Capítulo 1 - Ferva duas xícaras de desespero
Podia sentir as batidas do meu coração até nas pontas dos meus dedos. A música nos meus ouvidos estava alta, mas não era párea para elas, nem tão rápida. Levei a mão ao botão para aumentar o volume, mas já estava no máximo. E ainda assim não era o suficiente.
Eu andava de um lado para o outro, um, dois, três passos, e girava. Um, dois, três passos. Giro. Um, dois, batendo as duas mãos no meu quadril sem parar, três, giro. Tentava aumentar outra vez o volume, contava meus passos, girava. O peso da mochila que eu carregava já me era alheio, ou simplesmente encaixava bem com meu nervosismo e o ritmo da música. Um, dois, ela batia nas minhas costas na hora em que eu precisava. Três.
Girei e parei no último segundo antes de esbarrar em um cara que passava no sentido contrário. Ele falava no telefone, mas fez questão de bufar irritado para minha falta de atenção. Tantos anos morando em Nova York pelo menos me fizeram imune a esse tipo de coisa. Enquanto ele dizia palavras nada educadas sobre mim para quem estava do outro lado do seu celular, meus olhos encontraram o painel enorme atrás dele.
Eu não estava mesmo considerando aquela ideia, não é? Só precisava de um momento em que fosse loucamente impulsiva, mas não precisava deixá-lo acabar com a minha vida. Não que isso fosse acabar com a minha vida, mas só pioraria tudo. Certo? Não estava tão desesperada assim. Não, aquilo seria realmente absurdo. Não estava mesmo pensando em levar adiante, só precisava da ideia, só o perigo seria suficiente.
E isso eu já tinha tido. Poderia respirar fundo já. Respire fundo, Audrey!, pensei. E deixe que esse plano maluco saia de você pelos poros de sua pele, por cada mínimo espaço que consiga. Supere e volte para casa, você tem um livro para terminar.
Me girei para um lado diferente, quebrando meu ciclo de passos, e tive uma visão perfeita das portas que se abriam automaticamente e davam à rua. Até imaginar o barulho delas me era ensurdecedor. Parecia que gritavam para mim que eu estava me enganando, que era tola e covarde, que nunca iria longe o suficiente para conseguir o que queria.
Me virei de volta para o painel, mas não me deixei ler mais do que só um dos nomes.
Eu nunca faria aquilo. Nunca. Sabia muito bem que, se contasse a qualquer um dos meus amigos, aos meus pais e até meu irmão, que sempre dizia que eu precisava me preocupar menos, ninguém acreditaria em mim. Eles só iriam rir. E com razão, aquela não era eu. Nunca poderia ser tão impulsiva. Não, era inteligente demais para tomar qualquer decisão assim, no calor do momento.
Estava quase começando a me virar de novo na direção da rua quando parei. Ou medrosa demais.
Não era exatamente essa a ideia? Fazer uma coisa que eu nunca faria se não estivesse desesperada?
Então era isso? Eu estava admitindo estar desesperada?
Inclinei a cabeça para os dois lados, me dando por vencida ao meu próprio argumento. A menina pequena da família que passou por mim me olhou como se eu fosse louca. Os adultos, em compensação, preferiram fingir que não me viam.
Momentos de desespero pedem medidas desesperadas. Era essa a desculpa que eu usaria? Simplesmente segurar a respiração e pular?
Não! Como? Como eu faria aquilo? Tudo bem, não era do meu feitio e era por isso que eu precisava fazer. Mas havia uma razão para que todos nem considerassem que algum dia eu faria aquilo! Era porque eu não saberia nem por onde começar!
Olhei do painel para a mulher no guichê, que sorriu quando encontrou meus olhos. Eu o retribui, apesar de sentir meu estômago embrulhando. Já tinha ido falar com ela e desistido milhares de vezes. Nem sabia como ela poderia continuar tão bem-humorada. Eles deviam embebedar seus funcionários, só podia. Aquilo não era normal. Se eu estivesse em seu lugar, já teria me demitido.
Ri sozinha, e de uma coisa que nem era engraçada. Minha garganta arranhou e instintivamente tirei uma alça da minha mochila e a puxei para a frente, buscando uma bala de hortelã. Só parei quando senti o formato dos livros dentro dela.
Três semanas. Vinte um dias. Era o tempo que eu tinha para terminar o último da trilogia. Não! Olhei no relógio. Vinte dias e vinte e uma horas. E alguns minutos. O tempo continuava correndo. Mesmo que eu fosse parar e pensar em quantos minutos e segundos, me dava pânico só de tentar.
Ninguém conseguiria escrever um livro inteiro em três semanas. Ninguém! O que eu estava pensando? Tinha era que ligar para a editora e dizer que era impossível! Simplesmente não daria! Eu era humana, pelo amor de deus! O que ela esperava?
