7. Ao Anoitecer
Era impossível achar alguém mais sobrecarregado ou ocupado do que Anahís Rocha naquela delegacia. Seus olhos já não aguentavam mais ler aquelas dezenas de relatórios. Eram tantas tragédias que a mulher se sentia tonta só de lembrar dos inúmeros repórteres lhe rondando, além da cobrança da família das vítimas, tanto as vivas quanto as mortas.
Colocando tudo no papel ela tinha primeiramente: a morte de Hilda Camargo, que claramente foi um assassinato. A questão era achar a motivação de tal. Traçando o perfil da mulher ela não encontrou nada em particular que atrairia algum suspeito. Camargo não tinha nenhuma desavença com alguém da família ou do trabalho, não possuía grandes quantidades de dinheiro na conta bancária, apenas uma poupança singela que teve seu dinheiro retirado no dia em que ela pretendia sair da cidade, como as suas malas evidenciaram.
Outra incógnita era Alice Fernandéz ter achado o corpo. Anahís não era muito fã de coincidências, portanto não tardou esforços para investigar a adolescente. Notas acima da média, além de ter um ótimo relacionamento com os professores. Não se aprofundou mais na vida da garota, pois antes que tivesse a chance recebeu o chamado do ataque da infeliz no clube da cidade, no mesmo dia.
Voltando momentaneamente à professora, exames toxicológicos provaram que a única dependência que ela poderia ter era com cigarros e uns remédios para pressão, o que não caracterizaria um acerto de contas por dever a algum traficante.
Ponto dois: o requinte de crueldade. Não era um simples latrocínio, um simples assassinato feito pelo calor do momento. O maldito estudou e muito para aquele momento específico. E isso deixava a delegada mais nervosa do que tudo. Não estava lidando com uma pessoa inexperiente.
Ao final de tudo, Anahís Rocha tinha apenas uma certeza: Hilda Camargo havia sido assassinada. Um assassinato claramente qualificado.
Deixando os papeis de lado ela respirou fundo, vendo que já haviam passado das nove da noite. Pensando apenas em sua cama, pelo menos por enquanto, a mulher teve seus planos interrompidos quando um de seus subordinados entrou em sua sala.
— Chefe...
— Diga, Afonso. Como sempre você deve estar recheado de notícias boas.
O homem não se abateu pelo comentário, estando acostumado com o gênio estressado da mulher. Encostou a porta e se aproximou da mesa. O local era singelo, tendo apenas um ar-condicionado na porta, de um modelo antigo, uma mesa do outro lado da sala, na qual uma janela com uma cortina ficava por detrás. Era uma sala minúscula, reservada apenas para a delegada tomar as decisões e formular teorias sobre seus casos.
— Sheila e Karina Cavalcante querem conversar com a senhora.
— Mande-as virem aqui — ordenou, sem tirar os olhos da papelada, que ansiava em guardar dentro de uma pasta.
— Aqui na sua sala pessoal?
Anahís bufou, dando uma olhada para Afonso que o fez tremer por completo. O homem respirou fundo, preparando-se para a afronta iminente.
— Você é surdo, Afonso?! Se for te passo como funcionário PCD, porque sinceramente viu. Se eu disse aqui! É aqui!
— Si-sim senhora.
Anahís pegou seu telefone fixo. Discou o ramal da recepção, aguardando na linha alguns segundos.
— Pronto! — disse uma voz feminina.
— Elisa, faça uma coisa que preste na sua miserável vida e acompanhe as irmãs amaldiçoadas até minha sala. Peça para o policial Andrade vir junto, minha mente tá um caco pra outro problema! — Desligou o telefone antes que a recepcionista tivesse a chance de responder.
Alguns minutos depois o policial e as duas irmãs adentraram na sala. O local era minúsculo, mas grande o suficiente para caberem os três. Karina e Sheila sentaram-se em duas cadeiras dispostas na frente da mesa marrom da delegada. O policial achou melhor permanecer de pé, ao lado de Anahís. Sempre era chamado quando a delegada estava desgastada para conduzir alguma situação, sendo sempre um amparo e uma mente limpa para auxiliá-la. Ele acenou para Sheila, como que para tranquilizá-la.
— Estou ouvindo. — Bufou.
— Delegada, minha irmã tem algumas coisas para falar — disse Sheila, dando a vez para Karina. A adolescente gelou, achando que a irmã falaria toda a teoria que conversaram durante o jantar, incluindo sobre a ligação do assassino. Aparentemente nem Sheila era corajosa o suficiente para peitar a delegada com uma dedução terrível, dada sua expressão robótica e travada.
