Capítulo 17
Depois de quase um minuto sentada na cama, assustada, convenci-me a deitar e tentar dormir outra vez. Enzo acariciou meus cabelos, tentando me acalmar, e me abraçou, aconchegando-me em seu peito.
Talvez eu estivesse sugestionada; vi o rosto dele no meu sonho porque estou passando tempo demais com esse homem. Além do mais, embora se repetisse com muita frequência, era só um sonho, que podia ter se completado com o rosto de qualquer um; eu vi o rosto de Enzo, mas, do mesmo modo, eu podia perfeitamente ter sonhado com o Felipe, ou com qualquer dos meus colegas da faculdade, ou com o Caio Castro. Talvez, se eu não tivesse sido sequestrada, ou não estivesse passando tanto tempo com Enzo, um dia, quem sabe, eu não veria mesmo o rosto do Caio Castro no final desse sonho.
De repente me dei conta de como estávamos aconchegados na cama, e recuei, sentando-me novamente. Enzo também se levantou, com um ponto de interrogação no rosto, que logo pareceu se esclarecer por si só.
– Desculpe – sussurrou ele, percebendo que eu fugira de seus braços.
E voltou a se deitar na beirada oposta da cama, mantendo distância de mim. Recuei também para a minha beirada e tornei a me deitar, virando apenas o rosto para o outro lado, sentindo-me agora mais desconfortável do que antes por estar dividindo a cama com ele.
Não sei quanto tempo levei para voltar a dormir; provavelmente muito menos tempo do que seria natural para a situação. E o desconforto somente retornou quando despertei e percebi que estava novamente aconchegada ao peito do meu sequestrador. Eu tinha certeza de ter me deitado a uma boa distância de Enzo, mas em algum momento naquela noite, rolei para junto dele, e ele, consciente ou não, recebeu-me de braços abertos e me aconchegou. E o mais embaraçoso de tudo era que o dorso dele ainda estava nu, de modo que minha mão estava displicentemente apoiada em sua pele.
Afastei-me com cuidado, para não acordá-lo e me levantei. Ele permanecia na beirada da cama, exatamente onde havia se deitado na noite anterior, e não parecia ter movido nem um fio de cabelo sequer a noite toda. Gostaria de poder dizer o mesmo a meu respeito.
Fui até o banheiro escovar os dentes, e quando voltei para o quarto, Enzo estava sentado na cama, ligeiramente de costas para mim, aparentemente penteando os cabelos com os dedos. Ele era uma figura deslumbrante mesmo pela manhã, com aquela bandagem no ombro e os cabelos em completa desordem. Perdi ali alguns segundos a admirá-lo, quase sem me dar conta do quanto aquilo era inapropriado.
– Bom dia – eu disse, ainda parada perto da porta do banheiro.
Enzo se virou para mim, e respondeu com um sorriso.
– Faz tempo que está acordada?
– Não muito – respondi.
Ele se levantou, e apertou o ombro ferido com a outra mão. Era visível que tinha amanhecido com dor.
– Deixe-me dar uma olhada no seu ombro e trocar o curativo? – eu disse, aproximando-me da cama, e fazendo-o sentar-se outra vez.
– Eu queria tomar um banho primeiro – disse Enzo, puxando o esparadrapo.
O corte havia sangrado um pouco durante a noite, mas não parecia inflamado. Apesar disso, eu ainda gostaria que ele tivesse sido examinado por um médico.
É impressionante o quanto alguns dias de convivência podem influenciar nos relacionamentos das pessoas: ali estava eu, preocupada com a saúde de um cara que até poucos dias atrás eu acreditava que não hesitaria em me apagar ao primeiro sinal de problema. Não posso dizer que já tinha descartado completamente a hipótese de que ele seria capaz de me matar, mas francamente, não me sentia mais em perigo. Ou, ao menos, não achava mais que a minha vida corria perigo. Eu tinha ainda outras preocupações – principalmente em relação ao rumo que os meus sentimentos pelo sequestrador estavam tomando –, mas em relação à minha segurança e à minha integridade física, eu estava praticamente despreocupada a essa altura. Como o mundo dá voltas...
Enzo foi para o chuveiro, e, na ausência dele, preparei o café da manhã. O conteúdo da gaveta trancada da cozinha permanecia fora do meu alcance, mas eu já não me interessava mais por ela. Por mim, aquela faca afiada que eu vira na mão dele nos dias anteriores só seria usada para cortar bifes, frangos e legumes. Eu não tinha mais medo dele.
Troquei o curativo assim que ele saiu do banheiro, e ele tomou um analgésico antes mesmo de tomar café. E só então vestiu cuidadosamente uma camiseta folgada.
– Quase novo em folha – disse ele, sorrindo para mim, enquanto eu servia as xícaras de café.
Ele abriu a porta de um armário no canto da cozinha, apanhou um bom punhado de ração para cachorro numa lata grande, e foi em direção à porta da frente.
– Se prometer que o cachorro não vai me morder, eu faço isso para você – propus, tentando pegar a lata da mão dele.
– Pode deixar – disse ele, recusando minha ajuda, e saindo para alimentar seu amigo canino.
Concluí que ele não podia me prometer nada em relação ao cachorro. Ouvi o som de uma torneira aberta e de água batendo na lata, enquanto ele estava lá fora. Tentei ver alguma coisa pela janela da cozinha, mas a árvore ainda bloqueava minha visão. Enzo voltou um minuto depois, com a lata vazia, e tornou a guardá-la no armário, junto com a ração.
– Quer me contar o sonho que teve essa noite? – perguntou Enzo, despejando cereal numa tigela.
Sabia que ele estava se referindo ao meu suposto pesadelo da madrugada, mas eu não queria dividir isso com ele.
