uma cortina de pedras reluzentes. Alberto ouvia o som de gotas de água ecoando por ali.
Alina colocou o homem sobre uma cama de pedra e se virou, tirando o capuz e revelando seu belo e jovem rosto. Seu cabelo estava sedoso e ostentava uma cor negra intensa.
Alberto ficou deslumbrado com aquela mulher a sua frente, foi tirado de seu transe quando sua mochila foi colocada sobre uma bancada por uma mulher alta, de pele branca, olhos e cabelos verdes. Ele abriu a boca para falar algo e olhou em volta, procurando o animal que andava ao seu lado, mas não viu nada.
— Onde estou? Quem são vocês? — perguntou tentando se levantar e sentiu fortes dores nas pernas, abdome e cabeça.
O homem fez uma careta, na intenção de aliviar aquelas dores terríveis. Alina se aproximou de seu corpo e estendeu as duas mãos curando os machucados internos dele, que gritou sentindo seus ossos danificados sendo postos no lugar e feridas sendo fechadas.
— Kelvia! — Alina chamou e a mulher de cabelos verdes se aproximou.
Kelvia tocou na testa de Alberto com o polegar e o fez dormir. Alina meneou a cabeça e fitou os olhos da mulher a sua frente. Sorriu e disse:
— Parece ser artista, artistas costumam ter muitas virtudes. É seu, você o encontrou.
— Obrigada, majestade. Mas acho que devo recusar. Ainda não sou capaz de...
— Capacite-se, Kelvia! Nunca demonstre fraqueza para você mesma, pois a autossabotagem é uma das piores falhas. O inimigo que vive dentro de você é cruel, conhece seus medos e os usa nas horas certas para desestabilizá-la e impedi-la de evoluir. — disse e foi lavar as mãos numa pequena cascata de água que caía sobre uma pia de pedras empilhadas.
Kelvia pegou um lençol de folhas brancas e colocou por cima de Alberto, que dormia profundamente.
Alina saiu do cômodo onde deixou o homem e entrou em outro, uma espécie de cozinha, ainda dentro daquela caverna. Kelvia serviu um copo com um líquido viscoso à rainha, que tomou todo o conteúdo do recipiente e fechou os olhos. Uma onda de energia azul tomou conta de seu corpo começando pelo pé até chegar ao topo da cabeça. A mulher respirou fundo e sorriu.
— Obrigada! — agradeceu.
Alina sentia-se fraca sempre que curava alguém e Alberto morreria em poucos minutos naquela mata, então a rainha devolveu a vida àquele homem.
— Acha mesmo que devo tirar suas virtudes? Você não acha melhor apenas pegar seus anos de existência e se livrar desse humano de uma vez?
— Ele teria segundos de vidas, Kelvia! Não vale a pena. Você está começando a vida agora, ele é ótimo para sua iniciação.
— Tenho trauma de humanos, você sabe... — disse e olhou para o chão.
— Mais um motivo para você tirar suas virtudes. Você não é mais aquela menininha assustada. Já pode tomar a forma que quiser, já pode voar. E pode, sim, sugar o que esse humano tem de melhor. Jamais se esqueça: seja gentil e mantenha o seu foco. Jamais deixe o seu ego passar por cima do que quer. Eles são bem desprovidos de inteligência e podem confundir os seus desejos para com eles, mas siga em frente e faça sua iniciação. Ele não tem uma arma, não vai machucá-la.
Quando criança, quase dois séculos atrás, Kelvia foi vítima de Albano, um humano que caçava naquela região. Levou um tiro e foi capturada por ele, que almejando fama e dinheiro, prendeu a garotinha mística de orelhas pontudas e pele macia coberta por uma leve pelagem, em sua cabana.
O humano conseguiu entrar na mata na hora da transição solar, quando o sol ficava no meio do céu.
Alina deixou o reino e foi procurar a garota, que enviava sinais de sua localização toda vez que o homem se aproximava dela.
