vinte e cinco.
Eu estou na fronteira entre a vigilância e o descanso, em um estado de consciência enigmático e fascinante, caracterizado por visões oníricas e ocorrências sensoriais estranhas. Os médicos costumam chamar isso de hipnagogia. É o que acontece entre os dois estados básicos da consciência: estar dormindo ou estar acordado.
E eu domino a arte de estar no meio deles desde que nasci.
Não consigo explicar muito bem, mas acho que o meu corpo usa isso como uma defesa. Não estou completamente apagada, mas ainda posso sonhar. Minha mente fica fluida e hiper associativa. É como se todas as camadas da minha memória se expressassem através de sensações pelo meu corpo.
Bem naquele momento, sinto que estou de volta ao balanço no precipício com Seth Rowan. Estamos novamente voando. O limbo entre meus dois estados de consciência faz o meu estômago dobrar, urgindo gelado e me obrigando a respirar de forma entrecortada.
De certa maneira, minha hipnagogia é o melhor que posso ter dos dois mundos. Tenho fluxos de ideias cerebrais revivendo memórias, pensamentos e sensações, mas estou acordada o suficiente para sentir o que está acontecendo. E é acalentador estar voando sobre o cânion de novo. Posso rever os cabelos castanhos de Seth viajando diante dos meus olhos. Seu sorriso de queixo esticado por causa da adrenalina.
Minha mente cambaleia em uma única direção e acordo repentinamente sem sobressalto algum. Geralmente eu tendo a dormir após entrar naquele estado. Mas não deitada em um dos quartos de hóspedes dos Rowan. Estou tão acordada que revejo tudo o que aconteceu nas últimas horas como um flash. É isso que faz com que eu gire no colchão macio e me sente.
A janela, parcialmente vestida com uma camada fina de cortina aveludada, deixa a luz de um farol escapar. É a única coisa além da enorme cama macia que consigo distinguir. O som de um carro corta o silêncio e desaparece logo em seguida. É estranho que haja movimento em Seven Heavens no meio da madrugada.
Uma pontada de dor pinica minha nuca quando imagino que possa ser a viatura do meu pai. Nunca devia ter fugido daquele jeito. Sinto que a coisa mais estúpida que fiz foi me enfiar ali, na casa de James Rowan.
Quando abandono o quarto escuro, um fogo de curiosidade me percorre. A casa não está tão iluminada quanto antes enquanto percorro o segundo andar. Aquela casa tem o corredor mais longo da cidade. Eu tinha medo dele quando era criança. E, a julgar pelo modo como os pelos dos meus braços se levantam, ainda tenho.
O silêncio pungente faz com que eu me sinta afogada em lembranças. Há muitos anos, brinquei de esconde-esconde por várias vezes aqui. Pet Rowan penteava meus cabelos no último quarto, o maior deles. E Seth e Carson sempre estavam dentro de armários nos outros cinco quartos que se estendem pela construção, esperando avidamente pelo momento em que poderiam me matar de susto.
Eu me abraço, dando as costas ao corredor e buscando as escadas. Não ouço a família Rowan em lugar nenhum. Me pergunto se eles estão dormindo, mas chego a conclusão que não. Há luzes acesas na garagem e em uma porta fechada no primeiro andar. Depois de contar tudo para Seth e Carson, James se trancou ali com os filhos e eu me escondi no primeiro lugar vazio e aberto que encontrei no segundo andar.
Desço as escadas sentindo meus ossos rangerem de cansaço enquanto analiso o salão de catedral, tão alto quanto o de uma igreja. Apesar da pouca luminosidade, consigo enxergar o enorme relógio cuco na parede menos decorada da sala marcando duas da manhã. Confiro o meu relógio de pulso mais como uma mania idiota. Olhar para meus próprios ponteiros me traz a falsa segurança de que o que estou vivendo é real.
A casa dos Rowan possui janelas amplas e elevadas. É através da luz que vem do lado externo que meus olhos detêm os móveis típicos de uma revista de decoração, o lustre de chifre de cervo bem no centro, a mesinha rústica e substancial.
Decido que eu gosto imediatamente de uma prateleira próxima à janela cheia de livros e porta-retratos. Me aproximo dela, analisando a escada acoplada. É tentador pensar em subir ali e dar uma olhada nos exemplares de capa dura. Mas uma foto de Pet Rowan me faz recuar. O sorriso dela afunda minha garganta porque me lembro imediatamente que ela dormiu com o meu pai.