— Ok, deixa comigo. — Respirou fundo, tentando se concentrar. Não deixaria um mísero detalhe passar. Seu maior desejo era aquilo acabar e o culpado ser pego. Outra morte, fosse quem quer que fosse, seria o ápice para sua mente. — Acho que as mortes da Hilda, do Eduardo e a tentativa de matar eu e Alice estão ligadas. Pronto, falei!
Proferiu as palavras tão rápido que perdeu o fôlego. Ainda tinha dificuldade em respirar, e o nervosismo não colaborou. Anahís não demonstrou nenhuma emoção, enquanto o policial ficou aparentemente chocado.
— Isso é uma acusação séria, mocinha.
— Não é acusação, dona... Perdão, delegada! O maldito ligou praticamente confirmando! Você precisa acreditar... — Karina tossiu, determinada a completar sua linha de raciocínio. — A Meghan e o Bruno também receberam a mesma ligação. E logo depois acharam a cabeça do vice-diretor, sabe né, sem o corpo.
— É claro que eu sei, querida. — Anahís falou, mesmo que sem paciência. — Mas é apenas uma ligação. Não há provas contundentes.
— Delegada — Sheila tomou a dianteira. — Um dos amigos dela disse que houve uma ligação praticamente confirmando o paradeiro da cabeça do Eduardo! E no jantar hoje, em outra ligação, o desgraçado afirmou ter envolvimento no ataque do clube. Frisou muito bem que aquilo era o começo, e que deveríamos tomar cuidado!
— Aí temos um ponto! Preciso dos nomes de quem recebeu essa ligação... — retirou um bloco de notas de uma gaveta. Anahís sabia sobre as ligações feitas antes de encontrarem a cabeça decapitada de Eduardo, mas se interessou pela segunda chamada, onde o suposto assassino confirmava alguns pontos.
— Bruno Albuquerque, Margharet Duarte e Alice Fernandéz. São os que temos conhecimento.
— Amanhã ligarei para os responsáveis e teremos um bate papo. Até lá mantenham isso entre vocês, já tenho mídia suficiente em cima de mim. Além de que você e a senhorinha pediram sigilo sobre as garotas, então entende o meu lado.
— Claro que sim — respondeu Sheila.
— Até lá essa teoria não se dará como verdadeira. Estamos analisando as imagens de vídeo do clube e a autópsia da cabeça do corpo do diretor.
— Nada do corpo?
A delegada acenou negativamente para a irmã mais velha. Imaginou os maiores veículos de televisão a pressionando, caso a história de um suposto serial killer caísse sobre Campos de Cordeiros, uma cidade tão pacata. Seu pior pesadelo, sem sombras de dúvida. O prefeito não ficaria nada contente, logo seus pagamentos "extras" seriam cortados, além da possibilidade de seus podres pessoais virem à tona. Anahís Rocha se encontrava numa corda bamba, entre abraçar de vez aquela teoria maluca, ou fugir do assunto e achar uma explicação plausível para cada um dos casos, de modo que nenhum se interligasse.
[...]
Fabrícia Amaral encarou a casa de Frank Santiago com certo receio. Sua mãe não estava em casa e o garoto gentilmente a convidou para passar a noite ali. Não queria ficar sozinha e por coincidência ele também ficaria sozinho.
Adentrou o portão para o singelo local. O quintal possuía uma rampa de um lado com uma vaga para a garagem. Do outro, uma churrasqueira e algumas cadeiras dispostas próximas da entrada indicavam que uma festa aconteceu em algum momento daquele dia.
Segurando a alça da bolsa ela apertou a campainha. Olhou de relance para trás, já que a sensação de estar sendo observada ainda era constante. Não conseguia esquecer a cabeça de Eduardo. Pelo menos teria companhia para dormir. Ventava bastante, como se fosse chover, mesmo sem uma única nuvem no céu.
— Frank! Sou eu! Atende esse caralho logo, tô morrendo de frio!
Se mostrando impaciente, Fabrícia decidiu forçar a porta, se surpreendendo ao vê-la destrancada. Entrou, sentindo o conforto do quentinho do interior da casa. Pegou o celular, vendo se havia alguma mensagem. Pensou em gritar por ele, mas decidiu ir até seu quarto. A casa num silêncio tão absoluto que por um momento ela pensou se o assassino não poderia estar ali, mas a vizinhança estava quieta, e se houvesse qualquer tipo de ataque estaria todo mundo para fora.
