Capítulo Único
1.958
Podia ser – e para a maioria das pessoas era – um dia normal, mas não para Luis Otávio, o entregador de sorvetes. Ele nem sabia, mas estava envolvido em um efeito em cadeia que começara há alguns dias.
Madalena, a filha, recebera do pai a incumbência de pagar a conta de luz, mas a menina quase mulher se encantara com Joaquim, o entregador de jornais. Talvez fosse o bigodinho fino ou o sorriso por baixo dele, ou mesmo, os olhos grandes como duas jabuticabas. O fato era que Madalena queria impressionar Joaquim, ser notada em meio a tantas outras moças enlaçadas no encanto do portuguesinho e, no caminho do banco, deparou-se com um bonito vestido azul na vitrine. Joaquim gostava de azul, talvez, gostasse de Madalena também. Num impulso – algo tão característico de Madalena – a moça entrou na loja e experimentou o traje. "Perfeito!", pensou ao se olhar no espelho, rodopiando em volta de si mesma. Com um sorriso, desenrolou a conta de luz e tirou o dinheiro de lá para pagar pelo vestido. A conta de luz? Ficara esquecida no chão da praça enquanto Madalena saltitava de volta para casa.
Luis Otávio nunca perdia a hora. Nunca! Porém, como nada é tão previsível como o imprevisto, naquela manhã tudo foi diferente. O entregador tomava seu banho matinal, a cabeça toda ensaboada, o sabonete servindo de microfone ao cantar "Conceição", de Caubi Peixoto em meio ao vapor do chuveiro quando uma rajada fria acabou com todo o calor da cantoria.
— Mas que raios! Era só o que me faltava! — praguejou, secando os olhos ardidos na toalha. — Madalena! Ferve água! O chuveiro queimou e eu estou com a cabeça toda cheia de espuma!
Madalena? Nem estava em casa. Havia saído mais cedo para a escola na tentativa de encontrar Joaquim pelo caminho, indo entregar os jornais na vizinhança. Sem receber resposta e ainda praguejando, Luís Otávio se enrolou na toalha e, meio caolho pois ainda tinha a cabeça ensaboada, rumou até a cozinha. Como ainda era muito cedo, tentou acender a luz do corredor e só então se deu conta de que o problema não era o chuveiro. O dia só melhorava.
Após ferver a água, voltou para o banheiro e finalmente tirou aquela maçaroca dos cabelos e dos olhos. Ao entrar no quarto ainda escuro, porém, tropicou o dedo mindinho na quina da cama. O grito preencheu o ar e assustou os passarinhos das mangueiras no quintal da casa. Para quê existia aquela porcaria de dedo inútil? Só se fosse para ter uma unha estranha e topar nos cantos do mundo!
Estava atrasado. Muito atrasado!
Enquanto Luis Otávio sofria com o dedo mindinho e Madalena suspirava triste por não ter visto Joaquim, Roberto Pimentel fumava de forma tranquila na varanda do salão onde acabara de tomar o café da manhã.
Um ano antes, ele era apenas um investigador alcoólatra (agora reconhecia) às portas da aposentadoria e sem maiores perspectivas. Isto até conhecer sua atual parceira, Cecília Venturini. Vinda de São Paulo e recém-nomeada na primeira turma de mulheres da polícia paulista, ela chegou como um vendaval na pequena e pacata Aurora do Norte. Ninguém na cidade acreditava que um bêbado e uma mulher pudessem resolver o crime e, surpreendendo a todos, foi exatamente isso que a dupla fez. Após atravessar um inferno com a bebida, Roberto conseguira largar o vício que agora substituía por cigarros, chicletes de hortelã e...sorvetes. Não qualquer sorvete, mas sorvete de creme. Era seu preferido.
— Não sei como você gosta disso. Não tem gosto de nada! — dizia Cecília, sempre que frequentavam a sorveteria da cidade.
— O que seria do amarelo se todos gostassem do azul? — era o que ele sempre respondia.
