Espelho Meu
Tic... tac... Tic... tac...
O barulho ecoa por todo o espaço sem iluminação em que ela se encontra. Não vê nada. Não escuta nada além do tempo, que parece ficar a cada instante mais alto.
Tic... tac... Tic... tac...
Quando se abaixa, ajoelhando, e sente o chão, ele parece tremer sob seus dedos e joelhos. O movimento de repente lhe causa náuseas e agora não sabe se levantar é uma boa ideia. Talvez caia.
Tic... tac... Tic... tac...
O barulho do tempo fica mais alto. Sua cabeça dói.
De repente, não sabe quanto tempo depois, tudo para. O tic-tac, o tremor, a dor e a náusea.
Ao se levantar, um fraco sentimento de segurança surge em seu peito. Ainda não consegue enxergar. O lugar é tão escuro que seus olhos não se adaptam, mas ela sente que talvez consiga fugir.
Ledo engano.
Um estrondo alto ecoa pelo escuro seguido do barulho de algo pesado se arrastando, este vem de todas as direções. O que vem a seguir lhe trás um sentimento de familiaridade: as paredes e o teto vão se fechar e lhe prender e o tic-tac vai voltar mais alto. A dor, o tremor, a náusea vão voltar.
Mas quando está para ficar insuportável, ela desperta na segurança de seu quarto. Seu peito sobe e desce tentando regular a respiração. O relógio na cabeceira marca 3 horas da madrugada. Dormiu menos tempo que da última vez, mas sabe que não adianta tentar voltar a dormir.
Olhando pelo lado bom, acordou cedo e seu dia vai ser produtivo. Ela passa a mão pelos fios do cabelo presos ao suor em sua testa, se levanta e acende a luz de seu quarto. O espelho preso à parede reflete uma imagem que ela há muito não reconhece: o cansaço visível nas olheiras e no olhar, os olhos vermelhos devido à falta de sono. Ela vai até o banheiro e lava o rosto, numa tentativa de tirar o sono, que se perde quando ela se deita, e de esquecer o pesadelo recorrente.
Depois de alguns minutos ela está pronta para ficar em frente à luz do seu computador por algumas horas estudando.
Uma fraca luz alaranjada começa a escapar por debaixo da cortina blackout clareando um pouco o quarto escuro. O relógio agora marca 8 horas. Um barulho de metal batendo contra o chão surge no silêncio da manhã a assustando. Ela sai do quarto com urgência em seus passos e o coração acelerado, o que faz com que o caminho pelo corredor estreito pareça aumentar a distância entre ela e a cozinha. Mas finalmente chega, encontrando sua mãe animada.
— Te acordei com o barulho, filha?
— Não. Eu já tinha acordado — respondeu ela olhando para a mulher sorridente à sua frente. Com os olhos marejados ela abraça forte sua mãe que é um pouco mais baixa.
— Eu fiz suco de abacaxi, toma um pouco.
Sua mãe parece mais animada que o normal. Talvez porque é verão e ela está de férias. Um bolo sobre a mesa parece apetitoso, mas ela já sabe que não terá sabor. Ela se senta à mesa, desejando que esse momento não dure mais que da última vez. Mas o calor já começa a entrar pela casa junto com a claridade da manhã.
— Pensei em fazermos um piquenique hoje, o que acha? — Sua mãe se senta também, com uma xícara de café em uma mão e um copo para colocar suco na outra.
Ela se lembra que estava ocupada demais para sair, mas não responde. Mas sua mãe continua falando como se estivessem em um diálogo ensaiado.
— É feriado, filha. Você devia descansar e dormir em vez de trabalhar. E o dia hoje não será tão quente, então você vai gostar.
Sua mãe se levanta e começa a colocar alguns potes com lanches dentro de uma cesta quadrada de palha.
— Sua irmã também vai com o meu genro, por que você não quer ir?
— Eu te amo, mãe — ela diz com lágrimas já escorrendo pelo rosto.
Sua mãe, inabalável, continua colocando potes dentro da cesta.
— Entendi que você não quer ir, mas devia descansar mesmo assim. Você não vai viver muito se só trabalhar e estudar o tempo todo.
Sua mãe se vira e sai pela porta da cozinha com a cesta na mão. A luz da manhã faz com que sua silhueta suma de vista enquanto caminha para longe.