Quase como um alarme, meu celular começou a vibrar dentro do meu bolso e a música parou. Era ela. Eu sabia que era, devia ser a milésima vez que me ligava na última hora. Queria saber como estava indo, já que eu tinha prometido entregar mais um manuscrito ontem à noite.
Tudo ótimo, eu diria, mais uma vez. Deixe-me só consertar alguns pequenos detalhes, Judith, e eu já te envio!
Mentiras. Grandes mentiras. Mas ela devia saber que pressionar trabalhos criativos era uma péssima ideia. Péssima! Ainda mais para mim.
Um garoto derrubou uma mala e eu dei um salto, como se estivesse sendo pega no lugar errado, na pior hora possível. Ele nem percebeu o efeito do que tinha causado, fazendo meu coração a acelerar ainda mais de susto. Levei minhas duas mãos ao peito, tentando forçá-lo a se acalmar.
As pessoas faziam aquilo todos os dias, pensei. Por que eu não conseguiria?
Quem exatamente fazia aquilo todos os dias? Era loucura! Eu não conhecia ninguém que já tinha simplesmente entrado em um aeroporto e comprado uma passagem do nada!
Mas eu tinha planejado. Durante só quinze minutos, mas tinha planejado. Tinha tido tempo o bastante para jogar tudo dentro da minha mochila e pegado um táxi para cá. Era planejamento o suficiente. Era mais do que pessoas que realmente entravam no aeroporto por acaso e acabavam o dia em outro lugar costumavam ter.
Quem faria esse tipo de coisa, honestamente?
Eu. Eu faria. Eu tinha que fazer. Repeti mais algumas vezes para mim mesma, sem nem perceber que voltava ao meu ritmo de contar três passos e girar. Eu faria. Eu faria. Não era meu tipo de coisa, mas a última coisa que precisava ser naquele momento era eu mesma. Medidas desesperadas. O que minha protagonista faria? Exatamente. Ela enfrentaria. Ela enfrentou todo um exército de criaturas sobrenaturais com nada mais que um arco e flecha. Eu conseguiria fazer isso, devia isso a ela.
Parei de andar.
Eu realmente devia isso a ela. Marianne tinha me dado tudo. Meu apartamento, meus móveis, todos os vestidos incríveis que eu guardava em meu quarto e minha coleção de livros. Tudo bem que eu mesma a tinha criado, mas, se não fosse por essa história, ainda estaria no porão da minha mãe, torcendo para algum agente literário ler minha carta por mais de duas linhas. Eu devia isso a ela. Precisava criar um final digno. E não estava nem perto de conseguir.
Andei até a mulher do guichê, passando na frente de um cara que já se encaminhava também a ela.
"Decidiu?" Ela perguntou, com aquele mesmo sorriso que eu não sabia de onde vinha.
"Não," admiti, ameaçando fazê-la perder a pose. "Preciso que decida por mim."
Ela engoliu a seco, mas manteve seu ar profissional. "Precisa que eu escolha para onde deseja viajar?"
"Isso," falei, antes que me deixasse pensar e me dissuadisse mais uma vez. "Eu preciso ir para algum lugar, qualquer lugar, que seja longe e que me inspire. Mas que não seja muito quente. E que não demore mais de doze horas, porque eu fico tonta. E que não seja tão diferente daqui, não tenho tempo para ficar aprendendo culturas completamente novas. E precisa ser logo. Daqui alguns minutos se puder, nem que seja caro. Pode ser caro."
Não muito caro, completei na minha cabeça. Eu tinha dinheiro, mas o ideal seria não ter que gastar tudo em uma viagem que eu nem estava escolhendo.
"Entendi," ela disse, apesar de seus olhos estarem quase gritando que ela não queria estar naquela posição. Ela os mirou na tela do computador e passou um tempo em silêncio.
Eu dava pulinhos no meu lugar, me agarrando ao guichê. E estava prestes a pedir que esquecesse, que era besteira, quando ela se virou animada para mim:
"Tem um voo para..."
"Não me diga!" Pedi, alto o suficiente para fazer todos os atendentes dos outros balcões nos olharem. Não me importei, só peguei minha carteira em movimentos rápidos e imprecisos, tendo que tentar três vezes até conseguir tirar meu cartão e jogá-lo para cima dela com minha identidade. "Crédito," falei, "Duas vezes se puder. Precisa de passaporte?"
Ela afirmou com a cabeça, claramente com medo de falar mais do que devia. Eu o peguei e coloquei em cima de onde meus documentos tinham parado.
"É daqui a pouco?" Perguntei, esperando que ela me dissesse que eu tinha dois minutos para correr até o portão e fazer uma incrível entrada.