Albano cuidava dos ferimentos daquela criatura com artifícios que usava para cuidar dos humanos. E aquele contato com a humanidade atrasou o desenvolvimento de Kelvia.
O homem se assustou quando a menina começou a flutuar e seu ferimento jorrou uma gosma esverdeada. Ele tentou sair de sua cabana, mas ao abrir a porta viu vários animais e dentre eles Alina e seu olhar profundo e julgador.
Tremendo de medo, Albano se afastou, escorregou caindo no chão e deu passagem para Alina, que entrou, viu a garota suspensa sobre a cama do homem. Curou Kelvia e imobilizou Albano em uma parede.
— Qual é a tua virtude?
O homem estava mudo, mas ela conseguiu ler seus pensamentos confusos enquanto se preparava para sugar as virtudes daquele assassino de animais.
Albano sentiu seu corpo enfraquecer enquanto aquela mulher sugava, com os olhos, todas as suas forças. Sentindo-se revigorada, Alina liberou o corpo quase sem vida daquele humano, que caiu no chão.
Kelvia se aproximou dela e saíram da cabana. Desde então ela nunca mais deixou a floresta encantada em sua verdadeira forma.
Depois de alguns anos, Kelvia aprendeu a dominar suas habilidades metamórfas e passou a sair da floresta apenas em formas de alguns animais. A jovem ainda era insegura e sempre deixava alguma característica sua no ser usado como forma de proteção.
Alina herdou aquele reino, depois que Getra, sua mãe, foi morta por um semideus. Ela passou a cuidar de todos os seres que viviam ali.
Três dias depois, Kelvia observava Alberto dormir. Assustou-se e se transformou numa gata verde pulando em cima de uma estante de poções, quando ele abriu os olhos e a olhou.
— Que... — gaguejou de cenho franzido. — Socorro! — gritou e se sentou naquela confortável cama de pedra, o que o deixou intrigado, pois tocou na cama e era pedra de verdade, mas era confortável como um colchão de cama convencional.
Kelvia desceu devagar e disse:
— Acalme-se! Pare de gritar.
— Onde estou? Quem está dizendo isso?
— Você está no Reino das Virtudes. — explicou se aproximando da cama e num salto pulou ali.
Ao sentir uma vontade imensa de lavar a mão, ela levou a pata verde à boca e passou a língua. Arregalou os olhos para o homem que estava assustado, ofegando e olhando fixamente para ela, e se deu conta de que ainda estava sob a forma do felino. Kelvia pulou no chão e assumiu sua verdadeira fisionomia.
— O que é você? Um demônio? — Alberto indagou ofegando e suando de medo.
— Sou uma bruxa em ascensão. — disse sorrindo, se lembrando das palavras de Alina: seja gentil!
Ao ver aquele belo sorriso, Alberto respirou aliviado e sentiu seu medo se esvair como fumaça.
— Achei que bruxas não existissem.
— É bem melhor que pense assim mesmo. Por isso ainda estamos vivas.
— Por que me trouxe para cá? Só me lembro do meu carro quebrando no meio do nada.
— Você sofreu um grave acidente e caiu aqui perto. Eu o achei, e a minha rainha cuidou de você.
— Mas me sinto ótimo. Que acidente foi esse?
— Alina, a rainha, curou você. — Num gesto com a mão direita, abriu uma janela e mostrou as imagens do acidente.
Alberto se viu caindo por cima daquelas pedras e galhos, ficando inconsciente e muito machucado, naquela floresta. Piscou várias vezes quando se lembrou do caminhão.
— Quem sobrevive a essa queda? O que vocês fizeram comigo?
Kelvia chegou bem perto dele e fitou seus olhos:
— Acalme-se.
O homem fechou os olhos e os abriu sentindo uma imensa paz ao ver aqueles olhos verdes intensos. Seu desespero sumiu logo que a bruxa ordenou.
A gentileza e sinceridade de Kelvia fizeram Alberto confiar e abrir sua vida, seus sonhos e 'virtudes' para a bela jovem.
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