12 - Farpa de espinho
Tem coisas na vida facilmente comparáveis com uma farpa de espinho que entra na pele de um dedo e é difícil de tirar. Evelyn tinha a sua farpa de espinho, entrara em seu coração, cravara-se ali e ela não conseguia tirar, mas sabia que precisava. Contudo tinha medo que ao esquecer, baixa-se as armas. Ter medo às vezes é uma boa arma, aquela que nos impede de termos nossos segredos expostos. Ela fugira, mas será que estava a salvo? A sua reputação estaria a salvo?
Era tão excitante saber tudo sobre toda a gente, era tão excitante fabricar armas com palavras. Palavras conseguiam ser poderosas e Evelyn se deliciava com poder. Aquele era o seu vício secreto.
Ela conhecia Soraia e Sabrina e quando ela olhava Sabrina, não era o nome de Sabrina que lhe queria sair da boca, e sim o nome de Soraia, o que poderia parecer absolutamente natural, sendo elas irmãs gêmeas univitelinas, idênticas. Por isso, nessa manhã, sem sequer imaginar o que havia acontecido no quarto das visitas, Evelyn olhou Sabrina como se quisesse entrar em sua alma e disse, como se não fosse proposital:
— Que tal tomarmos o pequeno-almoço ao pé da piscina, Soraia?
A gêmea, inocentemente, respondeu.
— É, pode ser.
Evelyn a olhou de boca aberta, mas com um brilho no olhar, o brilho de quem acabou de descobrir mais um segredo de alguém.
— Soraia? Tu estás a fazer-te passar pela Sabrina que foi morta? É isso?
A gêmea arregalou os olhos assustada, deu inclusive um passo para trás completamente pega desprevenida, assustada. As suas bochechas ficaram tão vermelhas que parecia que poderia explodir.
— O quê, Evy? Estás doida? Sou a Sabrina.
— Chamei-te de Soraia e tu respondeste-me com a maior naturalidade do mundo. Falas como a Soraia, andas como a Soraia...
— Para, Evelyn. Para já com isso.
— Será o nosso segredo, Soraia.
— Para. Eu não sou a Soraia, apenas estou habituada a que me chamem pelo nome da minha irmã. Somos idênticas, sempre me chamaram pelo nome dela e vice-versa. As pessoas não sabem nos diferenciar. Nem mesmo os nossos pais. A gente desistiu de corrigir as pessoas. Uma hora apenas deixámos que nos chamassem por o nome que quisessem.
Evelyn perscrutou a amiga. Ela tinha a certeza sobre aquilo até há um minuto atrás, mas Soraia, ou Sabrina, parecia tão sincera naquelas palavras.
Talvez a sua desconfiança fosse porque ela iria perceber se Soraia quisesse que pensassem que estava morta, afinal das contas ela sabia o segredo de toda a gente, não é mesmo?
Ou pelo menos era o que ela pensava.
Evelyn sempre pensava muita coisa.
Pobre Evelyn Lins, tão rica, com uma alma tão pobre!
👣👣👣
Havia apenas uma pessoa que sabia sobre o seu vício secreto, a sua farpa de espinho.
Ele tinha descoberto tudo num dia de calor insuportável. A piscina da sua casa em Portugal era o único lugar onde conseguia suportar tamanho calor. Ele estava com ela. Só os dois.
Num momento ele nadava na piscina, com algum medo que o senhor Cônsul aparecesse, no momento a seguir, Evelyn já nem conseguia lembrar porquê, ele estava à frente de seu computador, no seu quarto olhando as pastas com os nomes de alguns alunos da escola.
A única coisa sobre os acontecimentos desse dia que Evelyn conseguira guardar em sua memória com clareza absoluta era o texto estampado no seu ecrã quando ela apareceu por trás de seu namorado.
— O que isto quer dizer? — perguntou ele.
— O que você está fazendo? — perguntou ela de volta, de olhos arregalados.
Para ele, a expressão de Evelyn só confirmou o seu discernimento sobre tudo que tinha visto durante aqueles dez minutos à frente de seu computador.
— O que te interessa a vida da mãe da Jéssica? Se ela está falida ou não?
A expressão dele era algo que se dividia entre confusão, curiosidade e desprezo. Evelyn pôde sentir o desprezo na sua voz, no movimento de seus lábios.
— Calma, eu... — precisava de pensar no que ía dizer, mas sabia que tinha de ser rápida —, só gosto de saber as coisas.