O calor fica mais intenso. O relógio na parede marca meio dia.
Ela volta para o quarto e senta em sua cama.
Mas ela também continua sentada em frente ao computador na escrivaninha, trabalhando. Nada aconteceu para sua cópia distraída.
Tic... tac... Tic... tac...
Sua cabeça dói. O calor aumenta.
Ela levanta da cama e abre a cortina, sua imagem refletindo no vidro liso da janela. O fogo no quintal já crepita, queimando a grama sem se espalhar. O vidro da janela também reflete a luz do fogo, tornando seu próprio reflexo difuso, quase assustador. Ela não sente o cheiro da grama queimada, somente o calor do fogo.
O relógio marca 14 horas e a outra ela continua a digitar na escrivaninha. Nas vezes em que tentou chamá-la, não adiantou. O tempo apenas passou mais rápido, e o barulho e a dor aumentaram antes que ela pudesse fazer qualquer coisa. Ela não quer ter que sentir tudo de novo, mas sabe que isso fará com que o pesadelo termine mais rápido.
Ela caminha até sua cópia, chamando seu nome. Sua voz parece não sair como deveria. Então ela sacode sua cópia, tentando fazê-la reagir, mas não adianta, ela está imóvel, com os olhos sem vida olhando para a tela do computador.
O tic tac aumenta. A dor volta. O calor fica mais próximo à medida que o fogo a alcança.
Ela se vira para o espelho do lado da escrivaninha. Seu reflexo parece mais cansado e lágrimas descem pelo seu rosto. Ela não sabe quando começou a chorar, mas as lágrimas tornam sua imagem refletida ainda pior. Ela não quer mais olhar para si e volta a tentar despertar sua cópia.
A dor volta. O chão treme. O calor aumenta.
Tic... tac... Tic... tac...
Ela acorda novamente. Dessa vez, reconhece estar em seu quarto na casa da irmã. Desde que o incidente do incêndio aconteceu ela tem esse pesadelo.
Sua mãe havia saído para o piquenique e deixado o fogo de uma das bocas do fogão ligado. Um pano de prato que estava próximo a ele começou a pegar fogo. Ela deixou a cesta com uma amiga dizendo que voltaria para casa para conferir se tinha deixado algo ligado, já que se houvesse sua filha não perceberia. Quando ela voltou a cozinha já estava em chamas. Ela passou pelo cômodo, correndo pelo corredor até chegar no quarto da filha que já estava desacordada por causa da fumaça. Ela estava tão distraída com o trabalho que não percebeu a tempo o fogo. Sua mãe a tirou dali pela janela e a casa foi consumida pelas chamas antes que os bombeiros chegassem. Ela e sua mãe foram internadas em estado grave.
— Vamos, Ci! — Sua irmã abre a porta de seu quarto, lhe despertando de seus devaneios. — Quanto tempo mais pretende dormir?
— Já estou indo — ela responde com a voz rouca, coçando os olhos numa tentativa de esquecer o pesadelo e sentando-se na cama.
— Vem logo que já tá tudo pronto!
A cama ao seu lado, de solteiro como a sua, está vazia e arrumada. Quanto tempo ela dormiu?
— Que horas são? — pergunta para a mais velha que a olha com um olhar preocupado.
— Quase nove. Tá tudo bem? Você parece cansada.
— Eu tive pesadelos de novo.
— O mesmo de sempre?
Ela não responde. Apenas olhou para a cama ao seu lado. A culpa insiste em querer consumi-la toda vez que tem aquele pesadelo.
— Foi minha culpa...
— Para com isso! Já passou! Toda vez que você tem esse pesadelo você fica melancólica como na época em que tudo aconteceu.
— Mas a mamãe...
— A mamãe tá bem melhor agora, você sabe. — Ela não responde fazendo com que a mais velha dê um longo suspiro antes de entrar no quarto e sentar ao seu lado na cama. — Olha, eu sei que não foi fácil e também sei que você acha que deve algo à mamãe por ela ter perdido a casa do papai com o incêndio. Mas aquilo foi uma fatalidade.
— Eu devia ter prestado atenção no que tava acontecendo, Fá. Como eu pude não ver que a casa estava em chamas?
