II
A raposa aventureira começou sua jornada antes do sol nascer por entre as montanhas do leste. Atravessou o castelo carregando apenas um cantil de água amarrado no pescoço e memórias sobre a rota que iria fazer. Pegou algumas máscaras-de-odor — pequenas folhagens de oito pontas escondidas em vasos dentro dos jardins da rainha — e espalhou pelos lugares que percorria para camuflar seu cheiro. Seguindo o caminho pela sombra das torres do castelo, Redwic evitou que pessoas curiosas o fizessem perguntas. Virou em alguns corredores estreitos entre um muro e outro e enfiou-se por entre barris de madeira vazios; depois, seguiu através da cerca-viva que separava o castelo do resto de Hagalaz e imergiu na imensidão da relva seca e sem vida. Uma ou duas vezes precisou parar para retirar pequenos carrapichos de sua cauda. Andou por mais alguns quilômetros, parando para descansar somente em pequenos intervalos de tempo. Recuperando o fôlego, viu o sol nascer e iluminar a extensão dos campos destinados à plantação morta de trigo.
Não havia mais volta. Iria encontrar-se com o deus Jadar.
Deveria alcançar o cume da montanha que tapava o azul do céu e dava as boas-vindas para o mar. Jadar estava ali, ele sabia que sim. O deus onipresente sentava-se sobre as nuvens; ansiava pela maior oferta a seu nome, para, assim, livrar os gadoines do castigo de miséria.
Mas era uma longa viagem a se fazer.
Redwic sentiu o vento quente do verão tocar-lhe a face; os pelos balançavam livremente a medida em que caminhava pelo campo aberto. Observava algumas casas de barro conforme se afastava do castelo; gadoines magros e sujos travavam, em vão, uma batalha contra o solo infértil. Não muito distante, Redwic avistou um bando de aves fanesianas gorjeando que se aproximavam, todas tentadas a perguntar-lhe sobre seu destino.
Mas apenas um deles, que exibia orgulhoso o grande bico fino nos ares, interrompeu o canto e pousou nas costas da raposa.
— Redwic, caro amigo! — saudou o pássaro dourado com certo divertimento. — O que faz se afastando dos domínios de Hagalaz? Não me diga que cansou dos gadoines...
— Me afasto porque os amo, Ominus — respondeu Redwic com simplicidade.
— Não entendo. Se os ama, por que os abandona? — A voz de Ominus saíra trêmula devido aos trotes da raposa.
— Que prova maior de amor que essa? — respondeu, singelo. Já começava a arfar, talvez devesse parar um pouco.
Diminuindo a intensidade da corrida, Redwic olhou para Ominus com o canto do olho e revelou caninos brilhantes com um sorriso.
— E então, para onde nós vamos? — perguntou Ominus.
— "Nós"? — gargalhou a raposa. — Não há nós, apenas eu.
— Por que tanta solidão, Redwic? Deixe isso para os lobos! — O pássaro terminou com um canto lúdico.
— Ominus, essa é uma jornada em que nós não poderemos fazer juntos.
— Mesmo depois de tantas aventuras travadas lado a lado, amigo? — Ominus assobiou um canto triste, vendo Redwic balançar a cabeça negativamente. — Voltará para nós? — perguntou o pássaro sem o júbilo de antes.
Redwic não respondeu.
— Cantarei uma cantiga em nome dos velhos tempos, que tal? Cante comigo, você sabe a letra! — Ominus forçou-se a animar o amigo de longa data, mesmo que seu semblante revelasse uma vontade de arrastá-lo de volta ao castelo de Hagalaz. Ominus deu início à canção e logo Redwic o acompanhou:
Vou, vou sempre atrás
Hagalaz, tu me deslumbras!
Se caíres aqui, perecerás
No solo de nossas tumbas!
Quero afundar nos olhos da gadoine
Que me amar se recusou!
Nos campos de Ervek
Ora, nada mais restou!
Vou, vou procurar-te então!
Venha até mim
Quando ouvires a canção!
