NO ACAMPAMENTO
Alguns minutos antes...
Joan viu o mundo girar o seu redor, as folhas estalando e o ar fugindo de seus pulmões ao cair de costas no chão terroso, seu braço esticado para trás, segurados firmemente pelas mãos pequenas de Charlie.
Era a quinta vez que a garota conseguia a derrubar, e seu corpo pedia por um descanso, já esgotado.
Quando treinava na arca costumava cair em um colchão macio, aqui por mais que tivessem afofado a terra antes de começarem, a queda machucava seu quadril e coluna, e a aspereza dos dedos de Charlie raspando contra o tecido grosso em seu pulso, deixava o ponto ainda sensível dolorido.
— Vamos parar por aqui hoje — Informou entre arfadas ao se levantar, batendo no tecido de sua calça para se livrar da terra, e passando as mãos por sua pele suada para deixar as folhas grudadas em si caírem.
— Que?! — Charlotte franziu as sobrancelhas, seus lábios curvos em indignação. — Esse foi o treino mais curto que já fizemos, eu nem cheguei a cansar. — A garota cruzou os braços teimosamente sobre o peito, e Joan se controlou para não rolar os olhos, ou rir.
— Bem, não foi você que teve de ficar caindo no chão o tempo todo, foi? — Dando passo lentos em direção a fogueira para pegar um copo de chá, Joan bagunçou os cabelos loiros de Charlie presunçosamente. A garota estreitou os olhos, respirando fundo em curta irritação. — Você devia ver se Octavia não repassa as coisas com você.
— Ah! Essa não é uma boa ideia. — Charlie negou prontamente, seus lábios retorcidos em modesta culpa. — Ela só está esperando uma boa oportunidade para me matar. — Acrescentou, e Joan riu fraco.
Desde que Octavia e Charlotte decidiram dividir uma barraca, as pequenas desavenças começaram. As duas garotas pareciam se divertir juntas em diversos momentos, sendo claro que não tinham problemas pessoais uma com a outra, na verdade, Joan podia até dizer que eram amigas, suas personalidades similares demais para que não dessem certo juntas — ambas sarcásticas, teimosas e duronas. Também orgulhosas demais para resolverem seus conflitos sozinhas, precisando de um empurrãozinho sensato para conversarem.
Nesse caso, Joan.
— Então é exatamente o que você deve fazer. — Ela lançou um olhar significativo para a garota, que diminuiu seus passos atrás dela bruscamente. Charlie buscava nos olhos de Joan qualquer sinal de que estava brincando quanto a chamar Octavia, encontrando apenas certeza e desafio nas esferas profundas.
— Eu te odeio. — Charlotte resmungou infantilmente, bufando ao rolar os olhos, e dando as costas para Joan.
Por mais que não precisasse realmente a obedecer, Charlie o fazia, indo atrás de O sem mais demoras, pisando fundo no solo com sua contrariedade ao ato.
Com um sorriso satisfeito no rosto, Joan abaixou-se para pegar sua caneca de madeira no chão, mergulhando-a na tigela larga mais próxima do fogo, assim a enchendo de chá.
Junto aos estalos da madeira em chamas e do gostoso som de água mexendo, pode ouvir os passos rasteiros da pequena garota se afastando, enquanto outros pesados se aproximavam, quebrando as folhas e galhos secos com cada pisada lenta atrás dela.
Por cima de seu ombro, Joan avistou o rosto calculista de Wells. Seus olhos castanhos fascinados sobre a figura de Charlie, que passava pelos panos da entrada de sua própria barraca. Logo que sumiu para o interior da mesma, Wells piscou veemente, voltando seu olhar para Joan, os braços cruzados no peito.
— Me assusta como ela é parecia com Clarke. — Disse então, respirando fundo. — Te respeita exatamente como ela, também.
Virando para o garoto subitamente, o líquido quente nas mãos de Joan quase escapou pelas bordas do copo, seus movimentos bruscos ao fazer. Seus traços, porém, não expressavam nem um pingo de brutalidade ou fúria, permanecendo calmos e neutros, resolutos.
