Permita-se
"Não fique muito surpreso, isso é quem você é"
"Você está pronto para isso?"
Lilly terminou de colocar as últimas caixas de sua mudança para dentro do minúsculo apartamento que, a partir daquele dia, passaria a dividir com sua amiga de infância, Ruby Lynn. Não era exatamente o lugar mais confortável do mundo, mas era o suficiente para duas universitárias sem muito poder aquisitivo e com um imenso desejo de se livrar de seus detestáveis colegas de alojamento.
Young esticou os braços para cima com a intenção de alongar os músculos que haviam passado boa parte da tarde carregando caixas, passou a manga da camisa de linho pela testa para secar as gotículas de suor que já começavam a escorrer e sorriu com as mãos apoiadas na cintura, olhando para a sala abarrotada de coisas e sentindo-se minimamente orgulhosa de si mesma. Suas pernas estavam doloridas de tanto subir e descer escadas, visto que o prédio era velho o suficiente para não possuir elevadores. Não seria o fim do mundo em um dia normal, no entanto, naquele em específico, dar voltas e mais voltas, indo para cima e para baixo naqueles três lances de escadas, a fizera transpirar tanto que agora tinha a sensação de que as roupas estavam tentando se fundir ao seu corpo.
A mulher caminhou até uma das caixas que estavam sobre o velho sofá de couro marrom e desbotado, tirando de lá um pequeno cacto em um vasinho de porcelana branca. Sorriu satisfeita ao ver que a planta estava bem e caminhou até a cozinha para poder deixá-la na janela, que era onde batia sol de tardezinha com uma vista que dava para os fundos do prédio.
Como foi dito antes, o lugar não era perfeito, nem de longe. As paredes eram meio sujas e, com certeza, precisavam de algumas camadas de tinta para que se ajeitassem, ou talvez um simples papel de parede resolvesse tudo. A pia da cozinha pingava constantemente no armário abaixo de si, mas o pai de Ruby já tinha prometido que viria dar um jeito naquele problema durante o final de semana. O chuveiro não tinha água quente e o inverno estava chegando, o que significava que se não resolvessem aquilo logo, seria difícil sobreviver à temporada de frio constante.
Alguns móveis haviam sido deixados ali pelo antigo dono e não estavam em um estado tão ruim para que não pudessem ser aproveitados pelas atuais moradoras. O único problema era o fato de que só existia uma cama de solteiro no quarto que, supostamente, deveria ser dividido pelas duas amigas. Lilly não pareceu se importar muito com aquilo na verdade, porque, bem, ela havia chegado primeiro ao local, então era justo que a cama lhe pertencesse, já que Lynn estava atrasada — como sempre — e fora o motivo pelo qual a Young se viu obrigada a transportar a mudança inteira sozinha. E apesar de a cama dar a impressão de que iria ceder com qualquer peso mínimo que fosse colocado sobre ela e de o colchão não ser lá dos melhores — dando a entender que sim, Lilly acordaria com as costas doloridas depois de uma noite de sono não tão bem aproveitada assim —, já era algo melhor do que ter que dormir no sofá.
De fato, havia uma extensa lista de coisas com as quais deveria se preocupar, mas tudo o que ela queria naquele momento era tomar um banho para então ligar para o restaurante chinês mais próximo e pedir um delivery, e depois de tudo isso feito, iria esperar o entregador na sala enquanto enfiava a cara em um de seus livros sobre direito penal e tentava memorizar o máximo de coisas que podia dentre as milhares de palavras escritas entre as páginas esbranquiçadas que, por vezes, lhe causavam irritação nas retinas e dores de cabeça por conta da reflexão da luz.
Deixando um pouco de lado o pensamento de que odiava livros de páginas brancas e preferia muito mais os de folhas amareladas, Young arrastou sua mala até o quarto e procurou por uma roupa confortável para vestir quando enfim saísse do banho, ação essa que não costumava durar mais de dois ou três minutos, ainda mais quando a água do chuveiro vinha tão fria que poderia congelar a qualquer momento em meio ao percurso que fazia pelo encanamento.