Após a solução do caso, Siqueira, o delegado e seu amigo de muitos anos, o intimara a sair de férias.
— Férias para quê? Para onde eu iria? — indagou Pimentel, sentado na mesa do chefe.
— Porque é seu direito e a corregedoria está pegando no meu pé, Pimentel. Desde quando você não tira uma folga? — Siqueira limpava o suor do rosto avermelhado com o seu lenço habitual.
— Sei lá. — deu de ombros — Acho que desde...
A frase morreu ao lembrar-se da ex-mulher. Não saía de férias desde que ela o havia deixado e levado a filha do casal para morar com outro. O coração pesou no peito, quase deixando-o sem ar.
Relutou, mas um belo dia, ao chegar à delegacia, seus colegas haviam trancado a porta. Bateu, gritou, chamou a atenção de todos ao redor, mas Cecília se limitou a mostrar um cartaz pelo lado de dentro do vidro: "Boas férias! Divirta-se!". Gumercindo, Nelito, Siqueira e ela o observavam do lado de dentro, fazendo gestos para dispensá-lo.
Sem outra saída, Pimentel arrumou uma pequena mala, colocou no carro e saiu sem rumo pelas estradas de chão batido.
Parou em uma cidadezinha não muito longe de Aurora do Norte e lá se instalou na pequena pensão onde desfrutava seu cigarro. O livro, presente de Cecília, descansava no colo, de um tal "José Saramago". Nunca tinha ouvido falar, porém, a parceira lhe dissera ser uma edição portuguesa, sem publicação no Brasil com o estranho nome de "Terra do Pecado". Pimentel alisou a capa ao soltar outra baforada, batendo o cigarro no cinzeiro.
— Pois é, parceiro. Parece que agora somos só você e eu — disse, abrindo o volume na primeira página.
Sem querer, viu-se envolvido pela leitura que só deixou de lado quando sentiu o ciático atacar por ficar horas na mesma posição. Levantou-se e, após guardar o livro em seu quarto, deixou a pensão. Era hora do sorvete!
Com passos lentos, cruzou as ruas de paralelepípedos do centro da cidade, cumprimentando um ou outro habitante que também o cumprimentava. Era um costume do interior.
Tão logo entrou na sorveteria, dirigiu-se ao balcão de vidro onde enormes potes de sorvete, das mais variadas cores, estavam dispostos. Todas as cores, menos uma.
— Bom dia, seu Roberto — saudou a dona da sorveteria, limpando as mãos no pano de prato.
— Bom dia, dona Tereza. — Pimentel não levantou os olhos da vitrine, observando um a um os potes ali dispostos. Não! Não podia ser! Ele poderia estar escondido, certo?
— Huumm...que pena! Hoje o senhor vai ter que escolher outro sabor — disse a mulher — O entregador ainda não veio. Parece que machucou o pé e meu sorvete de creme acabou.
"Naaaaaaaaao!" Um enorme eco se formou na mente do detetive. Como assim não tinha sorvete de creme? Onde estaria o entregador?
— Tem certeza de que ele não vem? — perguntou, tentando disfarçar a decepção.
— Disse que viria mais tarde, só não sei quando. Mas, olhe...temos tantos outros sabores! Chocolate, morango, nata...
Não! Nenhum deles conseguiria satisfazer Pimentel. E agora? Afastou a gola da camisa, afrouxou um pouco a gravata. De repente, a temperatura havia subido.
— Bem, vou esperar então. Quem sabe?
Dona Tereza apenas assentiu e Roberto foi se instalar em um banco, à sombra da árvore da praça em frente à sorveteria. Tirou um chiclete de hortelã do bolso e quando ia colocá-lo na boca, um choramingo vindo de muito perto, lhe interrompeu o movimento.
Ali ao lado, um par de olhos negros e respiração ofegante observavam, não, cobiçavam o chiclete que ele segurava. Roberto levantou, abaixou, levou a mão para um lado, para o outro, fez círculos e os olhos negros continuavam ancorados em seus movimentos.