— Você está querendo minha ajuda, Wells? — Questionou, suas sobrancelhas levantando minimamente sobre os olhos brilhantes que corriam pelos traços do amigo, buscando suas intenções. O silêncio, no entanto, a respondeu. — Não acho que eu consiga fazer muita coisa, a história está feia para o seu lado.
Os olhos escuros dele afundaram, descendo para o chão sem suportar o peso de suas palavras.
— Ela te contou então. — Wells constatou entre um suspiro penoso, a tristeza abatendo seu coração.
— Alguns dias atrás. — Joan assentiu vagarosamente, ocupando seus lábios com a borda do copo ao tomar o primeiro gole do chá.
Seus traços se vergaram ao engolir a bebida, torcidos em desgosto, e por mais que quisesse comentar que aquilo parecia a comida da Arca em forma líquida, deixou que o silêncio tenso que Wells instaurou permanecesse no ar por alguns segundos, forçando-se a beber o terrível chá mais uma vez.
Esperava por alguma resposta vinda dele.
Wells sabia disso, conhecia o calor dos olhos âmbar de Joan sobre ele, esquentando seu corpo nervosamente. Ainda assim, não sabia ao certo o que lhe dizer, sentia-se pressionado, colocado contra uma parede inexistente e preso ali, sem ter como escapar.
Ele engoliu seco, seus dedos parecendo desconfortáveis nos punhos.
— Eu não acho que você tenha sido você. — Wells a ouviu confessar inesperadamente, sua voz neutra ao bebericar o chá com os lábios vermelhos.
— O que? — Ele deu um passo para frente, sua voz baixa e rouca, surpresa por ser tirada da garganta, assim como ele estava surpreso com a fala da amiga.
— Clarke pode não ver, mas eu sei que não faz sentido, Wells. — Joan respirou fundo, seus olhos conectados aos castanhos profundos de Wells. — Olha onde você está por conta dela.
A garota pisou suavemente mais para frente, uma de suas mãos pousando no braço do amigo confortavelmente. Com o toque, Wells imediatamente entendeu, sua mentira não havia passado despercebida por Joan, e ele não sabia se estava grato ou não por isso.
— Crescemos juntos, você se importa demais com a gente e com o que pensamos de você. E, por favor, foi você que me ensinou a pensar em todas as consequências antes de agir. — Joan podia ver as rachaduras na máscara firme de Wells, seus olhos profundos enterrados nos dela, e os lábios trêmulos ao comprimirem-se com força, entrando em conflito contra si mesmo. Ainda assim, ela continuou empurrando, esperando que ele explodisse. — Você sabia o que aconteceria com Clarke e Jake se contasse do plano deles para seu pai, e não teria coragem de o fazer. — Faíscas saíram dos olhos de Wells, e ela molhou os lábios antes de continuar. — Mas alguém teve, ou não pensou sobre direito, e é essa pessoa que você quer proteger.
Wells puxou o braço que ela segurava para si, também cortando o contato visual bruscamente, seus olhos escuros e pesados descendo para o chão, puxados como uma ancora para baixo pelos sentimos densos e sufocantes em seu peito.
— Você está errada. — Deixou escapar em um sussurro rasgado, o amargor escorrendo da ponta de sua língua. — Estou tentando proteger Clarke, não quem fez isso.
As palavras mal chegaram nos ouvidos de Joan e logo escorregaram para seu coração, murchando-o no peito. Ela as processou rápido demais, sem poder acreditar.
— Abby não faria isso... — Murmurou sua voz vazia e fraca, perdida em pensamentos e sentimentos confusos, procurando alguma outra explicação que não a que entendia. Quando encontrou os olhos de Wells, porém, percebeu que não havia outra verdade. Era aquilo mesmo que ele havia dito.
Abby tinha denunciado o próprio marido e filha.
— Seria demais para Clarke perder os dois. — Explicou Wells, olhando para céu na tentativa de conter lágrimas de caírem. — Então deixei que acreditasse que fui eu.
Os olhos brilhantes de Joan admiraram suas palavras nobres, movida pelos motivos bondosos, e ao contrário dele, Joan permitiu que o choro viesse, mergulhando em um abraço apertado nos braços calorosos e firmes do rapaz, que a envolveram prontamente, sem esperar pelo ato, mas sempre pronto para ele.