"Vinte minutos," ela disse. "Mas vou pedir para segurarem para você. Será a última a embarcar, mas embarcará," ela praticamente cantarolou, enquanto se ocupava de qualquer coisa no computador. "Espera, você não tem bagagem para despachar, não é?"
"Oi?"
"Se você tiver, não vai dar para ir nesse voo. Eu teria que pedir..."
"Não tenho!" Praticamente gritei de novo, meus pulos aumentando de tamanho com a calma e a demora dela.
Ainda dava para desistir? Eu queria desistir?
"Ótimo," ela disse, voltando a mirar o computador. Eu ouvi o barulho de algo sendo impresso e quase desisti de tudo.
Era isso. Eu realmente estava fazendo aquilo. Estava comprando uma passagem para algum lugar que não conhecia, estava confiando na atendente e simplesmente ia entrar em um avião. E se ela estivesse me mandando para a Islândia? Ou a Sibéria? Por que eu não tinha pelo menos escolhido a droga do lugar? Ainda dava tempo de mudar?
"Portão M!" A atendente disse, me entregando todos meus documentos e uma passagem. Meus olhos encontraram o destino na hora.
Paris. Ela estava me mandando para Paris. Não era dos piores lugares, né?
Para mim, era.
A próxima vez que meu telefone tocou, eu já estava sentada. Não queria nem pensar no que aquilo me custaria. Uma passagem de última hora e a mulher ainda tinha me colocado na classe executiva. Eu realmente deveria ter pensado melhor sobre aquilo. Ou simplesmente aceitado que eu não era aquele tipo de pessoa e voltado para meu apartamento vazio e sentado de novo na frente do computador.
"Ah, eu já fui muito para Paris!" O cara do meu lado falava, se esticando para alcançar a mulher do outro lado do corredor, enquanto eu observava a asa pela janela e me perguntava se estava cometendo um erro enorme. O cara fazia questão de usar o tom mais alto que sua educação permitia, só para testar meus nervos e exibir para todos que aquela viagem não era grande coisa para ele. Mas era para mim. E, se ele não fosse tão irritante, eu teria deixado Judith ir direto para a caixa postal outra vez.
"Alô?" Falei, fazendo uma careta para o outro lado da janela, onde eu conseguia ver no máximo o chão escuro na noite, parado e esperando que a gente decolasse. Eu sabia exatamente o que viria agora.
"Audrey Scott, por que não atende meus telefonemas?" Minha editora perguntou, claramente preferindo não me tratar como a amiga de longa data que éramos e sim como minha chefe. Esse era o efeito do meu sobrenome, quase como um palavrão vindo dela. Era seu jeito de praticamente me informar que estava para me dar uma bronca.
Meu instinto me disse para responder que eu estava naquele instante atendendo seu telefonema, mas lutei contra ele, mordendo meu lábio e deixando que ela continuasse, em seu tom mais condescendente:
"Quando ligo para você, espero que atenda! Eu tenho horários, você sabe disso!"
"Desculpe, não podia," menti, fazendo outra careta. Era péssima mentindo. Por sorte Judith nunca tinha mesmo tempo para marcar encontros em pessoa. Nem mesmo quando eram drinks amigáveis.
"Você já me mandou o manuscrito? Estou checando meu e-mail e não chegou nada!" Ela exclamou. "Onde ele está?"
Bons tempos em que eu poderia simplesmente culpar uma droga de pombo correio. Até abri a boca para despejar nela toda minha frustração e dizer que ela não me entendia, nunca entenderia o que era sentar por horas na frente da tela do computador sem saber como continuar o que havia se tornado o maior propósito da sua vida. Mas não consegui, não podia nem imaginar como reagiria e foi bem mais fácil simplesmente continuar a evitando.
"Na verdade, Judith," respirei fundo, tentando ignorar o cara que ria do meu lado e insistia que não tinha nada de mais no Moulin Rouge, "eu tenho que desligar."
"Como é?" Podia imaginá-la se levantando de surpresa e logo voltando a sentar. Não era como se eu costumasse lhe negar algo diretamente, e apostaria que era ainda mais estranho para mim do que era para ela.
"Eu tenho que desligar," repeti. "Estou em um avião. Nós vamos decolar," fiz outra careta, antecipando sua reação.
Ela riu. Alto. "Olha, de todas as vezes em que você teve que inventar uma desculpa, essa é a melhor!" Ela riu mais um pouco. "Audrey, Audrey, o que farei com você?"
Me forcei a respirar fundo outra vez e não jogar meu celular longe.
"É sério!" Insisti, apesar de ela nem parecer estar me ouvindo. "Quer que eu peça à comissária de bordo para falar com você?"
"Se é sério," ela bufou uma risada, "para onde está indo?"