Já estava sobre o sofá de mola, com o óculos de armação arredondada no rosto e o enorme livro de legislação em mãos, quando escutou o "clique" que vinha da porta, tão baixo que não teria nem notado se o lugar não estivesse mergulhado em um silêncio quase que absoluto naquele momento.
Por detrás da prancha de madeira escura e maciça, surgiu Ruby Lynn, com um sorrisinho de canto que esbanjava culpa e uma bola de pelos muito bem acomodada em seus braços. Young não pôde evitar uma pequena careta ao se dar conta de que a amiga trouxera consigo a maldita gata cuja diversão era sempre tentar comer seus pés, mas, bem, a vida não foi feita para ser perfeita em todos os sentidos e ela podia aguentar algumas mordidas de Amanda pelo bem da felicidade alheia, já que aquilo não era lá grande coisa, de qualquer forma.
— Está atrasada. — Foi o que disse, voltando a atenção para o amontoado de páginas envoltas por uma capa dura, como se a própria Lynn já não tivesse se dado conta daquele seu feito.
— Eu sei, foi mal. — E enquanto fechava a porta, a gata pulou de seus braços diretamente para o chão — Passei um tempão procurando os brinquedos da Amanda lá em casa, até me dar conta de que já tinha empacotado tudo e mandado para cá. — Lilly se limitou a revirar os olhos, porque era óbvio que Ruby cometeria uma burrice como aquela, dada a sua falta de atenção em certos momentos.
— Pedi comida chinesa naquele restaurante da esquina. — Young poderia brigar com a mais nova, no entanto, por mais que estivesse chateada por ter tido que cuidar de tudo sozinha e agora estar dolorida em todos os lugares possíveis, foi aquilo o que murmurou para a amiga enquanto trazia o livro mais para perto de seu rosto, como se aquela simples ação fosse capaz de fazê-la entender melhor o que estava lendo.
— Eu pago — declarou convicta, deixando o molho de chaves preso a um chaveiro de ursinho sobre uma das bancadas da cozinha —, para compensar o trabalho — acrescentou e Lilly não precisava quebrar a cabeça pensando para saber que aquilo era sobre as caixas.
— Compensaria mais se você arrumasse as coisas, agora que eu já carreguei tudo — resmungou, ouvindo a Lynn soltar uma risadinha soprada que se assemelhava muito a um "hehe" e que, por sua vez, significava que não, ela não faria aquilo. Pelo menos, não sozinha.
Amanda subiu no sofá assim que terminou sua exploração pela casa nova. Parecia demasiadamente confortável ali e, em um ato que assustou um pouco a mulher que estava parcialmente distraída no momento, esfregou-se nas pernas dela, que estavam encolhidas sobre o assento da mobília. Young torceu o nariz de leve. Não era lá uma grande fã de animais, ainda mais se fossem do tipo que sai soltando pelos pela casa toda e tem uma enorme tara por seu pé, mas ter a gata ali, alisando sua coxa com a cabeça como se esperasse por algum tipo de comoção que viesse em forma de um afago gostoso em suas orelhas e, como se já não bastasse aquilo, ter Ruby a observando com um sorriso tão genuinamente feliz nos lábios, a fez se render às vontades da bola de pelos cinzentos por um instante e afundar a ponta de seus dedos entre a pelagem invejavelmente macia e brilhosa.
Era uma pequena trégua temporária apenas, não significava que iria sempre cair nas graças do animal só porque o bicho vinha se esfregar nela com a maior cara de pau do planeta.
Ainda estava meio acariciando meio coçando as orelhas felpudas da bichana quando algumas batidas na porta ecoaram pelo apartamento. Lynn foi quem atendeu e pagou pela comida, e também quem levou as coisas para a pequena mesa de centro da sala. O jantar foi feito no meio da bagunça mesmo, já que era tarde e nenhuma das duas mulheres estavam com energia para arrumar algo. As coisas estavam correndo pacificamente, isto é, até Ruby querer se apossar da cama e acabar sendo responsável por iniciar uma discussão na qual foi, praticamente, massacrada. Resmungando em descontentamento e carregando o travesseiro e os lençóis que Lilly fizera o grande favor de procurar nas caixas mais cedo naquele mesmo dia, a mais nova rumou para o sofá, vendo-se obrigada a passar a noite ali.