A acolhia como sempre fez, cruzando seus braços nos ombros da garota, seu queixo descansando no topo dos cabelos cobre. Uma de suas mãos acariciando suas costas em ritmo lento, guiando a respiração alterada pelas lágrimas a acalmar-se. Era um gesto tão simples, mas ela se afundava nele, em como cada toque era familiar, como ele a fazia se sentir em casa.
Não queria sair dali tão cedo, mas logo o cheiro cômodo seu perfume natural se transformou em algo forte e insuportável, seco. Sentia-se sufocada pelo ar em seus pulmões, parecendo intoxicado e ardente.
Com os olhos fechados, demorou para que percebesse que isso não era normal, afastando-se de Wells já cobrindo sua boca ao tossir.
Uma camada de fumaça escura os envolvia com suavidade, sendo trazida pelo vento do outro lado da clareira, onde logo na ponta do acampamento dos sem pulseira, labaredas altas e potentes cobriam uma construção malfeita, as chamas consumindo a madeira com voracidade, diferente de qualquer fogueira.
Joan não conseguia entender como tanto fogo subiu tão repentinamente, os jovens do acampamento vizinho saiam de suas barracas, recém reparando que havia um incêndio.
— Todos para fora de suas barracas! — Ouviu a voz grossa e áspera do impostor ordenar em um aviso forte entre a grande nuvem de fumaça escura.
O tumulto começou a se formar no terreno vizinho, conversas altas e murmúrios agitados eram seguidos de gritos de espanto que corriam por todos os lados. Os sem pulseiras fugiam da fumaça e das chamas, apressando-se para fora de suas barracas com tudo que possuíam em seus braços, e enquanto isso os com pulseira observavam em completo silêncio, reunindo-se a passos leves na divisa dos dois acampamentos, juntando-se a calada de Joan, que em choque via apenas as chamas crescendo.
O fogo consumia as madeiras da estrutura larga com voracidade, engolindo avidamente o que só podia ser a barraca de comida deles. Um longo tronco caiu da estrutura fraca em um estrondo alto, e gritos vieram do acampamento.
O coração de Joan saltou no peito ao ver a madeira em chamas rolar até uma tenda próxima — por sorte vazia, incendiando-a com facilidade.
— Temos que apagar isso. — Ela disse, seus olhos passando do mar vermelho no horizonte para o castanho profundo de Wells ao seu lado, que assentiu veemente. — Tragam a Água! — Coordenou para o povo quieto atrás dela, quebrando as expressões chocadas em seus rostos. — Vamos!
Parecia inútil.
Em meio a cinzas e flamas baixas, Joan cobria seu nariz e boca com a camisa amarrada no rosto, filtrando o ar com o grosso tecido dobrado em dois. No entanto, ainda podia sentir a fumaça encorpada fazer seu pulmão arder como se ele próprio estivesse em chamas, o top cinza e calça larga que vestia parecendo peças pesadas demais para o calor do fogo que a rondava tão de perto.
Seu corpo suava como nunca, os cabelos encharcados e as cinzas grudando em sua pele pálida, manchando-a no tom mais escuro de preto. A fuligem se acumulava ao redor dos olhos, marcando suas linhas de expressão, estas duras ao passar os olhos atentamente sobre o acampamento por um instante, assistindo o povo dos dois lados trabalhando juntos, esforçando-se ao máximo para apagar as labaredas que só pareciam crescer.
Após horas gastando sua água potável no fogo, nenhum progresso parecia ter sido feito.
Ajudadas pelo vento que premeditava uma grande chuva, as chamas haviam conseguido consumir metade do acampamento dos sem pulseira com sucesso, as correntes de ar arrastando as flamas quentes sem apagá-las, levando-nas cada vez mais para perto do acampamento de Joan, onde os mais jovens e os feridos estavam.
Parecia inútil continuar resistindo contra o fogo. O povo a sua volta claramente lutava contra a exaustão — assim como ela — e o estoque de água já chegava ao seu fim.