Desisto da sala de estar, da sala de jogos com a mesa de bilhar e da lareira. Esfregando os olhos, alcanço a cozinha. Não há ninguém por perto, a não ser as omeletes intocadas.
Ainda cheira como se estivessem frescas. Avanço até o fogão, mas antes de tocá-las, pego meu reflexo bagunçado na janela. Metade do meu rosto parece inchado, embora eu já esteja conseguindo abrir o olho completamente. Minha franja está revirada acima da minha testa e estou totalmente pálida e macilenta.
É essa figura cadavérica que me motiva a comer com as mãos, como uma gatuna.
Dou de ombros para a falta de talheres e de etiqueta. Tanto faz, naquele momento. As omeletes estão tão gostosas que não me importo com o que pareço, chego até a gemer com o sabor. Preciso continuar comendo. Estico o braço para alcançar uma pancetta frita, mas a luz se acende antes que ela chegue até os meus lábios.
― Roubando comida, Lady Wilder? ― Carson cruza os braços, se escorando no batente com um sorriso perturbado. ― Tudo bem, eu não vou chamar a polícia.
Polícia sai de seus lábios em forma de sussurro. Porque polícia significa o meu pai. Dou as costas para Carson e continuo minha corrida. Devoro o que posso, ouvindo o tilintar de garrafas e copos sendo colocados na ilha da cozinha. Pareço um animal, limpando os dedos na roupa e ignorando o mundo.
― Seth deveria estar aqui para ver o efeito da comida dele nas pessoas.
Quero dizer à Carson que só estou agindo feito um lobo faminto porque não como desde o almoço no Juicey Lucy's. Mas eu estaria mentindo. Ele tem razão sobre a comida de Seth. É requintada e ao mesmo tempo tem gosto de casa. Nunca comi uma omelete tão boa quanto aquela.
― O Seth meio que aprendeu a nos alimentar quando chegamos em Londres. Era uma merda. Toda cozinheira que o meu pai contratava nunca era boa o suficiente. E olha que tivemos uma variedade de cozinheiras de todos os países. Imigrantes, você sabe. O Seth aprendeu um monte de coisa. E adaptou a comida para que nos lembrássemos de casa. Esse é o meu irmão.
Quando me viro para Carson, ainda estou com a boca cheia de carne, ovos e especiarias. Ele está bravo, posso ver pelo modo como ele range os dentes. Pensar que Seth, o seu irmão mais velho, pode não ser, de fato, seu irmão, faz com que ele esteja segurando um colapso interno através de um falso sorriso.
Ele ergue os olhos azuis claros na minha direção e ergue a taça.
― Você parece o agente Marcos vestido de Tiffany Wilson quando sai com o Latrel para jantar.
Abro a boca para ele, inclinando a cabeça de lado e mostrando toda a comida que tenho ali. Carson chega a gargalhar antes de tomar a dose de álcool que está em seu copo. Chega a parecer infantil.
― Senta aí, Liv. ― Ele aponta o copo na minha direção novamente. ― O que quer beber?
― Água.
Soco minha clavícula, engolindo o que ainda estava no meio dos meus dentes. Mas Carson pega outro copo de vidro igual ao seu e enche, deslizando-o na minha direção.
― Água francesa.
― Hmmm, passo. ― Empurro o copo de volta. ― Não vou melhorar as coisas ficando chapada. Estou bem assim.
― Mesmo? ― Ele toma outro gole. ― Pelo menos um de nós está se sentindo bem chafurdado nessa lama toda.
Pego o copo de volta e viro de uma vez porque não estou bem. Queima da minha garganta até atingir o meu estômago enfastiado. Quando limpo os lábios ao bater com o copo no mármore, eles estão pinicando.
Carson enche meu copo novamente, mas James Rowan entra na cozinha. Eu odeio me sentir como alguém que acaba de ser pega no flagra. Mas ele não olha para mim como papai olharia, pronto para me recriminar. James apenas desaba no banco ao lado de Carson e segura a cabeça com as duas mãos.