E enquanto a Lynn lutava para encontrar uma posição confortável para dormir sobre as molas enferrujadas que rangiam até mesmo quando respirava, a Young encarava o teto do quarto, sem conseguir pregar os olhos, mesmo que sua mente fosse um grande borrão branco. Era a primeira noite que estava passando em um lugar novo, depois de meses dividindo um alojamento meio capenga com Victoria Park, uma festeira incorrigível, mas tão boa pessoa quanto. Admitir que sentia falta da voz exageradamente alta da moça era um pensamento que soava estranho demais para ser externado, entretanto, não quer dizer que não fosse verdade. De certa forma, era estranho não ter toda aquela agitação do dormitório, mesmo antes de dormir, ou não ter que ficar acordada até tarde esperando a outra pessoa chegar, para não ter seu sono interrompido. Não que tivesse muito tempo para dormir, já que normalmente virava as noites com uma garrafa de café e uma pilha de livros didáticos de seu curso.
Enfim, estava mergulhada em lembranças que a faziam se sentir meio esquisita, quando alguém cutucou seu ombro. Lilly arregalou os olhos para a figura que estava em pé ao lado da cama e, se demorou dois segundos para perceber que era Ruby ali, foi muito.
— O que houve? — perguntou baixinho, questionando-se sobre o porquê de ter sussurrado, uma vez que só havia as duas ali.
— Não consigo dormir, as molas do sofá fazem muito barulho — admitiu a maior, aparentemente embalando na onda de sussurros sem se importar. Young queria perguntar o que é que tinha a ver com aquilo, mas sentia que iria soar rude demais até mesmo para ela — Posso dormir com você?
A pergunta repentina a fez arregalar os olhos minimamente. Onde exatamente a amiga pretendia dormir se tudo o que havia ali era uma cama de solteiro com um colchão que, diga-se de passagem, era algo meio semelhante à uma prancha de pedra? O simples pensamento de que Ruby pretendia dividir consigo o espaço sobre aquela mobília que mais parecia ter saído diretamente do período pré-histórico, lhe assustava um pouco. Isso porque, bem, onde já se viu duas mulheres dormindo tão próximas?
Lilly sentiu o estômago se revirar de um jeito esquisito, mas não totalmente desconhecido. Era o mesmo jeito de quando Lynn sorria para ela, com suas bochechas protuberantes empurrando os olhos pequenos até quase se fecharem; e de quando a mulher estava concentrada em algo e a Young se pegava encarando sua expressão estranhamente atraente por tempo demais, ou de quando simplesmente ria enquanto brincava com a gata. Era algo que se assemelhava a ter alguma coisa se debatendo em suas entranhas e ela estava prestes a forçar uma risada e enxotar a mais nova dali delicadamente. Lilly, definitivamente, não estava preparada para a sensação de ser empurrada para mais perto da parede e, posteriormente, o colchão afundando minimamente ao seu lado, e isso fez com que seu coração errasse toda uma sequência de batidas, passando a palpitar desordenadamente.
Estava enlouquecendo, só podia ser aquilo.
E como se não bastasse toda a situação para a qual havia sido arrastada sem nenhum tipo de consentimento vindo de sua parte, o sussurro meio baixo e rouco de Ruby ao externar um "Boa noite" a fez endurecer o corpo, ficando tão estática quanto se tivesse dado uma boa encarada no fundo dos olhos da Medusa. Ela até poderia abrir a boca para reclamar e então, chutar a Lynn da cama, se a mulher já não tivesse adormecido, em uma velocidade invejável para qualquer pessoa que sofre de insônia. A gata veio de penetra, minutos depois, porque onde a dona ia o animal corria atrás, como se tivesse medo de que sua escrava pessoal fosse desaparecer a qualquer instante sem nem precisar de uma cortina de fumaça. Amanda se arrastou até o topo da cama e deitou no travesseiro, bem próxima da cabeça de Lilly.
Aquilo era algum tipo de castigo, ter que passar a madrugada surtando e com um bicho peludo "amassando pãozinho" em seus cabelos?