Passou pelo corredor da casa, mirando o quarto de Frank. Ao encostar a porta, sentiu alguém a abraçar por trás, envolvendo todo seu corpo. Ela se sentiu arrepiada e um sorriso surgiu em seu rosto.
— Nossa Frank, pensei que você não fosse a fim de mim, mas bem que suspeitei quando você me chamou do nada... — disse, sentindo-se eufórica pelo toque enluvado por todo seu corpo.
Foi conduzida até a cama, onde rapidamente se deitou, sentindo o amigo subir por cima de seu corpo, ainda de roupa. Quando ela ergueu seu tronco para envolver seus lábios no dele, a mão enluvada delicadamente voltou sua cabeça até o travesseiro na cama de solteiro, com a outra passando por todo o seu corpo.
A adolescente sentia-se nas nuvens, quando um toque estranho foi sentido em sua barriga, algo pontiagudo deslizando suavemente de seus seios até o umbigo.
— Frank, que merda é essa?! — afastou as mãos, e ainda deitada, ligou o abajur no criado mudo ao lado da cama, dando um clarão no ambiente.
Quando se deu conta, o relato de Karina e Alice contado durante o jantar veio rapidamente de encontro em sua mente, pois ali, a mesmíssima máscara e chapéu se mostrava presente, em seus mais macabros detalhes, preparado para dar um golpe fatal com uma faca de cozinha.
— MEU DEUS! — gritou, percebendo o perigo que corria. A faca instantaneamente desceu, mas Fabrícia foi mais rápida, agarrando o pulso do mascarado, tendo tempo de desviar a cabeça, antes que fosse vencida pela força. A faca completou o percurso, acertando o travesseiro, ainda com ela segurando o braço do maníaco. Foi erguida novamente em seguida, no intuito de uma nova tentativa.
— SAÍ DE CIMA, SEU DESGRAÇADO!
Com toda a força possível, Fabrícia empurrou o tronco do assassino, que cambaleou para o lado, com a faca ainda em mãos. Sem perder tempo, saiu em disparada, pisando no maníaco que permanecia no chão.
— Ai meu Deus, ai meu Deus... FRANK, CADÊ VOCÊ?
Avançou pelo corredor, virando na cozinha com toda a destreza que pôde. O primeiro reflexo foi tirar uma faca de uma das gavetas do gabinete. Ela se virou a tempo de ver o assassino saltar por cima da mesa e tentar cair em cima dela.
Rápida, Fabrícia deu meia-volta pela mesa, enquanto via o mascarado se estatelar no chão. Chegou a sala, com o celular pronto para ligar para a polícia, a outra segurando a faca de cozinha.
— NÃO!
Ouviu a voz de Frank, da cozinha. Com os olhos marejados ela voltou ao cômodo, imaginando ver o amigo na pior.
— TÔ CHEGANDO FRANK... — ao adentrar na cozinha deu com o corpo do assassino. Ele caiu no chão, a máscara retumbando no piso.
Fabrícia ficou incrédula com o que viu. Ficou estática no chão, como se fosse um absurdo tão grande que só podia ser uma brincadeira.
— O que foi Fabrícia? — Frank Santiago riu, encarando ela com os olhos arregalados. — Não quer me sentir dentro de você?
— MEU DEUS! POR QUE?
— Por que você é uma... — ele apontou o dedo na direção da adolescente, e se surpreendeu ao ver a faca que ela segurava descer bem em seu ombro esquerdo. Frank gritou de dor, caindo de costas na mesa. Fabrícia empenhou mais força, sentindo o osso dele.
— SUA PIRANHA — ele a empurrou. — AS DUAS VADIAS ESCAPARAM, MAS VOCÊ VAI SER MINHA, NÃO VOU FALHAR DESSA VEZ!
Fabrícia começou a se arrastar no corredor, o coração acelerado. Ela não conseguia falar. A visão de Frank tirando a faca do ombro e jogando no chão ficaria em sua mente por um bom tempo. Era como se ele sequer sentisse dor.
— Hora de sentir um pouco de dor — com o braço do ombro bom ele ergueu a faca.
— Não sem lutar! — ela desferiu um golpe no tornozelo dele, com tanta força que o adolescente caiu no chão. Fabrícia deu meia-volta, e quando estava perto da porta, sentiu um baque contra sua costa. Um som ensurdecedor, e só se deu conta da situação quando ao cair no chão, olhou para trás.