― Liguei para Jolene Dixie, Liv. Sua amiga intercambista e sua mãe estão com os Dayrell. Seu pai se acalmou, segundo ela. Acho que as coisas estarão melhores de manhã. ― Ele finalmente abre os olhos azuis e afasta os dedos do rosto, me encarando. ― Você devia mandar uma mensagem a eles, ou algo assim.
Analiso o rosto de James Rowan, tentando encontrar alguma semelhança entre nós. Seu rosto é retangular e o seu queixo é taciturno como o de Carson. Suas bochechas são fundas como se eu pudesse ver sua caveira por baixo da pele. É tão diferente do meu rosto quadrado e cheio. Mas é diferente de Seth, também.
― Eu perdi o meu celular. ― Digo, antes que fique constrangedor o suficiente.
James Rowan geme e se levanta novamente. Eu acompanho suas costas até que desapareçam.
― Provavelmente ele foi pegar um celular para você. Temos essas coisas sobrando por causa da empresa de tecnologia e comunicações que o meu pai gerencia. ― Carson me explica entre um gole e outro. ― Viu como ele lida? Como se fosse o nosso amigão. Esse é James Rowan, Liv. O amigão dos garotos. Não espere que ele saiba como ser pai, certo?
Isso explica muito sobre as bebidas, o cigarro e todo o tipo de porcaria que os Rowan fazem. Abaixo os olhos, me perguntando se o sangue de James corre em mim e o que farei caso isso seja verdade. Ouço novamente o ronco do motor de um carro e meu coração cai.
― Ah, isso é Seth. Ele vai dar no pé. ― Carson bate com o copo contra o balcão com tanta força que acho que o vidro trinca. ― Que droga, Wilder. Ele é meu irmão, entende? Não tem como isso mudar, cara! E ele está vazando. Porque não aguenta essa merda. E, porra, ele te beijou, não foi? Como acha que ele está se sentindo? Isso tudo é um lixo.
https://youtu.be/WcKSPyhrGWc
(Falling – Harry Styles)
Minhas mãos geladas ficam úmidas quando abandono Carson na cozinha e saio procurando pela garagem. Com a respiração suspensa, meus olhos encontram Seth jogando uma mochila no banco de trás do jipe. Solto o ar dos pulmões quando ele fecha a porta e olha para mim.
Por um segundo que dura uma eternidade, não sei o que fazer. Quero correr até ele e dizer que vai ficar tudo bem, mas sinto que o precipício pelo qual voamos agora é uma metáfora do que há entre nós. Um buraco infinito e perigoso, derramando silêncio.
― Não é muita pretensão tentar chegar em Londres com esse carro? ― Estou tentando parecer casual.
― O que você sugere? ― Ele escorrega as mãos para os bolsos do jeans, inclinando os ombros para frente. ― Sua picape, talvez?
― Sugiro que você fique.
Eu tomo a iniciativa de me aproximar dele. Tenho a sensação de que Seth vai dar a volta no carro e começar um jogo de gato e rato. Mas ele permanece no lugar, os olhos brilhantes circundando os meus.
― Não vai embora, Seth. Por favor. Eu não saberia ser uma Rowan e você não precisa ser um Wilder. Podemos continuar tudo como está. E fazer um teste de DNA só para ter certeza. Ou nem fazer, se isso significar um estrago muito grande. Podemos continuar de onde começamos. Nos odiando.
Ergo as sobrancelhas em sugestão, mas Seth desiste do contato visual por alguns segundos.
― Nos odiando, Olivia?
Sua mão escapa do bolso e corre até o topo da minha cabeça. Seus dedos formam ganchos ao redor do meu cabelo e a lembrança de quando éramos crianças me atinge. Estico o braço e seguro os cabelos dele, bem na frente. Quando forçamos nossos pulsos e empurramos a cabeça um do outro de um lado para o outro, o sentimento de familiaridade me faz sorrir e eu quase arranco um sorriso dele.
Era assim que brigávamos. Puxando o cabelo um do outro e balançando a nossas cabeças. A parte mais esquisita é que nunca machucava. Não como machuca na perspectiva atual em que nos encontramos.
― Não podemos continuar de onde começamos. ― Ainda estamos nos segurando pelos cabelos, mas imóveis. ― O que aconteceu hoje... Tudo o que aconteceu hoje... As perspectivas mudaram. E caso você não saiba...