Voltou a encarar o teto, como se ele tivesse a resposta para todos os seus questionamentos. Ter a respiração quente de Ruby batendo em seu pescoço a fazia sentir como se alguém pegasse seus neurônios e desse nó em todos eles, além de também lhe trazer a certeza de que deveria ter aberto mão daquela cama mais cedo, quando estavam brigando pela posse do móvel. Puxou uma quantidade de ar tão grande para dentro de seus pulmões que chegaram a doer por um instante e, a razão de tudo aquilo, era o fato de a melhor amiga ter resolvido passar uma das pernas por cima de seu corpo, enquanto agarrava sua cintura com uma das mãos, como se ela fosse um travesseiro, ou algum bicho de pelúcia gigante. Lilly fechou os olhos e mordeu o lábio inferior com força ao que os dedos gelados da mais nova entraram e contato com a pele de sua cintura, que estava exposta pela regata de seda meio levantada. Respirou fundo outra vez e outra, e mais outra, mantendo os olhos fechados.
Estranhamente, depois de alguns minutos daquele perrengue, finalmente conseguiu sentir o sono chegando. As pálpebras começavam a ficar realmente pesadas e a inconsciência se aproximava vagarosamente para poder a engolir quando menos esperasse. E foi dito e feito. Adormeceu com o cafuné desajeitado da gata no topo de sua cabeça e a respiração calma de Ruby Lynn em seu pescoço.
[...]
Acordou com um peso sobre seu abdômen, quase acabando com todo o seu estoque de oxigênio. Lilly sabia que Amanda não era tão pesada assim, mas não duvidava que o animal algum dia tentasse lhe matar. Abriu os olhos meio atordoada e meio em desespero, deparando-se com o enorme sorriso de Ruby que, por alguma razão, achava que deixar o peso do seu corpo cair todo sobre a mais velha era uma ótima ideia, algo que certamente não a mataria. Não precisou expulsá-la dali, no entanto, porque assim que notou seu olhar assassino, a mais alta se afastou, não deixando de sorrir, porém.
E Young poderia xingá-la de todos os termos pejorativos nos quais conseguisse pensar naquele momento, logo após ter sido liberada para respirar normalmente outra vez, mas a percepção da feição jovial da amiga a fez parar por alguns segundos para tentar entender o que diabos estava acontecendo e por que Ruby parecia uma adolescente de quinze anos.
— Feliz aniversário, Bunny. — Foi o que saiu da boca da mais nova, obrigando Lilly a franzir o cenho em confusão. Aniversário? Que porra...? Por acaso estava vivendo uma versão falsificada e totalmente errada de "De repente trinta" e ainda não havia se dado conta?
— Ah, mas você é muito engraçada mesmo. — Forçou uma risada meio exagerada, esticando-se para pegar o celular sobre a mesinha de cabeceira — Olha só, foi uma bela tentativa e tudo o mais. Eu aprecio o seu esforço de se maquiar só para me pregar uma peça, mas hoje é dia... — Ela parou de repente, com os olhos se arregalando aos poucos enquanto fitava a tela do aparelho já iluminada — Vinte e nove... De março — murmurou pausadamente, engolindo em seco ao notar posteriormente que aquela data era referente a quatro anos atrás — Você mudou até a data de hoje no meu celular?! — exclamou desacreditada, encarando uma Ruby que parecia tão confusa e perdida quanto um cego no meio de um tiroteio.
— Parabéns pra você. — E como se já não bastasse aquela situação completamente estranha, sua mãe invadira o quarto cantando um pedaço daquela música tradicional que qualquer pessoa no mundo conhece.
— Envolveu minha mãe nas suas brincadeiras? — Não é que estivesse brava. O que sentia, de verdade, era admiração pelo esforço da mais nova em querer fazê-la de trouxa.
— Que brincadeira, Lilly Young? Ficou maluca? — E essa delicadeza toda veio de sua progenitora, é claro. Ninguém esperava menos da mulher — Ruby veio até aqui para te levar naquele parque de diversões e você fica dando chilique? Me poupe.