Sem grandes esperanças, Joan perambulou por ideias do que fazer em sua mente, lendo as consequências de cada uma delas cautelosamente, seus olhos inconscientemente deslizando para longe a sua direita, onde Wells coordenava um grupo de adolescentes.
Ao invés de ajudá-los, porém, ela o viu passar a mão pelos cabelos em um respiro longo e pesado, seus olhos no fundo do grande tanque de água. Quando seus olhos se conectaram em uma linha longa carregada de pesar e derrota, ela teve sua confirmação. Havia acabado sua água.
Seu tanque era um dos maiores, e se este tinha terminado, pouco demoraria para o restante também chegar ao fim — isso se já não estavam secos.
Não havia muito mais o que fazer.
— Parem todos. — Joan avisou em tom potente e alto para aqueles a sua volta, e logo Wells fez o mesmo, chamando atenção dos demais a direita.
Vários pararam para a escutar, prestando atenção em suas palavras com cautela e curiosidade, os diversos pares de olhos vidrados em sua figura ao abaixar o pano de sua boca. Podia sentir, porém, os olhos do impostor e de todos os sem pulseira cobrindo-a com maior ferocidade, esquentando-a mais do que o fogo ao seu redor o fazia.
Ainda assim, não recuaria sua decisão.
— Isso está sendo inútil. — Afirmou com a voz rouca pela fumaça que a engasgava. Seus olhos passavam pelo povo próximos as chamas, antes de encontrar com os olhos castanhos hesitantes de Bellamy, seu peito incerto no peito ao sustentá-los com toda sua sinceridade e firmeza. — Temos que voltar para o acampamento e afastar as barracas para o fogo não avançar. — Escondidos atrás de uma pose severa e autoritária, os olhos de Joan eram secretamente suplicantes para Bellamy. Mesmo distante como estavam, ela o sentia perto como se só houvesse os dois ali, entre as chamas, e quando disse as palavras seguintes, ele sabia que era só para ele. — Senão perderemos tudo.
Ela punha sua pouca confiança a teste, clamando por seu apoio em uma situação da qual sabia que Bellamy poderia muito bem se aproveitar.
Com o maxilar travado em desavenças, o impostor engoliu seco, seus olhos fechando em discreta concordância. Seu povo não poderia sequer ver o gesto, mas Joan o percebeu, os cantos de seus lábios levemente formando um curto e discreto sorriso, a sensação prazerosamente gelada subindo por seu estômago e correndo por suas veias.
— E nós? Vamos ficar aonde quando salvar só o seu lado do fogo? — Uma garota desafiou a distância, e os poucos sem pulseira ao redor de Joan buscaram nela, com seus olhos cansados e indefesos, alguma resposta. Sem receber nenhuma.
Joan não tinha um plano para essa situação. Não cabia a ela decidir o que aconteceria com os sem pulseira, e sim a Bellamy. Ele era quem deveria saber o futuro de seu povo. Contudo, pelo ar nublado e difuso em seus olhos, Bell parecia tão perdido quanto Joan, e a falta de palavras de ambos era enervante para os outros.
— Ela fez tudo isso! — O rapaz de cabelos loiros bagunçados e barba rala se pôs de pé um pouco mais a frente, o braço fino tremendo em fúria ao apontar para Joan, seus olhos verdes grandes no rosto miúdo e sua voz instável em raiva ao falar alto seus pensamentos conturbados. — O fogo! Foi ela!
O peito do rapaz subia e descia rapidamente, seus olhos insanos sobre Joan cortando o ar em meio ao silêncio duro posterior a suas palavras. Os com pulseira, que confiavam na líder que escolheram, começaram gradativamente a recuar como haviam sido instruídos, parte pela ordem, parte por medo do que estava por vir.
O garoto moreno ao lado do maníaco, quase se arrastava para afastar-se, seus olhos baixos e cautelosos. Ainda assim, quando passava por ele, foi pego brutalmente pela camisa listrada que vestia, puxado para servir de exemplo.
— Eles colocaram fogo na nossa comida para se livrar da gente! — O loiro jogou o garoto no chão como se ele não fosse nada, e Joan engoliu seco, empurrando suas palavras raivosas pela garganta com desgosto, tentando manter a paz.