— Ah, tenha dó! Desde quando cachorros gostam de chiclete?
Já ia colocando na boca quando o animal começou a latir sem parar. Era um vira-lata, de porte médio e pelos negros como a sombra onde estivera deitado, quase passando desapercebido. Estava magro, como Roberto pode observar e a contragosto, diante de tanta insistência por parte do peludo, dividiu o chiclete ao meio. Levou um pedaço à boca e o outro, jogou para o cão que o pegou no ar.
Roberto permaneceu sentado, mascando seu chiclete e ao olhar para o lado, quase caiu do banco.
— Era só o que me faltava! Cachorro mascando chiclete!
E era isso mesmo: o vira-latas estava sentado bem ao lado do banco, mascando a goma assim como o humano. Olhou para Pimentel por breves segundos e voltou a olhar para frente.
Roberto ficou um bom tempo por ali, assim como o cachorro. Assim que viu o carro do entregador de sorvetes, Pimentel levantou-se e jogou seu chiclete numa lata de lixo próxima. Ao virar-se, deparou com o cão...cuspindo também o seu!
— Se estivesse bêbado e visse uma cena dessas, não ia acreditar — resmungou o detetive, passando pelo animal em direção à rua.
Pimentel ajudou o entregador manco a levar os potes de sorvete para dentro e após dona Tereza lhe entregar uma generosa casquinha do seu sorvete preferido de todos os tempos, o detetive fechou os olhos, pronto para dar a primeira mordida.
—Au!
Ouviu uma vez, mas ignorou.
— Au! Au!
Bufou, mas continuou a ignorar.
— Au, Au, Au!!
—Ah, mas o que é dessa vez, cachorro? Vai me dizer que gosta de sorvete também?
\\\\////
— Eu não posso acreditar que estou sentado num banco de praça dividindo sorvete com um cachorro! — bufou o detetive enquanto observava o animal que, ao lado do banco onde ele estava, afundava o focinho no pote de manteiga cheio de sorvete que a dona da sorveteria havia lhe arrumado.
— Parece que ele gosta de você! — dissera dona Tereza ante aos latidos incessantes do cachorro.
— Talvez não seja exatamente de mim — retornara Pimentel, aproximando-se do balcão. — A senhora pode me ver mais uma bola de sorvete?
— De qual sabor?
— Sei lá. Chocolate, morango, qualquer um.
Dona Tereza estranhou, mas fez o que Roberto pediu e lhe entregou uma casquinha de chocolate. O detetive se aproximou do cão e assim que se inclinou, o vira-lata farejou o sorvete de chocolate e virou a cara.
— Como assim? Vai rejeitar meu sorvete??
— Acho que ele prefere o de creme. — Dona Tereza gesticulou com a cabeça na direção da outra casquinha que Pimentel segurava e o cão, agora, lambia generosamente.
— Que nojo!
Não houve outra saída que não comprar outra casquinha de sorvete de creme enquanto o vira-lata também se deliciava. Ao terminar, com o focinho todo manchado, o cão voltou a sentar-se naquela pose altiva de antes.
Pimentel terminou seu sorvete e se levantou, indo em direção à pensão. O cão? Fez o mesmo.
— Pare de me seguir!
O detetive gritou uma vez, fazendo o animal sentar-se e olhar para os lados, encolhendo as orelhas como se não fosse com ele. Pimentel voltou a andar, o cão também. Pimentel gritou, o cão sentou. Pimentel voltou a andar, o cão também e assim por diante até chegarem à pensão onde o animal ficou na porta, olhando o detetive se afastar.
No dia seguinte, lá estava o cachorro, deitado na porta e tão logo o detetive passou por ele, se pôs a segui-lo.
— Parece que ele... — começou a dona da pensão, já no terceiro dia em que isto acontecia.
— Que ele gosta de mim. Tá já sei, mas eu não gosto de você! Vá embora! — Roberto se voltou para o cão que, de novo, o ignorou.