Lynn sorriu pequeno, passando a mão direita pela nuca em um sinal claro de constrangimento. Foi só então que a Young mais nova pareceu notar que não estava em seu apartamento, no colchão pré-histórico que dividiu com a amiga na noite passada. Aquele era o seu quarto, na casa de seus pais. De fato, o pôster do TWICE na parede acima da cabeceira de sua cama era inconfundível. Se aquilo era algum tipo de brincadeira, ou não, estava começando a assustá-la.
— Eu, hum... Vou sair para você se arrumar. — Ruby anunciou, deixando o cômodo logo em seguida e a senhora Young não disse mais nada antes de se retirar também.
Lilly ainda permaneceu ali por alguns bons minutos, tentando absorver toda a situação. E por que estava surtando tanto afinal? Era um sonho, estava na cara.
Após a percepção deste fato, tudo pareceu ficar mais tranquilo. Ela não levou nem dez minutos para tomar banho e vestir algo confortável, para então descer as escadas e encontrar os pais na cozinha e a amiga rindo de, provavelmente, alguma piada tosca que seu velho havia feito, já que o senso de humor questionável daqueles dois era algo que tinham em comum. E lá estava também o café da manhã tradicional coreano, que sua mãe só fazia em datas comemorativas que julgava serem especiais, porque era trabalhoso demais. Palavras da própria senhora Young.
Mas voltando para a história, o dia estava calmo. Dava para ver pela janela acima da pia que o céu estava cheio de nuvens branquinhas que, por vezes, escondiam os raios de sol em meio ao seu passeio pela imensidão azul. Aquilo era bom, porque significava que não iria chover tão cedo. De certa forma, seu coração se aquecia ao estar na presença daquelas pessoas que já não via há um bom tempo por conta dos estudos estarem tomando mais de seu tempo do que deveriam. Sentia falta dos abraços de urso do pai e dos biscoitinhos amanteigados que a matriarca fazia quando se machucava brincando na rua, ou quanto tinha um dia ruim e se trancava no quarto para chorar. Coisas para as quais não havia dado a devida importância e agora, ao perceber, se arrependia um pouco.
Tudo parecia estar normal do lado de fora da casa. A vizinha da frente ainda a olhava feio enquanto molhava as plantas do jardim e o cachorro vira-lata da casa ao lado continuava com sua mania de se apoiar na cerca de madeira branca e latir para chamar a atenção de qualquer ser humano que passasse na rua. Na verdade, a única coisa anormal em toda aquela situação, foi quando chegaram no parque de diversões e Young se deu conta de que eram as únicas pessoas ali dentro.
— Tem certeza de que este lugar está aberto? Não tem ninguém aqui.
Ruby riu do mesmo jeitinho de sempre, encolhendo os ombros despreocupada.
— É o seu aniversário, Bunny. Não há mais ninguém que precise estar aqui, além de você. — E o sorriso só aumentou, transformando-se em um amontoado de bochechas e dois olhos pequeninos e brilhantes, que foram capazes de acelerar o ritmo cardíaco alheio.
Tudo bem que era um sonho, mas a situação precisava mesmo ser tão esquisita? Sério? Só ela e a Lynn ali, sem ninguém para supervisionar? Apavorante!
Não que pensasse que a mais nova fosse fazer alguma coisa consigo, já que, normalmente, sua mente é que era a sua maior inimiga, obrigando-a a pensar em coisas que, definitivamente, não queria. Lilly não queria pensar em como a mão da amiga era macia e em sua vontade secreta de segurá-la e não soltar nunca mais. Não, claro que não. Era constrangedor. Mais ainda quando se pegava encarando os lábios redondinhos e brilhantes por conta do gloss, enquanto se perguntava qual seria o gosto deles.
Francamente, a última coisa da qual ela precisava, era ficar a sós com Ruby quando seus pensamentos insistiam em traí-la a todo momento. Que embaraçoso! Onde é que já se viu uma garota querendo saber sobre a textura e o gosto dos lábios de outra? O que era aquilo, algum tipo de loucura?