— Obrigado, Ominus — agradeceu Redwic, enfático.
— Espero vê-lo novamente, Redwic, o vermelho! — Ominus enfiou seu bico sobre os pelos do amigo, como forma de carinho, e voou para junto de seu bando; os olhos cinzentos olhavam para Redwic uma ou duas vezes enquanto suas penas balançavam pelos céus.
Redwic, o vermelho, e também o último de sua raça. Ficara assim conhecido no dia em que o primeiro rei da família Ervek fora coroado. Sua pelagem, de uma cor laranja-vermelho mais resplandecente que a de seus antepassados, era tida como oriunda do fogo das forjas dos grandes ferreiros de Hagalaz. Ainda era um filhote quando o rei Getbet Ervek, encantado com sua aparência ímpar e sabedoria incomparável (para um ser tão novo), o acolheu. Não demorou muito para que fosse escolhido como o conselheiro real. Redwic não podia sentir-se mais lisonjeado com tamanha honraria! Havia ganhado um lar e prestígio real. No entanto, a princípio, os gadoines rejeitaram a escolha do rei; mas, após grande fartura com o deslocamento da produção de trigo do oeste para o leste — ideia de Redwic, claro —, não houve aprovação maior. Com muito festejo sobre a abundância de alimentos, todos queriam conhecer a raposa que trouxera o tempo de prosperidade ao reino. Crianças faziam uma algazarra quando Redwic aparecia nas festividades e exibia sua cauda longa.
Passaram-se os anos e esse tempo de alegria já não mais existia. E, mais uma vez, cabia a Redwic fazer o necessário para trazê-lo de volta a Hagalaz.
Caminhando pela grama ressecada, sentia suas patas se contraírem em protesto. Com o sol em seu encalço, percebeu que deveria ter feito a viagem durante a noite. Mas uma viagem noturna era perigosa até mesmo para uma raposa ágil como ele.
O dia discorreu lentamente. A montanha de Jadar não era um lugar distante. Logo após sair dos limites de Hagalaz, seguiu o caminho pelas planícies rochosas até chegar ao local da cratera da pedra Ur, que remontava épocas distantes, em que Jadar gratificou os gadoines com a gigantesca Ur, comumente conhecida por pedra do elixir. A manifestação divina de Jadar emanava poder sobre a terra de ninguém, e ele exigia, em troca, oferendas ao seu nome.
Tudo acontecia em perfeita harmonia. Os gadoines ofereciam, na fogueira do altar da Hagalaz, frutos, pedras preciosas e tudo o que consideravam sagrado. Jadar, por sua vez, abençoava a pedra Ur para que ela mantivesse distante o verão propulsor de desgraças e regasse os gadoines de chuva, boas colheitas e esperança de uma vida longa e feliz. No entanto, essa relação mutualista não perdurou por muito tempo. Os gadoines encheram-se de ego e escolheram seus próprios deuses, alguns até mesmo atreviam-se a se auto intitularem como novos deuses ou representantes destes. Zombavam de Jadar, proferiam ofensas ao seu nome. Tudo porque acreditavam que o deus onipresente era dependente de Hagalaz, e não o contrário.
Jadar, então, se desfez da pedra Ur, sentenciando os gadoines ao maior castigo divino já visto no Novo Mundo. Milhares de pessoas pereceram de fome, sede e enfermidades, mas recusavam-se a praticar a crença que anteriormente os beneficiavam. Para eles, se Jadar fosse quem eles acreditavam que fosse, iria se contentar apenas com as orações feitas de boa-fé.
Redwic olhou com pesar para a cratera. O chão rachado e seco o fazia ponderar se os gadoines mereciam seu esforço. Estavam em situação de calamidade porque assim escolheram. Quem sou eu para julgar o que é certo ou errado? E Jadar, de certa forma, provou que sua relação com os gadoines era construída sob puro interesse.
Continuou a andar. E dessa vez não iria hesitar.