Não acreditava que alguém podia cair nessa, afinal, ela foi a primeira a ajudá-los quando se iniciou o incêndio. Aos poucos, contudo, notou que os sem pulseira estudavam ferozmente o povo dela recuar com seus passos lentos, a fúria embriagando os olhos sombrios e atormentados dos jovens. Era como ver animais sondando suas vítimas, bastava um movimento brusco, e os leões atacariam os cervos.
Na calada tensa, a mão de Joan escorregou até faca profissional em sua cintura, a segurando firmemente com os dedos sujos. Sabia que a calmaria ameaçadora não duraria muito.
Não imaginava, porém, que seria tão pouco.
Bruscamente rompendo o silêncio frágil, o som forte e estrondoso de um trovão estourou nos ouvidos dos 100, estremecendo a terra sobre seus pés com sua potência. E juntamente das gotas espessas de chuva que começaram a cair, os gritos de guerra dos sem pulseira cobriram tumultuosamente o vazio do ar, explodindo sua raiva em urros irados.
A chuva cobria a visão de qualquer um em uma camada turva e acinzentada de água, mas os passos das pessoas eram brutais na terra molhada, correndo para o acampamento com pulseira com seus corpos rígidos.
— Tomem o acampamento! — Joan ouviu alguém gritar de algum lado, e seu coração agitou-se ainda mais no peito, transtornada com tamanha confusão ao seu redor.
Gritos agudos vinham de vários lugares, e o som surdo de socos e chutes eram fáceis de se reconhecer, mesmo com os estrondosos barulhos das gotas grossas da chuva e as explosões de trovões no horizonte.
Um rapaz veio em sua direção, seus punhos cerrados e seus olhos azuis escurecidos, revoltos em pura ira. Ele não diminuía o passo rápido, seus dentes serrados em um grunhido rouco exaltado que crescia ao se aproximar. Joan por um segundo ficou sem reação, seu pé movendo por conta própria ao levantar-se no ar, chutando-o na costela antes que ele pudesse fazer algo. Em meio ao golpe, viu de relance a segunda ameaça se aproximar rapidamente pela sua esquerda, e quase emendando o chute com o soco, ela atingiu a garota no maxilar, os nós de seu punho doendo pela tamanha força posta do murro.
Joan saiu dali depressa enquanto os dois ainda estavam distraídos com a dor que ela os causou, sendo engolida pelo tumulto de gente que passavam como vultos por ela, batendo em seus ombros sem delicadezas e empurrando-a para trás a cada topada, todos seguindo para o acampamento.
Quebrando sua guarda ao desviar o olhar de onde antes a atacaram, Joan espiou por cima de seus ombros, seus lábios secos e delicados partindo-se com a cena inimaginável que quase não via por entre a camada grossa de chuva.
Mais da metade dos jovens que ela abrigara se punham de pé, lado a lado na lama escorregadia, formando uma barreira humana contra os sem pulseira. Estes os enfrentavam de frente, cuspindo insultos em seus rostos e apontando dedos incisivos para seus peitos, empurrando-os brusca e asquerosamente na tentativa de quebrar o escudo que formavam.
Joan nunca pensou que veria algo assim, parecia uma cena de filme antigo. Parecia guerra.
Ficou parada no mesmo lugar, seus olhos atônitos correndo de rosto em rosto pela corrente de pessoas que defendiam seu atual lar. Podia sentir suas roupas pesarem no corpo, grudando em sua pele, e se não fosse pela adrenalina, ela tinha certeza de que estaria com frio.
Wells estava ali.
Assistiu-o receber socos duros na boca do estômago, os dois garotos quase sorrindo ao o fazer, sem aliviar na força de seus atos, pois no final, Wells sempre seria o filho do chanceler.
Logo a urgência de protegê-lo venceu por completo o seu choque. O coração de Joan pulava batidas no peito, e ela se viu correndo, suas botas escorregando na lama a cada passo. Sua mente tão ofuscada com o medo de vê-lo machucado, que deixou sua guarda baixar por completo, sem cuidar de suas costas
Estava a menos de dois metros da barreira de gente, quando tudo aconteceu. Os socos passaram do estômago dele para o rosto, e os sem pulseira não pareciam perceber o corpo forte e rígido de Wells enfraquecendo com os murros.