Young balançou a cabeça para se livrar dos pensamentos absurdos que rondavam sua cabeça naquele momento, ignorando totalmente a mão de Ruby estendida para ela, ao adentrar o parque. Logo de cara, no centro de tudo aquilo, podia-se enxergar um enorme Chairoplane, que parecia funcionar mesmo sem ter ninguém ali. Mais ao fundo estava a estrutura de uma montanha-russa gigante, com o carrinho correndo pelos trilhos sem nenhum passageiro para gritar. As xícaras giravam em uma dança sincronizada, mesmo que ninguém as estivesse controlando. Era estranho estar ali sob aquelas condições, mas apesar da aparência meio "expulsamos todo mundo, mas você pode ficar, porque é seu aniversário", Lilly até que estava feliz por não precisar enfrentar nenhuma fila.
— O que quer fazer primeiro? — A voz da Lynn soou tão perigosamente perto de seu ouvido que ela saltou por, pelo menos, meio metro, antes de se virar com os olhos arregalados.
— Ah... — Tentou dizer algo, mas aparentemente, seu eu adolescente era uma versão mais boboca de si mesma do que jamais imaginara ser.
— "Ah"? Acho que não tem nenhum brinquedo com esse nome por aqui. — Ruby riu de sua piada horrível e Lilly só não revirou os olhos porque estava ocupada demais, quase babando enquanto encarava a mais alta — E então, o que vai ser? — Tornou a questionar, ainda com uma expressão divertida tomando conta de sua face. E a única coisa na qual a Young conseguiu prestar atenção foi o movimento dos lábios gordinhos.
"Dê uma olhada para dentro de si mesmo, veja o que realmente quer"
— Lilly? — A voz de Ruby soou abafada, como se a mais velha estivesse com os ouvidos cheios de água.
"O que você quer? Me diga"
Ela sabia exatamente o que queria, mas admitir para si mesma que a ideia de morder os lábios rosados alheios lhe era deveras atrativa estava totalmente fora de cogitação.
— As xícaras — respondeu por fim, observando a Lynn aquiescer pacientemente. E quase como se concordassem entre si por telepatia, começaram a caminhar justas, indo na direção do brinquedo que, magicamente, parou de rodar quando chegaram perto.
Estranho. Young tinha certeza de que já havia usado aquela palavra para definir as coisas ao seu redor pelo menos uma dezena de vezes naquele mesmo dia, mas, bem, tudo estava sendo realmente incomum. E talvez escolher aquele brinquedo idiota tivesse sido uma péssima ideia, porque agora tinha Ruby mais perto do que deveria e suas pernas se encostavam, causando um formigamento estranho. Aquela garota tinha mesmo que se sentar tão perto, como se a atração não estivesse completamente vazia?
Estava tão ocupada em pensar no quão absurdo era tudo aquilo, que mal notou quando o brinquedo começou a girar. Ela, definitivamente, não gostava daquele frio na barriga tão irritante, somado ao modo como suas entranhas se reviravam toda vez que olhava para a Lynn, que parecia muito plena. O rosto de traços delicados a fazia querer tocar cada partezinha. Por que a menina tinha que ficar tão bonita com os cabelos negros balançando suavemente a cada volta daquela maldita xícara?
Ruby a olhou e sorriu, e aparentemente, aquela ação era o mesmo que jogar água em uma corrente elétrica, o que significava causar um curto circuito. Ou seja, pane geral no sistema de Lilly Young. Era injusto que apenas ela estivesse enlouquecendo ali.
Não esperou o brinquedo parar, se levantou e tentou sair dali, quase caindo pela leve tontura que caminhar sobre uma superfície giratória causava. E no meio do caminho entre o Chairoplane e o portão de entrada e saída, a Lynn a alcançou, segurando uma de suas mãos entre os dedos gelados. Young olhou para onde suas peles se tocavam e engoliu em seco.
— Você quer parar com isso? — indagou irritada, puxando a própria mão para si. Ruby franziu o cenho e inclinou a cabeça minimamente para o lado.
— Isso o quê?
— Essa coisa que você faz, esse jeito com o qual me olha e me faz querer... — Lilly se auto interrompeu antes que pudesse terminar de dizer.
— Eu faço você querer o quê, exatamente? — A mais nova levantou uma das sobrancelhas, se aproximando até estar perigosamente perto da Young, que sentia as pernas fracas.