Um segundo assassino com uma escopeta. Ela teve a visão de quando ele foi até o corredor e executou mais dois disparos. Fabrícia ouviu Frank gritar pedindo clemência, e sem entender, fez o que achou mais sensato.
Fechou os olhos. E mesmo com a dor lacerante, tentou ficar imóvel. Sentiu a presença do segundo mascarado atrás de si. Uma lágrima escorreu ao ouvir a escopeta ser carregada.
Um último disparo foi feito.
[...]
Alice Fernandèz estava deitada, inerte em seus pensamentos. Havia lutado pela própria vida, escapado por pouco, agora carregando cicatrizes físicas e emocionais que carregaria para o resto da vida. Mais cedo, havia decidido, juntamente com sua avó, não contar para seus pais o ocorrido até que eles voltassem para o Brasil. No fundo, mais do que tudo, a ideia de ter eles por perto era bem tentador, mas colocá-los naquela linha de fogo era egoísmo, e Alice sabia que se dependesse de seu pai, em menos de vinte e quatro horas ela já estaria num avião indo para Reims. Sempre esteve mais próxima dele. O homem era seu maior fã, como o próprio sempre fazia questão de falar. Nunca havia perdido um torneio de karatê da garota, sempre acompanhava ela em suas viagens malucas além de sempre adorar todas as suas divas pop. Vanessa, em contrapartida, sempre foi mais distante. O trabalho era sua prioridade, acima de sua filha e de seu casamento. Alice nunca ligou, já que o aconchego de seu pai era o suficiente, e justamente pensando nele, ela decidiu enfrentar aquilo sozinha.
Ao seu lado, Karina dormia calmamente. Os cabelos castanhos caiam sobre seu rosto, escondendo o terror que havia passado. Bruno estava deitado no outro colchão, ao lado do de Karina. Olhava algo em seu celular, parecendo distante, provavelmente tentando esquecer da imagem da cabeça decapitada de Eduardo Silva. Seus olhos estavam inchados, cabisbaixos.
— E aí, tá melhor? — perguntou, se levantando do sofá. Deitou-se ao lado do amigo, fazendo-o se afastar um pouco para o lado.
— Melhor que você, com toda a certeza. — disse, sem tirar os olhos do telefone.
Alice virou para o lado, o encarando.
— Eu sei que toda essa merda atingiu a gente do nada, mas acho que agora é o momento certo pra gente falar disso. — Apontou para a atadura no pulso do adolescente. — E ainda temos bastante tempo antes dos seus pais virem te buscar.
Olhando de relance para o teto, Bruno suspirou. Aquele momento era inevitável, e saberia que Alice seria a última pessoa que o julgaria por fazer aquilo.
— Isso foi um erro. Eu nem sei o que eu tava pensando, Alice. — Quando as lágrimas começaram a se acumular nos olhos, o adolescente colocou a palma das mãos no rosto. Nunca se sentiu tão envergonhado. A amiga quase foi morta e estava ali, dando consolo para algo que ele mesmo fora responsável.
— Ei, nem todo mundo é forte. E você pode se abrir conosco, sabe disso.
— Não tô pronto pra falar ainda. Além de que, temos um assassino atrás da gente, caso tenha esquecido.
Alice concordou, dando espaço para Bruno se abrir apenas quando se sentisse em paz para tal. Ela se aproximou do amigo, ficando de joelhos ao lado dele.
— Vamos ficar bem. — Segurou sua mão, tomando cuidado com os curativos. — Na próxima vez que eu ver aquele desgraçado vou garantir que ele não saia com vida. E então tudo vai acabar.
— Espero que sim. Não tenho dom pra lutar.
— Ainda tá de pé o convite pra você vir conhecer o Dojo.
— Estou reconsiderando isso. — Riu, se perdendo momentaneamente nos olhos azuis da amiga. — Vamos comer algo? Tô varado de fome.
— Achei que não fosse perguntar. — respondeu, já se levantando. — Vou só ligar pra vó pela milésima vez e... — Parou, estática ao ver seu celular vibrando no assento do sofá. Uma onda de terror veio novamente, ao ver que era um número privado ligando.
— O que foi? — perguntou Bruno, ao ver a amiga parar bruscamente seu percurso.
— Acorda a Karina. O assassino tá me ligando.
— Puta que pariu!
Enquanto o amigo ia na direção oposta, Alice não pensou duas vezes ao atender o telefone.
— O que você quer, seu desgraçado?!
— Olá, Alice. Por que está tão irritada?