O vento estava cessando. Já estava próximo às raras aglomerações de arbustos baixos e espalhados, que preenchiam os espaços entre e bromeliáceas nos pequenos afloramentos rochosos. Passeou pelos troncos desgastados, ouvindo atentamente o farfalhar discreto das folhas cinzentas. Caminhou pelo chão fundo de terra seca, sentindo o calor consumir suas patas e invadir seu corpo por inteiro. Conforme passava pelo lugar árido, sentia-se mais sufocado. Parecia estar preso em uma fornalha cada vez mais abastecida por lenha. Um clarão intenso chamou sua atenção e Redwic parou. Uma serpente amarelada rastejou em direção oposta à sua, seguida de várias aves histéricas que o alertavam aos berros para correr dali. Ele ergueu o focinho para cima e inspirou o ar veemente; notando do que se tratava, mal teve outra reação que não fosse correr para onde o cheiro exalava.
Fogo. E onde havia fogo, havia alguém em perigo.
Por alguns instantes, hesitou e pensou se deveria desviar de seu trajeto para saber do que se tratava.
Então se lembrou da promessa feita em sua juventude: proteger e ajudar a Hagalaz, não importava como.
Avançou pela pequena mata seca, ignorando os galhos rígidos que atravessam a pelagem avermelhada e cortavam superficialmente suas patas. Gritava consigo mesmo para seguir adiante e esquecer que elas ardiam; corria pela única trilha que levaria ao lugar do incêndio. Já estava começando a inalar fumaça e sua visão se perdeu em um mundo cinza e abafado de fogo que já começava a se alastrar pelas poucas árvores belas. Sentia seu coração bater como tambores em uma canção de guerra. Em meio a tosses e piscadelas rígidas, Redwic viu a origem do incêndio: uma casa de palha próxima às árvores. O teto já havia sido consumido pelo fogo, que agora já envolvia o restante da morada. Do lado de fora, quase junto à queimada, a raposa avistou três gadoines gritando desesperadamente por ajuda. Um deles, alto e de nariz pontiagudo, tentava abafar o fogo, em um ato de total inconsequência, com as próprias roupas do corpo. Ao seu lado, uma bela gadoine tinha o rosto manchado pelas lágrimas que escorriam sobre a face manchada de cinzas da fumaça. Apontava para os céus, pedia piedade, mas não dizia o nome de Jadar.
Por que continuam com tamanho orgulho, gadoines? Por que não se submetem a Jadar para pôr um fim a essa agonia?
O último gadoine, um garoto raquítico e de pele pouco pálida, mantinha seus olhos arregalados e firmes no que acontecia. Em suas órbitas refletiam as chamas que também consumiriam a vida desses três seres fadados à morte. Não tinham comida, roupa ou dinheiro, e agora também não tinham casa.
Redwic finalmente revelou sua presença. O garoto foi o primeiro a reconhecê-lo.
— Redwic, o vermelho, ajude-nos! — suplicou, ajoelhando-se. — O sol veio forte sem pedir licença e suas chamas não tiveram piedade de nós.
Peça a Jadar, garoto, Redwic queria dizer-lhe.
— Salve-nos, Redwic — pediu o pai do garoto. —, em nome de Sabthe Ervek!
Aquilo foi o suficiente para Redwic decidir o que fazer. O que Sabthe pensaria se ele se recusasse a ajudar o povo que um dia o ajudou? O fogo se espalhava rapidamente. Em breve todas as árvores pela qual passara iriam manchar o solo de cinzas e a mata sem vida de Hagalaz se tornaria, de fato, morta.
— Afastem-se, todos vocês! — Redwic ordenou, posicionando-se contrário ao fogo. A família gadoine distanciou-se; observavam tudo sem entender o que a raposa iria fazer.
Em um ato surpreendente, Redwic ergueu sua cauda para os ares e ela se expandiu de forma magnífica. A cauda atingiu o dobro de seu tamanho original, deixando todos boquiabertos. A raposa girou-a de maneira rápida e precisa e fez com que uma rajada de vento levasse embora o fogo que tudo destruía. O barulho de um forte vendaval ensurdeceu os gadoines por um momento; o garoto abriu a boca em um sorriso inexplicável e reverenciou a raposa, agora com sua cauda no tamanho normal.