— Te beijar — admitiu finalmente, sem saber como diabos aquelas palavras escaparam de sua boca. Há anos que tentava não soltar algo como aquilo e, de repente, lá estava ela, se expondo mais do que deveria.
Ruby soltou mais um de seus risinhos soprados, o que chegava a irritar a mais velha de uma maneira genuína. Como era possível que estivesse tão calma diante de um absurdo daqueles?
— E por que não faz isso?
Lilly arregalou tanto os olhos que, se a anatomia humana permitisse, eles teriam saltado para fora naturalmente.
— Ficou maluca? — Estava meio que "em choque" com aquela pergunta repentina.
— Mas se você quer e eu, obviamente, também, então o que te impede? — A casualidade de Ruby a assustava um pouquinho, obrigando-a a engolir em seco pela segunda vez em menos de cinco minutos e prender a respiração.
— Você... Você quer? — Foi o que conseguiu dizer, com a voz soando tão trêmula que teve vontade de estapear o próprio rosto — Mas isso não... Isso é errado. — Balançou a cabeça em negação, dizendo aquilo em meio a um suspiro.
— Então por que me parece tão certo? — A Lynn rebateu, voltando a segurar sua mão. O modo como o polegar se arrastava carinhosamente por sobre a pele quente da Young a dava a sensação de uma leve dormência no local da carícia. — Se você gosta de mim e eu gosto de você, amar não te parece ser o certo a se fazer? — E lá estava ela, se aproximando ainda mais, confundindo os pensamentos alheios.
Lilly tentou dizer alguma coisa, mas parecia que não havia mais nada em sua cabeça, porque a boca apenas abria e fechava diversas vezes, como se fosse um peixe, sem nunca realmente soltar uma palavra que fosse. E Ruby continuou se aproximando, como se o fato de seus narizes estarem se tocando não fosse o suficiente para dizer que a proximidade entre elas já era muito grande. E quando chegou perto o suficiente para que seus lábios finalmente tocassem superficialmente os da mais velha, Young sentiu que poderia explodir. Queria ser uma pedra, porque então não teria que lidar com aquela sensação esquisita que era ter a barriga parecendo que ia congelar, enquanto, de certo modo, o interior de seu peito se tornava quentinho.
Talvez se arrependesse depois mas, bem, era apenas um sonho, não?
Percebendo que a mais nova não faria nada além daquilo, Lilly travou uma árdua batalha interna consigo mesma para, no final, acabar ela mesma prendendo um dos lábios da maior entre os seus, com as bochechas tão quentes que chegou a cogitar a possibilidade de estar febril. Ruby sorriu contra a sua boca e aquilo foi o suficiente para fazê-la se desmanchar por dentro.
Sentia os lábios formigando.
Estava beijando Ruby Lynn.
Iria morrer a qualquer segundo.
Young suspirou ao avançar um pouco mais contra os lábios gordinhos e se dar conta de que carregavam um gosto suave de morango, e ter as unhas curtas da Lynn raspando em sua nuca fez seu corpo se estremecer. Segurou na cintura da garota com suas mãos trêmulas e totalmente inexperientes, sentindo o quão perfeitamente elas pareciam se encaixar ali.
E naquele momento, nada parecia tão certo quanto o que estavam fazendo naquele lugar.
"Jogue todas as suas preocupações no chão
Pelo encantamento florescente do seu sorriso
Se permita"
[...]
Lilly acordou de repente, sentindo como se tivesse adormecido em uma piscina. O suor lhe percorria o corpo todo, o coração estava acelerado e os lábios ainda formigavam de um jeito bom. Era como se ainda estivesse beijando a amiga.
Respirou fundo e olhou para o lado. Ruby não estava ali, mas o barulho de panelas que vinha da cozinha denunciava onde a mulher se enfiou. Com um suspiro pesado e a cabeça latejando por uma possível enxaqueca, Young se permitiu enrolar os dedos pelos fios de cabelo e puxar levemente.
Estava enlouquecendo.
Que sonho maluco fora aquele afinal?
Bạn đang đọc truyện trên: Truyen247.Pro