— E você pergunta?! Não basta a sua ligação barata mais cedo? Ou já tá pronto pro segundo round?
— Ai droga, não me diz que é ele? — perguntou Karina, meio sonolenta, se aproximando, com Bruno ao seu lado, tão tenso quanto ela.
Alice acenou positivamente. Karina colocou a mão na boca, instantaneamente indo para trás, aterrorizada.
— Oh Alice, você claramente nunca viu filmes de terror. Não dá para matar os protagonistas primeiro.
— E quem seriam eles? Eu e Karina claramente não somos, pelo jeito!
— Karina não, você sim!
— O que te faz pensar que eu sou protagonista desse seu jogo de merda?!
— Você é destemida, ama seus amigos mais do que tudo, claramente o elo mais forte do quarteto. Não hesitou duas vezes em se lançar no campo minado.
— Vai se foder! Não vou entrar nesse seu jogo doentio! A polícia logo vai te pegar! Nenhum crime é perfeito!
— Aí é que se engana, Alice. Tudo está apenas começando! Mas acho que está na hora de ter mais cortes no elenco. Boa sorte tentando salvar todo mundo, vai precisar.
Bruno e Karina estavam em choque, observando a amiga discutir com o assassino, sem medir esforços para peitar o maníaco. A região do pescoço da garota encontrava-se avermelhada, o mesmo em parte de seu rosto. Sem sombra de dúvidas estava furiosa, mas ao mesmo tempo com medo, pois seu olhar para seus amigos não era tão confiante quanto suas palavras para o assassino.
— Você não vai vencer! O vilão sempre perde!
Desligou o telefone. Sentia-se ofegante, precisando encostar-se na parede. Seus amigos vieram em seu apoio, levando-a até o sofá.
— E agora? — Perguntou Karina, atônita. Não havia entendido muito da conversa, mas o simples fato de uma ligação do maníaco fazia seu corpo gelar. — Chamamos a polícia?
— Pra te ignorarem que nem hoje? — respondeu Bruno. — Vamos ter que dar o nosso jeito, enfrentar esse louco da nossa maneira.
— Você tá certo Bruno. Vou ensinar alguns golpes básicos de autodefesa para vocês. Por precaução.
Karina, vendo o direcionamento da conversa, não pôde conter o pânico. Não estava preparada para o fato de ter que encarar aquela máscara novamente, sequer lutar contra aquilo. Não era corajosa o suficiente para tal.
— Alice, não! Não vamos ter a mínima chance contra ele de novo! — começou a soluçar, sentindo a garganta áspera ainda. — Quer dizer, você sim, mas eu nunca vou sair viva de um combate sozinha! Meu Deus, eu vou morrer...
— Karina, me escuta! — disse Alice, segurando em seus ombros. — Ninguém vai morrer! Só precisamos ficar juntos. Eu e você sobrevivemos porque trabalhamos juntas!
— Eu tô com medo, eu... Eu não consigo lidar com isso, desculpa!
Karina saiu correndo para o seu quarto, deixando Bruno e Alice sozinhos.
— Ela surtou. — Confirmou Bruno.
— Vamos lá falar com ela. — Virou-se para o amigo, que estava tão apavorado quanto as duas juntas. Se mais cedo ele achou que tudo não era tão sério quanto parecia, agora a situação já era outra.
— Ok. Antes que a irmã dela perceba.
— Certo... Depois vamos ligar pra Meghan, e traçar um plano para nos proteger.
— E os outros alvos?
Alice permaneceu pensativa. Não havia pensado naquilo. Se o assassino havia premeditado os assassinatos, então havia um grupo específico que já era um alvo, incluindo Karina, pelo que ouvira na ligação.
— Hilda e Eduardo eram da escola. Assim como Karina.
— A Karina é um alvo?
— Foi o que o assassino disse. Eu sou agora também... Pega aquele caderninho ali. — Apontou para a bancada que separava a sala da cozinha.
— Aqui — deu a agenda que já tinha uma caneta preta no meio.
— Vamos por partes... Temos Hilda e Eduardo. Ambos trabalhavam na nossa escola.
— Karina é de lá também. Temos uma ligação.
Alice encarou a singela anotação, até que se lembrou de uma fala do assassino na ligação do jantar. Estralou os dedos, completando as anotações.
— Descobriu algo?
— Mona, escuta só. É apenas uma teoria... — Alice respirou fundo. — O assassino disse que eu não era, tipo, um alvo.
— É, ele disse isso mesmo.