— Obrigado, Redwic, obrigado! — agradeceram em uníssono.
— Por que me agradecem? — perguntou Redwic, inconformado. — Por que sorriem? Sua casa foi destruída pelo fogo ardente!
— Mas a nossa pequena floresta foi salva! — respondeu o homem, emocionado. — Ainda temos o verde para admirar quando construirmos uma nova morada.
— Como? Não restou nada!
— Nós restamos! — A resposta do garoto pesou em seu coração. Começou a entender o porquê de tudo aquilo. O porquê de sofrerem com a miséria, o porquê do incêndio, apenas o porquê. Eles não dependiam de deus nenhum, afinal de contas. Jadar apenas melhorava o que já era bom em cada gadoine: ele despertava o melhor neles. Eles eram capazes de virar as costas para as adversidades e desbravar um futuro desconhecido com um sorriso no rosto. E, quando perceberam isso, decidiram que não precisavam servir a nenhum deus.
— Como se chama, garoto?
— Emet — respondeu, com a voz rouca. — Emet Vanderf.
— Venha comigo em minha jornada e será recompensado.
Os pais de Emet arregalaram os olhos e envolveram o filho em um abraço protetor.
— Para onde, Redwic?
— Encontrar Jadar.
— Jadar? — intrometeu o pai. — Espera que nos curvemos para um deus interesseiro?
— Não deixe que o ódio cegue sua mente, gadoine — aconselhou Redwic, aproximando-se a passos lentos. — Vocês ainda não viram o tamanho da fúria de Jadar. Ele é capaz de cobrir esse reino em eterno incêndio e usar os mares para afoga-los. — O homem e a esposa enrijeceram seus corpos e morderam os lábios, amedrontados com a verdadeira fúria dita por Redwic. — Asseguro-lhes que o pequeno Emet não se ajoelhará perante ele. Se tudo sair como o planejado, seu filho não voltará de mãos vazias. É uma promessa.
Redwic devia isso aos gadoines.
— E por que devemos acreditar em você? — o pai retrucou, insistente. — Há tempos suas ideias em nada resultam para Hagalaz!
— Sou uma raposa cauda-longa, não um deus, senhor Vanderf.
— Se você é Redwic, o vermelho, então sabe o que diz — falou, por fim, a mãe relutante, recebendo olhares de surpresa do marido. Redwic agradeceu mentalmente por sua fama de bom conselheiro, embora reconhecesse que o gadoine tivesse um pouco de razão. — Por favor, proteja nosso Emet.
A raposa assentiu e passou pelo casal, indicando para que Emet o seguisse. Viu o garoto abraçar os pais, enquanto lágrimas desciam pela face. A mãe bagunçou-lhe os cabelos, beijou sua testa e sussurrou algo — em uma língua que Redwic não compreendeu — em seu ouvido que o fez sorrir; o pai pôs a mão em seu ombro e balançou a cabeça positivamente, ainda que não concordasse com a ideia. Por fim, um pouco atônito, Emet correu para o lado da raposa e viu seus pais cada vez mais distantes, encobertos pelo resquício de fumaça.
— Volte para nós, Emet! — gritou a mãe, em lágrimas.
O garoto segurou o choro e não proferiu nenhuma palavra. Se tudo saísse como Redwic dissera, ele não voltaria de mãos vazias e ajudaria seus pais nesse árduo recomeço.
— Que língua era aquela, miúdo? — perguntou Redwik, sem olhar para o garoto, referindo-se às palavras de despedida da mãe.
— A língua dos antigos povos, os antepassados dos gadoines. Papai tem... quero dizer, tinha manuscritos antigos de relatos sobre a nossa origem — respondeu, chutando algumas pedrinhas pela trilha.
— E o que ela lhe disse?
— Que a esperança é a última que morre.
Mas ela morre, Emet.
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