— Eu poderia achar engraçado o fato de seres fofoqueira, mas estou aqui há dez minutos e já vi vários textos, fotos comprometedoras de pelo menos metade do Colégio, professores incluídos. A professora Leonor é filha de um assassino em série como assim? Toda a gente sabe que ela é filha do diretor. Não espera...
O rapaz abanou a cabeça para se focar no essencial, é só que aquela informação em específico o tinha apanhado de surpresa. Tratava-se da sua professora preferida e aquilo era apenas difícil de acreditar, mas não era aquilo que estava em casa naquele momento. O fato era outro e não tinha a ver com a sua professora e sim com a sua namorada.
— Tu és chantagista — lançou como uma chapada na cara de Evelyn. — Porquê? Com que intuito?
— Não, não é isso. Não faço chantagem com ninguém.
— Talvez porque ainda não surgiu a oportunidade, mas estás a guardar isto tudo para quando surgir a ocasião, não é? Admite!
A adolescente quis dizer "não", mas ele iria farejar a mentira ao longe e ela tinha consideração por ele a ponto de não subestimar a sua inteligência. Ele era dos alunos mais espertos do Colégio Lobo de Matos, caso contrário nunca conseguiria andar naquela escola, não pagando as mensalidades de forma integral. Fôra a inteligência dele a qualidade que mais a atraíra e era essa mesma qualidade que fizera o fim daquele breve namoro virar fumaça ao vento.
Depois daquilo os dois passavam lado a lado pelos corredores do colégio sem se falarem e as pessoas acabaram esquecendo que alguma vez aqueles dois adolescentes haviam sido um casal. Ela o olhava com saudade e vergonha, ele a olhava com deceção, e se alguma vez ele nutrira um sentimento por ela, estava claro em seu olhar que não nutria mais. Ela não era a garota fofinha que ele pensava que ela fosse. Ela era uma colecionadora de segredos alheios. Ele desaprovava tudo nela, porém agora, olhando a cidade de Coimbra como se estivesse perdido, como se fosse apenas um turista em seu próprio lar, lembrou de Evelyn, que agora estava lá no Brasil, provavelmente aproveitando o tempo de calor do Rio de Janeiro enquanto comia um açaí. Evelyn viajara no mesmo dia em que Bruna foi encontrada morta.
Rúben abanou a cabeça e falou "covarde" em voz alta, sem nem se aperceber. Uma pessoa que ía a passar ao seu lado o olhou em choque, ofendida. O adolescente nem se apercebeu.
"Será que ela sabe?"
E então percebeu. Finalmente entendeu.
"Ela foi embora para fugir, porque ela sempre sabe de mais. Raios!", deu um chute numa lata à sua frente com tanta força que esta voou, quase atingiu um gato que estava passando por ali.
O gato fugiu e olhou-o como se o quisesse arranhar até à quarta geração.
E eis que atrás de si apareceu a inspetora com um pastor alemão pela coleira.
— Ah, agora entendi porque ele vinha tão inquieto na tua direção — disse a Áurea — És o rapaz que deu o chocolate à filha do promotor público. O Dumas conheceu-te.
O rapaz franziu as sobrancelhas.
Promotor público? Ele nem imaginava que Violeta seria filha de alguém importante. Pensava que ela era como ele, de família humilde, não o bastante para ser considerada de pobre, mas apenas... não rica.
— Sou eu, mas ele deve ter vindo pelo gato que eu quase abati com uma lata de Sprite.
— Inacreditável — Áurea abanou a cabeça — Adolescentes! Até uma próxima, miúdo. Preciso ir e tu comporta-te.
A inspetora afastou-se, mas Dumas, o cão, olhava para Rúben enquanto era puxado para a frente pela coleira.
O rapaz poderia estar louco, mas teve a sensação que aquele cão desconfiava de si, tinha aquele olhar que diz "eu sei o que fizeste o verão passado...".
Apressou o passo e saiu o mais depressa possível de perto da inspetora e do seu cão.
Pensou mil vezes em escrever a Violeta e no que poderia escrever, mas o seu telemóvel desligou-se por falta de bateria, bem no momento em que entrou uma notificação que o deixou impaciente. Ele precisava ler a integralidade daquela mensagem.
Teria de acalmar o seu coração. Só quando chegasse a casa iria poder abrir a mensagem e ler o seu conteúdo. E era melhor apressar-se, caso contrário poderia ser tarde demais.
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