— Eu entrei no caminho dele quando salvei a Karina. Estando no momento em que ela quase morreu.
Bruno assimilou a informação.
— E se ele resolver matar quem presencie eles? Quer dizer... Alguém que literalmente cruze o caminho dele.
— Assim que ele escolhe os alvos. Alvos adicionais no caso. Por mais que ele tenha me dado a opção de sair fora dessa.
— Isso se chama modus operandi. — disse Karina, aparecendo no batente da porta do corredor. Estava com os olhos vermelhos, mas aparentemente mais calma. — É o modo que o assassino age. Se ele for um serial killer, vai manter um padrão nas mortes ou na escolha dos alvos. Ou nos dois, sei lá...
Alice sabia dos conhecimentos da amiga a respeito de crimes, já que era uma paixão pessoal. Ficou aliviada em tê-la na conversa, pois além da dificuldade, sentia-se horrível em pensar que mais pessoas iriam morrer, e não estava nem um pouco a fim de deduzir aquilo sozinha.
— Além de mim, quem mais pode ser um alvo do assassino?
— Eu. — disse Bruno, estático. — Eu recebi uma ligação, presenciei a cabeça do Eduardo rolar no chão da quadra... E a Meghan! — gritou a última parte, ao lembrar-se da amiga também sendo agraciada com uma ligação macabra do assassino. — Meu Deus...
— E se quem tiver visto isso também ter se tornado um alvo? — completou Karina. — Raquel, Otávio, Frank e Fabrícia?
Alice anotou cada palavra dos amigos no papel, sem ter uma conclusão clara. Isso a atormentava.
— Precisamos de mais coisa gente. Isso não quer dizer nada! — disse Bruno, aflito.
— As mortes não têm um padrão aparente. Eduardo foi decapitado, e Hilda empalada. Eu ia morrer esfaqueada por aquela faquinha tosca do mascarado, e você Karina, estrangulada. Nada faz sentido.
— Quem disse que o Eduardo morreu decapitado e não sabemos se a Hilda foi morta com a facada no pescoço mesmo — disse Karina, despretensiosamente. Ainda estava no processo de aceitar que era um alvo de um assassino, sentindo um arrepio cada vez que o pensamento vinha. — Às vezes o doido fez isso pra mascarar o modus operandi dele. Pelo menos por enquanto. E eu poderia ter sido finalizada de outra maneira, assim como você. A ocasião faz o ladrão.
Bruno ficou boquiaberto, espantado com a linha de raciocínio de Karina. E se ela não tivesse sido atacada, ele com certeza a teria com uma possível suspeita. Claro que repudiou a ideia em seguida. Karina era o tipo de pessoa que quando via um inseto, pedia para ele ir embora em vez de matá-lo.
— O que fazemos agora? — perguntou o adolescente.
— Esperar, nos proteger, e avisar quem a gente pensar que possa estar em perigo. — Concluiu Karina.
Bruno não estava preparado para enfrentar um serial killer. Era tão frágil que um tapa o derrubaria. Sua vontade era de sumir da cidade, mas não era covarde. Esperava não encontrar o mascarado cara a cara, mas o pensamento não saía da sua cabeça. Uma hora ele cometeria algum deslize, e sua sentença de morte estaria feita. Olhando seu pulso, sentiu ainda mais nojo de si. Havia tido uma segunda chance de viver, tal chance que Hilda e Eduardo jamais poderiam ter.
[...]
Olhando para a estática da televisão há tanto tempo que não tinha noção da hora, Paula Barbosa encontrava-se anestesiada demais para concluir a leitura de um de seus livros favoritos, que sabe Deus quanto tempo permanecia em sua mesinha de cabeceira. Às vezes a mulher virava-se, observando seu exemplar de "A Menina que Roubava Livros" com a marca página saltando de uma das inúmeras páginas do best-seller.
Eduarda e Roberto ainda não haviam chegado, o que deixava a mulher assustada e encolhida em suas cobertas, rezando para não ser a próxima a estampar os noticiários locais. Saber da morte de Eduardo Silva foi o ápice. A notícia se alastrou rapidamente, sendo até uma das pautas do Jornal Nacional. Campos de Cordeiros era notícia no Brasil todo, e Paula sabia que uma hora ou outra, os pontos se ligariam e o assassino teria pressa em finalizar aquele pequeno grupo de pessoas.
Uma tempestade nebulosa e densa estava a caminho da vida calma de Paula, e olhando a história que dividia com os falecidos, podia sentir o aperto do caixão, pois cedo ou tarde, o passado viria a fazer seus acertos.