— Mas você sabe que a mamãe tá bem. Você também tá bem. Aquela casa era só um bem material que pode ser substituído, Ci. Você e mamãe não podem. E ter vocês aqui de novo comigo foi a melhor coisa que me aconteceu desde o nascimento dos meus filhos. Eu amo muito vocês e não quero ver nenhuma de vocês duas se culpando mais por algo que aconteceu há tanto tempo. Além disso — diz se levantando e puxando a mais nova pela mão, deixando o tom de voz mais alegre —, hoje é dia de diversão. O sol está brilhando, o mar tá me chamando... Hoje é dia de alegria! E sabe o que mais? Mamãe fez bolo! Vamos logo!
A animação da irmã faz com que Alice sorria. Fabiana foi quem segurou a barra quando ela e sua mãe ficaram internadas depois do incêndio. Os médicos chegaram a lhe dizer que nem Alice nem sua mãe sobreviveriam. Elas tinham inalado muita fumaça e tinham queimaduras por todo o corpo. Mas, nos quase cinco meses que as duas estiveram internadas, Fabiana esteve ao lado delas, cuidando de seus ferimentos, contando sobre a vida fora do hospital, sobre como seus filhos estavam na escola. Quando Fabiana ia lhe visitar era como se a dor em seu corpo fosse insignificante e o tempo, que passa tão lentamente naquele lugar que cheira a limpeza, voasse.
— Pode ir que eu já desço — Alice responde.
Fabiana sai do quarto e Alice se levanta. As imagens do pesadelo ainda estão pairando em sua mente, mas ela sabe que a irmã tem razão. Depois do que aconteceu, ela precisou de muitas sessões de terapia quando os pesadelos começaram. Ela sabe que não tem motivo para se sentir culpada, mas seu subconsciente insiste em dizer o contrário, a fazendo sonhar com aquele dia vez após vez.
Ela caminha até a janela abrindo a cortina. O dia está claro e provavelmente vai estar quente. É um ótimo dia para ir à praia e tomar um banho de mar para se sentir revigorada para a semana à frente.
Ela vai até o espelho preso à parede conferir se seu rosto está inchado. As olheiras do sonho e que eram tão comuns naquela época não existem mais. Alice também não se sente mais tão sobrecarregada. Como passou muito tempo internada e em reabilitação, ela teve que parar sua vida durante quase um ano. Trancou a faculdade, perdeu o emprego que tinha. A consequência foi como se estivesse tentando se desintoxicar de uma droga. Ela teve crises de ansiedade por ter que "atrasar" sua vida acadêmica, teve crises de abstinência por não ter o que fazer durante horas a fio. Mas, no fim, ela começou a enxergar que a vida é muito mais do que apenas trabalhar e estudar. Se ela tivesse ido ao piquenique aquele dia ela não teria sido obrigada a parar sua vida e ver como o mundo à sua volta podia ser mais leve. Ela talvez ainda teria perdido sua casa, mas provavelmente conseguiria dormir melhor.
Porém ela aprendeu também com o tempo que não adianta pensar no que poderia ter feito. Isso não faz com que o passado mude, apenas causa angústia e ansiedade. Ela então parou de pensar no "se eu tivesse feito isso ou aquilo" e começou a pensar em "se eu fizer isso ou aquilo o que pode mudar?"
Mas, é claro que viver não é simples. Os pesadelos que vinham de vez em quando tendiam a quebrar sua determinação de seguir em frente sem olhar para trás. E é aí que sua irmã entra. A pessoa, que sempre foi uma conselheira e amiga, se tornou seu ponto de apoio principal, trazendo de volta sua determinação de continuar a viver quando ela queria desistir. A alegria dela, sua força e garra é o que mantém Alice de pé.
Fabiana tem sempre um sorriso no rosto, como se nada a abalasse. Alice sabe que a irmã nem sempre está bem, mas admira a forma como ela encara as situações de frente. Ela é como a luz do sol que alegra e desperta a todos para as coisas boas da vida. Com ela Alice aprendeu a enxergar as pequenas alegrias de sua vida, como o piquenique que farão hoje na praia, as gargalhadas dos seus sobrinhos quando ela lhes faz cócegas na barriga, os olhos apertados de sua mãe quando ela sorri.
Em frente ao espelho, que agora reflete sua alegria debaixo das cicatrizes do incidente, ela percebe o quanto mudou e chega à conclusão de que não é fácil viver, mas é incrível tentar!
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