— Parem! — Joan gritou em desespero, sua voz falhando quando alguém a puxou bruscamente pelo braço.
Despreparada para o ato, as suas botas deslizaram no barro, e o mundo pareceu girar ao seu redor durante a queda, tudo cinza e oscilante. Ainda assim, Joan conseguiu ver antes de seu corpo cair em um baque molhado na lama, o corpo de Wells fazer o mesmo.
O pânico consumiu o interior da garota, e ela tirou a faca de sua cintura sem ao menos pensar. Quando olhou para cima e encontrou os olhos verdes esbugalhados do maníaco que começou tudo aquilo, não hesitou em lhe rasgar o tornozelo, a lâmina fina de sua faca penetrando a pele rápida e limpidamente.
Sangue jorrou para fora do ferimento profundo, sua cor escura misturando-se com o marrom da lama, e ele gritou de dor, abruptamente caindo de joelhos ao lado de Joan, suas mãos trêmulas tentando cobrir o corte.
O desgosto pelo rapaz venceu qualquer simpatia que ela poderia ter para querer ajuda-lo, e com o peito ofegante e os olhos atentos, Joan levantou do chão, esforçando-se em procurar Wells entre a multidão de gente embolada, a chuva cada vez mais forte deixando ainda mais difícil de se ver qualquer coisa.
Deu alguns passos incertos para frente, a faca ainda firme entre seus dedos quando ela avistou a silhueta conhecida de seu melhor amigo de infância caída no chão, botas pisoteando-o como se fosse o barro sob seus pés. A cabeça de Wells era jogada de um lado para o outro, suas mãos sendo enterradas na terra com o peso das outras pessoas, e o peito dele coberto de sujeira não parecia mexer.
Por que o peito dele não parecia mexer?
— Não. — A palavra escorregou dos lábios do Joan. — Não, não, não... — Ela continuou, sua voz ganhando força a cada passo desesperado que dava na direção de Wells. A faca alta no ar firme em seus dedos, apontando para qualquer um que ousasse entrar no caminho
Cada centímetro diminuído entre eles espremia o coração dela no peito, sua mente contando os segundos em que não o via respirar, segurando o próprio fôlego sem motivos aparentes. As lágrimas quase que esperando que acabasse com os números para desabarem das beiras de seus olhos.
A proximidade liberava a cortina turva da chuva que antes a poupava de detalhes, e agora ela podia ver, sem obstruções, a água escorrendo pelos traços tão conhecidos de Wells, limpando o sangue que escorria por seus lábios roxos e contornando a dobra exagerada e torta em seu pescoço.
Sua pele dourada já não exibia mais brilho, e os olhos escuros antes profundos miravam o céu, agora rasos e turvos. Sem vida.
Todo o ar estoicamente retido nos pulmões de Joan escapou roucamente por seus lábios em um grito penoso, longo e agudo, o choro desabando de seus olhos com a mesma brutalidade que seus joelhos fracos a deixaram cair na lama.
Podia sentir o calor de suas lágrimas escorrerem pelas bochechas, diferenciando-se das gotas de água gelada que porcamente limpavam a sujeira que cobria seu corpo. Só ouvia o silêncio, o barulho estalado da chuva e o som de seus soluços descontrolados ao se arrastar na terra molhada, quebrando os centímetros que separavam ela de Wells com grande esforço.
Ela deitou a cabeça latejante no peito forte dele, checando se seu coração batia apenas como confirmação para seu temor, pois sabia que o pouco calor que o torso do amigo passava, era somente uma pequena sobra da vida que lhe foi tirada.
Wells nunca mais poderia lhe oferecer um abraço caloroso como aquele que havia dado naquela manhã.
— Não... — Ela murmurou para si, os lábios trêmulos e a voz falha. Seu espírito doendo, sua mente girando.