Levantando-se de sua cama, ela caminhou até seu guarda-roupa. De dentro retirou uma câmera, um modelo até que antigo, mas que funcionaria para o que seria feito em seguida.
Colocando-a de pé em um banquinho, virado para ela, Barbosa respirou fundo, apertando suas mãos em seu colo. Olhou para trás, observando seu antigo diário, daquela maldita época. Botar todos os sentimentos sobre aquela véspera de Natal em um papel foi uma ideia que ajudou a curto prazo. Agora, com a morte misteriosa de três elos das testemunhas do horror que se prosseguiu naquela noite, Paula sabia que a verdade uma hora viria à tona. Contar para seus sobrinhos estava fora de questão, então sem opção deixaria aquele vídeo gravado, na pior das hipóteses.
Apertando o botão de "gravar", Paula manteve-se quieta por alguns segundos, pensando no melhor jeito de começar a falar.
— Eduarda, Roberto, meus queridos sobrinhos que eu respeitei e amei por toda minha vida...
Foi interrompida, pois seu celular, que encontrava-se carregando, disparava, naquele ambiente silencioso. Paula se levantou, rapidamente indo de encontro ao aparelho. O visor exibia em seus caracteres vívidos, "número privado". Sentindo o coração apertar ela retirou o telefone do carregador.
— Deus é meu bom pastor e nada me faltará! — disse antes de atender. — A-alô?
— Olá, Paula. Bela noite, não acha?
A mulher gelou, engolindo em seco, antes de responder:
— Quem é?
— Oh, Paula, sempre as mesmas perguntas. O que acha de eu encravar essas palavras em sua lápide? Acharia poético.
— O que você quer?! Me responda!
— Acho que você sabe aonde eu quero chegar, Paula. Sabe o que está vindo. Você, mais do que ninguém, é a culpada disso acontecer. Você e o desgraçado do Fábio Duarte!
— Não se atreva...
— Estou mentindo? — Perguntou a voz robotizada, rindo em seguida.
— Oh meu Deus... Você sabe? Mas como?
— Pense Paula, e depois me responda.
— Você matou Roger, Hilda e Eduardo?
— Será que matei?
— O que pretende agora?
— Não sei, você e Fábio... Não irão morrer agora, se é que me entende. — Paula se sentiu aliviada. — Mas receio que hoje tenha sido uma péssima noite para seus sobrinhos estarem fora de casa, sozinhos e vulneráveis.
— Não... Eles não têm nada a ver com isso! — suplicou, apavorada.
— E por acaso eu ligo, sua vadia?! Quero ver você enlouquecer, definhar no sofrimento antes de finalizar você. E Paula, quando esse momento chegar, você irá suplicar pela sua morte.
— Você não terá coragem...
— Duvide e verá. — Debochou a voz do outro lado da linha. — Aliás, adorei a matéria do blog de sua sobrinha. A garota tem talento, pena que não viverá tanto, mas garanto que a morte dela sairá na primeira página, mesmo após mais dois irem pra vala hoje. Até mais, Paula Barbosa.
Paula foi agraciada com a chamada sendo encerrada. Tremendo, ela voltou à posição original. Rapidamente mandou duas mensagens para os sobrinhos, rezando para o pior não ter acontecido com eles. Ir atrás deles, naquela hora ainda, seria inútil. Ligar para a polícia ainda era uma incógnita. O que diria? Contaria a verdade? Sabia que não poderia contar tudo, mesmo sendo o correto. A história seria um bom ponto de partida, mas traria diversos contratempos.
Por hora, Paula encarou a câmera, que ainda estava gravando. Suspirando, prosseguiu:
— Tudo começou na véspera de Natal de 1996...
[...]
Sozinhos, Sheila e Augusto estavam abrindo a segunda garrafa de vinho daquela noite. Aproveitando a companhia de Alice e Bruno para sua irmã mais nova, a advogada debulhava as preocupações naquele líquido roxo doce, em companhia de seu amigo na casa em frente a sua. Logo voltaria para sua residência, e estava constantemente em contato com a adolescente, caso o maníaco resolvesse aparecer de surpresa.
Sheila era um tanto diferente de Karina. Era um pouco mais alta e o rosto era bem mais fino e esguio. Seus cabelos eram lisos e castanhos escuros, indo até o ombro num corte repicado, com pontas loiras, que já se encontravam desbotadas.