Naquela noite, uma forte tempestade se abateu sobre a cidadezinha e, por algum motivo, Pimentel não conseguia pregar o olho. Virou de um lado, virou do outro e nada! Irritado, foi até a janela e de lá viu, quase passando despercebido na noite alta, o cachorro molhado até os ossos, sentado na porta.
O detetive bufou, voltou para a cama, tomou um copo de água e deitou. De novo, rolou de um lado, de outro e por fim, levantou-se outra vez. Agarrando a maçaneta com força, saiu pisando duro e desceu as escadas. Abriu a porta e viu o pobre coitado do cachorro, encharcado, levantar-se e abanar o rabo.
— Vai. Entra logo — disse de mau-humor.
Mais do que depressa, o vira-lata passou ao seu lado, não sem antes se chacoalhar todo para retirar o excesso de água e molhar quase totalmente o detetive. Pimentel podia jurar que o cão ainda o havia olhado divertido antes de avançar escada acima.
Pimentel foi logo atrás e, pegando duas toalhas, levou o cão para o banheiro. Após ligar o chuveiro, pegou um cigarro do bolso do pijama e o acendeu enquanto o cão o encarava.
— Ah, não! De jeito nenhum vou te dar cigarro! Era só o que me faltava! Vai, entra logo na água. Você está fedendo!
Após lavar o cão e se lavar também, o detetive voltou para o quarto onde encontrou o vira-lata confortavelmente instalado em sua cama.
— Desce agora!
O cão se enfiou embaixo das cobertas, deixando apenas o rabo de fora.
— Pode ir saindo, vira-lata!
Pimentel arrancou as cobertas. O animal permaneceu deitado, olhando-o com ar de piedade. Roberto insistiu mais um pouco e por fim, com sono, acabou se deitando do lado vazio da cama. O tapete negro se arrastou pelo colchão até pousar o focinho no peito do detetive.
Roberto era durão, a vida o tornara assim. A bebida, por muitos anos, fora a companheira, a amante que lhe tirava a alma até não sobrar mais nada, além de pele e osso. Fora assim até a chegada de Cecília, quando redescobriu o valor da amizade dos colegas da delegacia. Esses acontecimentos já o haviam amolecido, pequenas sementes lançadas no solo infértil de seu coração. Agora, era o vira-lata que completava o serviço. Como poderia enxotar uma criatura que só queria sua companhia?
Mirou os olhos pidões do cão e então, lhe fez carinho. Eram sozinhos na vida: ele e o animal. Com um sorriso breve, pegou o livro da cabeceira buscando na leitura uma forma de conciliar o sono.
Abriu-o na página e em seguida, a cabeça negra de seu novo companheiro se assomou entre ele e o livro.
— Vai me dizer que você também lê? — o animal apenas o olhou, com a cabeça pousada perto do ombro de Roberto. — E lê Saramago?
Roberto acariciou o cão que, virando os olhos, quase os fechou.
— Do jeito que está magro, você bem que podia se chamar Saramagro.
O cão levantou-se com as orelhas alertas e começou a lamber o detetive daquela forma que só os cachorros muito felizes são capazes de fazer. O rabo frenético era quase as hélices de um avião.
— Calma! Calma! Assim você vai me derrubar!
Mas Saramagro nem ouvia. Apenas prosseguia em sua felicidade, lambendo seu humano preferido.
E assim, depois de Madalena se apaixonar por Joaquim, deixar de pagar a conta de luz, fazer o pai bater o dedo mindinho na quina da cama e atrasar a entrega do sorvete de creme, Pimentel encontrou um novo parceiro e Saramagro, alguém que gostava de chiclete de hortelã e sorvete de creme.
Tudo em uma reação em cadeia.
* Conto escrito para o embaixador secreto 2019 com alguns elementos que meu amigo gosta: sorvete e cachorros!
Personagens do livro A Árvore dos Frutos Envenados, completo no Wattpad
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