As lágrimas deslizavam das bochechas salientes de Joan diretamente para o peito do amigo, misturando-se com a água da chuva que encharcava sua camiseta imunda, repleta de marcas de sapatos. Uma de suas mãos se fechou em punho no tecido ensopado, seus olhos no escuro de suas pálpebras ao largar a faca que segurava na lama.
Joan passou seus dedos finos pelos cabelos molhados e sujos de Wells, e sem ansiar encarar as feições vazias nele outra vez, ela permaneceu com os olhos cerrados, buscando em suas memórias alguma imagem viva dele para relembrar.
Várias surgiram em sua mente.
Não sabia se Wells havia visto sua vida passar diante de seus olhos antes de morrer, mas Joan a revivia naquele instante, assistindo cada sorriso que ele já deu para ela em suas lembranças, seus olhos castanhos profundos conectando-se com os dela, acesos e bondosos, como sua alma.
Por mais que odiasse a ideia e não quisesse que fosse verdade, aquele era seu adeus.
— Em paz, você deixará a praia... — Joan sussurrou, passando as mãos pelos cabelos de Wells mais uma vez. — No amor, encontrará a próxima porta... — Sua voz falhou, o choro embolando um nó grosso em sua garganta ao qual ela engoliu, empurrando-o para baixo junto de suas lágrimas, afastando-se do peito do Wells com calma, suas mãos trêmulas passando pela pele gelada. — ...que será segura para as viagens, até sua jornada final ao solo.
Ao abrir os olhos, Joan encontrou com vários rostos baixos em pesar.
A garota estava tão presa em seu luto, que não havia notado que ao seu redor as pessoas haviam parado de lutar fazia um bom tempo, se aproximando dos dois em silêncio, o som de suas vozes limitados a murmúrios, respeitando a morte, e a dor.
Clarke deu passo à frente, ajoelhando-se no chão enlameado ao lado de Joan, suas mãos macias e quentes deslizando pelas costas dela calmamente em um toque acolhedor. Seus olhos verdes fracos sobre o rosto estático de Wells, os olhos abertos e vazios assombrando seu peito.
Ela esticou seus dedos sobre eles, fechando-os com suavidade.
— Que nos encontremos novamente. — Murmurou.
— Que nos encontremos novamente. — O resto dos jovens disseram ao seu redor, as palavras quase não saindo dos lábios de Joan.
Clarke passou seu braço ao redor do ombro da amiga, apertando-a de lado contra si em um pequeno abraço acolhedor, e Joan deitou sua cabeça no ombro dela, deixando com que o peso que torturava seu corpo descansasse sobre Clarke.
Ninguém dizia uma palavra. O som molhado da chuva preenchendo o ar vazio, deixando mais fácil para que os pensamentos fluíssem em suas mentes, e em meio a um suspiro fraco, Joan se pegou olhando para o céu acinzentado, assim como sabia que Clarke o fazia, ambas pensando a mesma coisa.
Jaha nunca saberia como seu filho tinha morrido.
Joan debatia em sua mente se não era um bom fardo a se livrar, quando aquilo apareceu entre as nuvens.
— Clarke. — Ela sussurrou, seus músculos tensos ao se afastar lentamente da garota, os olhos âmbar fixos no céu. A amiga ao seu lado não fazia diferente, suas sobrancelhas franzidas sobre os olhos verdes confusos. Então um som áspero e ecoante ressoou pelos ares e a imagem turva tornou-se mais nítida.
Mesmo com longos quilômetros de chuva espessa, podia ver com clareza a grande máquina de metal caindo como um raio de fogo entre as nuvens, e trovões.
— Isso é...? — Clarke deixou a pergunta escapar em um sussurro.
— É a nave da minha mãe.
NOTAS: Hello!! Não esqueça de deixar seu voto caso tenha gostado desse capítulo :D
Como alguns sabem atrasei na postagem por uns problemas que exigiram toda minha atenção, mas espero voltar para o cronograma de toda a quinta feira já essa semana.
O que acharam do capitulo? foi um dos mais dificil de se escrever até agora, muita coisa acontecendo e muitas emoções para lidar :(
Pobre Wells.
+ O que acham que vai acontecer agora?? Como a comida pegou fogo?
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