Seth aperta os lábios, refreando as palavras. Seus olhos parecem estar tremendo, como chamas crepitando em uma fogueira violenta. Balanço a cabeça dele de novo, puxando seus cabelos. Ele sorri, esvaziando um pouco a tensão.
― Eu sei no que está pensando. Sobre o beijo. ― Ele não diz que estou errada, o que significa que, pela primeira vez, acertei o que Seth tem escondido através do modo como olha para mim. ― Mas a Princesa Leia Organa beijou Luke Skywalker em O Império Contra-ataca sem saber que ele era o seu irmão. E ficou tudo bem depois. A força vai estar ao nosso favor.
Seth balança minha cabeça de novo antes que sua mão deslize pelos meus cabelos até seu braço estar totalmente ao redor do meu pescoço. Meu corpo bate contra o dele quando meus braços cedem e nos abraçamos. É rápido, mas suficiente para fazer o meu coração encolerizar-se.
― Eu vou pegar a minha nave, então, e dar uma volta no hiperespaço. ― Ele se afasta. ― E é melhor eu ir antes que você tente adivinhar o que está na minha mente.
Ele se afasta sem voltar a olhar o meu rosto, indo direto para o carro. Não consigo me virar porque não quero que ele me veja chorando. Não sei em que ponto chegamos até ali. De duas pessoas que não se suportavam a possíveis irmãos. O que eu sei é que por mais incrível que pareça, eu gosto de Seth. Ainda não sei de que jeito. É o que mais me preocupa.
― Seth. ― A voz colérica de Carson retumba atrás de mim. ― Precisa deixar o material para o DNA.
― Olivia?
Abro a minha mão, reconhecendo alguns fios de cabelo escuro entre meus dedos. Seco meus olhos com o antebraço e me viro, estendendo a mão para Carson. Ele me oferece um saco plástico e no meio tempo em que estamos armazenando fios de cabelo de Seth, ele entra no carro e dá a partida.
Assim que Carson fecha o saco plástico, seus olhos sobem para os meus e sua expressão se contorce. Não sei dizer se ele está com ódio ou apenas tentando parecer durão.
― É melhor rezar para esse exame dar negativo, Liv Wilder. Nenhum de nós vai saber viver daqui para frente se os papéis se inverterem. Eu preciso de Seth. Não de você.
Quando ele fala disso, sei que é ódio que está emanando. E está prestes a derramá-lo sobre mim.
― Se precisa tanto assim de Seth, faça uma coisa por ele, então. ― Ergo o meu queixo de forma desafiadora. Encarar Carson é como encarar o medo que eu senti de James Rowan no passado. É como encarar o que estou prestes a fazer contra o meu próprio pai também. ― Há câmeras espalhadas na viatura. Se toda Seven Heavens acredita que Seth me bateu, com certeza há um vídeo na delegacia provando que foi o meu pai. Mas ele está nos computadores de lá. E, a menos que você tenha um bom plano sobre entrar no covil de Jonathan Wilder, é a minha palavra que está sustentando a inocência de Seth.
O lábio de Carson repuxa em algo que parece um sorriso. Ele entendeu o que estou dizendo da forma mais cruel. Estou livrando Seth da acusação popular. Mas jogando o meu pai numa situação pior que pode fazê-lo perder o próprio distintivo.
― Não levou muito tempo para você começar a pensar como uma Rowan, afinal.
É tudo o que ele diz antes de se embrenhar pela escuridão intimidadora de Seven Heavens.
Olá meus Wilderzinhos! Finalmente as férias chegaram e podemos conversar. Os últimos capítulos tem sido conturbados. Muitos comentários incrédulos sobre como o pai da Liv pode ser tão odioso! E a pior parte disso é que existem tantos homens quanto ele quanto há estrelas no céu. Essa história é muito importante para mim sobre a questão de abordagem da violência doméstica e do machismo. Eu tenho trabalho muito nisso. E quando vocês odeiam o pai da Liv, gostaria de pedir que se solidarizem com todas as mulheres, mães, filhas, companheiras que, nesse exato momento, estejam sofrendo algo parecido.
Se você já passou por isso ou está passando, saiba que a vida pode melhorar! Estamos aqui de alguma forma, criando uma rede de apoio se você, que está lendo isso, estiver precisando. Seja forte e saiba que não está sozinha!
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