Virando o que sobrava na taça, tornou a encarar Augusto. O rapaz era incrivelmente atrativo. Era musculoso, mas sem ser exagerado. Tinha diversas tatuagens em seus braços e uma sobrancelha grossa que combinava muito com a barba espessa.
— O que vai fazer agora? — perguntou Augusto, preenchendo o copo vazio da mulher. Já estava um pouco zonzo, tendo que se apoiar no muro de seu quintal para não cair.
— Sinceramente, eu não sei. Iria me mudar para Minas, na casa dos meus avós paternos, isso antes dessa loucura. Estava sendo impossível pagar as contas, sabe... Mesmo a Karina sendo bolsista na escola e a casa sendo nossa, só o meu salário de estagiária quase me fez ter que vender minha moto.
— E por que continuaram?
— Cintia. — respondeu, sentindo um alívio preencher seu corpo ao lembrar-se dela. — Ela praticamente tá pagando tudo.
— E quem faz isso hoje em dia?
— Me perguntei o mesmo, mas aparentemente ela gostava demais do meu pai. Pagou o velório, o caixão, o lote do cemitério...
Ao ver Sheila começar a parecer que iria cair em lágrimas, Augusto a abraçou, passando seu braço em seus ombros e levando-a até seu peito. Na ação, ela derrubou boa parte do vinho na camisa branca dele, mas manteve-se na posição.
— Deus colocou essa mulher na sua vida por um motivo, Sheila.
— Sim, mas agora já não sei se vale a pena continuar aqui. Eu tô apavorada, Augusto.
Ele levou o rosto da mulher em sua direção. Sheila praticamente se hipnotizou no olhar profundo de Augusto.
— Relaxa, não vai acontecer nada com vocês! Tem a minha palavra! — sorriu de lado, entrelaçando sua mão na dela.
— Obrigada. — respondeu, tímida. Nunca, em um milhão de anos, pensou que um cara como Augusto iria reparar nela ou seria tão carinhoso. Instantaneamente se esqueceu de todos os problemas, se perdendo no sorriso contido do rapaz.
Em vez de responder com um "de nada", Augusto lançou a taça de vinho no chão, usando a outra mão para puxar Sheila em um longo beijo. A mulher derramou sua taça também, envolvendo seus braços no rapaz. Sentia cada músculo e parte de seu corpo contra o dela. Augusto acabou não percebendo o celular vibrando em cima do muro, até que foi possível ouvir o impacto do aparelho no chão.
— Merda, eu nem terminei de pagar ele ainda. — Augusto riu, não dando real importância para o aparelho. Estava bêbado demais para raciocinar, entretanto ao olhar melhor a tela já trincada, sentiu a alma sair do corpo ao ver que a ligação não era de ninguém conhecido.
— Sheila... — mostrou a tela para a mulher, que sentiu a sobriedade voltar ao corpo. — Acho que deu merda.
— Atende...
Sem opção, o rapaz desligou o dedo na tela rachada, levando o telefone ao ouvido:
— Alô?
— Estou atrapalhando?
— Seja direto! Não tenho tempo pra joguinhos! — respondeu, se atrapalhando para proferir as palavras.
— Quanta valentia, Augusto. Péssimo momento para beijar Sheila, péssimo. Sabe o que eu acho sobre pessoas que cruzam o meu caminho ou os das minhas vítimas, né?
— Eu acabei de virar um alvo então? — já sentia a boca seca. O suor se fez mais presente, molhando toda a região do pescoço do rapaz, que mesmo não demonstrando, sentia medo.
— Bravo! Pode se considerar honrado! Mas não fique tão animado, quero um pouco de romance, antes de eu estripar você por completo.
Sheila observava a conversa, aflita.
— Ele tá vendo a gente. — Sussurrou para Sheila, bloqueando o auto falante do celular.
— Merda! — virou-se para a rua. Nada estava fora do comum, além dos postes de luz e das casas apagadas. — A Karina! Preciso ver se ela tá bem!
Augusto sinalizou para ela esperar. Segurou a mão trêmula da garota.
— O que você quer?
— Apenas provocar um pouco de medo, querido. Sabe, assim como fiz com Hilda, com Eduardo. E hoje digamos que mais três personagens foram agraciados com isso. — O maníaco ria, como se exibisse uma estante de prêmios com suas vítimas.
— Você é louco!
— Até mais, Augusto. — Sussurrou a voz. — Ah, e seja bem-vindo ao segundo ato! Hora de a verdadeira carnificina começar
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