Olhei para a minha esquerda. Não poderia simplesmente falar Paris. Era uma cidade linda, incrível, todo mundo amava Paris, não? Mas era exatamente onde meu ex-namorado morava com sua noiva. Judith sabia que eu nunca iria de boa vontade para lá. Não depois de tudo que tinha acontecido entre nós.
E como eu explicaria? Dizendo que tinha pedido para a própria atendente escolher um lugar? Sugerindo que ela provavelmente pensou que ninguém nunca recusaria uma viagem para Paris? Acrescentando que eu estava literalmente fugindo de Nova York com a mínima esperança de que a troca de cenário fosse me ajudar?
"Audrey," a voz de Judith me alertou do tempo que eu estava demorando para responder. "Por que você não me diz a verdade?"
"Eu estou dizendo!" Insisti, me sentindo estranhamente nervosa quando nem estava mentindo. "Estou em um avião!"
"Indo aonde, exatamente?"
O cara do meu lado riu, me desconsertando.
Madri. Eu poderia falar Madri. Era perto. Mas e se ela pesquisasse? E se entrasse nos sites de companhias e descobrisse que não tinha voo algum para Madri?
Quem faria esse tipo de coisa?
O cara riu outra vez. "Se você quiser, eu te levo para lá," ele disse, tão alto que parecia ser uma proposta para todo o avião.
Simplesmente o bloqueie de sua mente, Audrey, falei para mim mesma. Um lugar para ir, um lugar que eu tenha visto no painel de partidas antes de comprar essa passagem.
"Ah, é uma cidade lindíssima!" Ouvi o cara falando, apesar de todas as minhas tentativas de bloqueá-lo. "Chama Amboise. É inspiradora."
"Amboise," falei, antes que pudesse evitar. Depois pensaria comigo mesma que a culpa era daquela palavra, inspiradora. Nada de bom costumava vir dela, mas eu ainda assim não conseguia resistir a ela. "Estou indo para uma cidade chamada Amboise."
Judith ficou quieta. Por um segundo, achei que tinha desligado.
"Aonde fica?" Acabou perguntando.
Engoli a seco, dessa vez tentando ouvir tudo que o cara falasse. "É uma das cidades que tem castelos do Vale do Loire, sabe?" Ele dizia.
"Na França. Vale do Loire," falei, rápido o suficiente para não perder a próxima coisa que saía da boca dele.
"E Leonardo da Vinci está enterrado lá..."
"Leonardo da Vinci está enterrado lá," continuei, fazendo-o se virar e olhar estranho para mim.
Mas ele não parou. Voltou-se para a mulher depois do meu sorriso amarelo e continuou. "Não existe nada mais bonito no mundo do que ver uma cidade com tantas construções da Idade Média com o pôr-do-sol refletindo nas águas do Loire."
"Dizem que o pôr-do-sol é maravilhoso," eu disse, dessa vez virando o rosto completamente para a janela. "E que tem muitas construções medievais. Procure na internet, Judith. Amboise." Rezei para não ter pronunciado o nome da cidade errado.
Ela suspirou do outro lado da linha. "Eu ainda preciso do manuscrito, Audrey."
"E você o terá," prometi. "Mas só no dia dez, sem falta. E será incrível. Essa só é uma viagem que eu preciso fazer."
"E por que agora? Logo quando nós temos um prazo?" Ela estava começando a ficar impaciente de novo.
"Judith..." Comecei, mas o próprio piloto nos avisou que iríamos decolar, e pude sentir o avião começando a se mexer. "Eu realmente preciso desligar agora, mas te explico tudo depois."
"Audrey, nós temos..."
"Um acordo, eu sei! E eu disse que vou lhe entregar o manuscrito completo e perfeito no dia dez! Prometo! Você nem vai precisar editar nada direito." Estava quase suplicando, mas a única coisa que queria era desligar o telefone. "Alguma vez já quebrei uma promessa?"
Ela ficou em silêncio.
"Tá, não responda isso," falei, esfregando minha testa e evitando a cara feia que a comissária estava fazendo para mim. "Vou desligar. Mas confia em mim, só dessa vez."
Não esperei sua resposta, tirei o celular do ouvido e o desliguei sem pensar duas vezes. O avião começou a tomar velocidade, me empurrando contra o banco, me fazendo sentir de uma vez todo o peso daquela decisão. Estava deixando Judith para trás com todas as suas cobranças. Estava me afastando do chão, a sensação de queda livre me atacando a cada cinco segundos por dentro, que eu sentiria mesmo se ainda estivesse no chão. Eu estava deixando Nova York.
Mas carregava mais do que só meus livros comigo. Meu desespero, meu medo e aquela droga de bloqueio, eles todos também tinham embarcado. Aquela era minha última chance
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