– Já passou – dei de ombros.
– Tem certeza? Dizem que contar os pesadelos ajuda a exorcizá-los mais rápido.
– Pensei que eu fosse a estudante de psicologia aqui – ri-me.
– De psicólogo e louco, todo mundo tem um pouco.
– O ditado não era de médico e louco...?
– E onde fica a licença poética? – riu-se ele.
– Ok... – eu disse, rindo. – Mas não foi nada de mais. E já não me lembro bem do que sonhei.
É claro que eu estava mentindo. Lembrava-me perfeitamente do sonho, e, principalmente, do motivo pelo qual acordei assustada; e, precisamente por isso, a última pessoa para quem eu contaria seria ele.
– E você? Dormiu bem? – perguntei, indicando com a cabeça seu ombro ferido.
– Quase como um bebê.
Eu quis evitar a lembrança de ter acordado abraçada a ele, mas era impossível não me perguntar se ele não estava pensando nisso também. Apesar de um pouco constrangida, eu não lamentava ter despertado assim. Havia algo naquela cena que parecia fazer sentido, embora eu não conseguisse compreender o que era. Talvez eu só estivesse me sentindo carente.
– Estou aqui pensando no que vamos fazer hoje – disse Enzo, de repente, ao terminar de comer seu cereal. – Acho que logo você vai ficar entediada se eu propuser mais uma sessão de filmes...
Dei de ombros.
– Na verdade, eu gosto de filmes – garanti.
– Eu sou obrigado a admitir que estou ficando sem ideias para variar nossas atividades. Eu até tenho alguns jogos, mas a maioria é do arco da velha. Não há muitas opções quando se passa o dia todo dentro de casa.
– Eu não me importaria de dar um passeio lá fora – comentei, tentando soar despretensiosa. – Aliás, seria bom irmos à cidade, já que você, pelo visto, é cabeça dura, e não parece preocupado em ser examinado por alguém que realmente entenda de ferimentos.
– Eu vou ficar bem. Quanto ao passeio, hoje é domingo, não há muito que fazer na cidade; mas, se você continuar se comportando direitinho, quem sabe eu não te levo para passear amanhã?
Eu duvidava. Mas realmente gostaria de voltar a ver o mundo exterior, mesmo que fosse por pouco tempo, e apenas de dentro do carro dele.
– Ok... – eu disse, devagar. – E, para hoje, quais são os jogos do arco da velha que você tem?
– Além dos tradicionais Ludo, Banco Imobiliário e Batalha Naval... – ele começou a enumerar. – Detetive, um baralho de jogo da memória, Uno, Show do Milhão – em cartões, não o jogo de computador –, e um Sega Mega Drive mega antigo, que o meu irmão largou aqui, nem ele lembra há quanto tempo...
Sega Mega Drive... A referência só não me fez rir porque o seu complemento dizia muito mais sobre o sequestrador e o meu cativeiro: "que o meu irmão largou aqui, nem ele lembra há quanto tempo...". Enzo já tinha dito, lá no início do meu cativeiro, que aquela casa era sua; eu não acreditei; mas essa afirmação, aparentemente entregue ao acaso, sem premeditação, não apenas confirmava que era verdade, como denunciava que ele – ou sua família – a possuía há muito mais tempo do que eu poderia supor. Videogames com cartucho, como o Mega Drive saíram de linha há quanto tempo? Uns quinze anos?
– Você também não teria, por acaso, um Atari guardado no porão? – brinquei.
– Vou ficar te devendo até o porão – riu-se ele, enchendo de leite a xícara que tinha esvaziado de café.
– Como que é esse Show do Milhão com cartões?
– Parecido com o jogo de computador: com cartões para quatro níveis diferentes – até cinco mil, até cinquenta, até quinhentos e os de um milhão –, cada cartão tem 8 perguntas – cinco da rodada e três pulos. A gente marca o tempo para responder cada pergunta, e confere se acertou no cartão-resposta.
– Hum... – Acho que no computador era mais legal. Mas, se era o que tinha pra hoje...
– É tipo o primo pobre do jogo original – reconheceu Enzo. – O bom é que dá para jogar em qualquer lugar. Aliás, eu devia ter me lembrado dele no dia que ficamos sem luz.
– Me fez lembrar o primo pobre do Qual é a Música?, que uma colega minha levava para jogar na escola quando a gente tinha aula vaga.
– Não conheci esse.
– Também era com cartões. Tinha um monte de palavras nos cartões, e a gente tinha que cantar músicas que tivessem aquela palavra, até alguém não lembrar mais nenhuma. Geralmente, a gente jogava em dois grupos.
Nossa! Fazia uma eternidade que eu não me lembrava disso.
– O Mega Drive do seu irmão... – arrisquei. – Tinha quais jogos?
– Vou pegar a caixa de cartuchos para dar uma olhada – disse Enzo, levantando-se da bancada.
Ele abriu uma porta na estante, e apanhou uma caixa de papelão pouco maior do que uma caixa de sapatos e trouxe até o sofá. Dentro dela havia uns dez ou doze estojos de cartuchos de videogame, que ele foi tirando da caixa e me mostrando: tinha jogos de luta, de corrida de carros, de futebol, de aventuras em estilo Indiana Jones – só que com outros personagens –, dois jogos do Sonic The Hedgehog, e um cartucho sem capa com diversos jogos variados.
– Caramba! Há quanto tempo eu não via um jogo do Sonic... – comentei, pegando o estojo do cartucho para ver mais de perto.
Eu me lembrava de ter jogado muito aquilo, lá pelos meus dez ou onze anos, quando o Leandro viajava com os amigos e deixava o videogame dele com a Chiara.
– Quer jogar? – propôs Enzo, animado.
Claro que ele estava animado: como todos os homens que eu conhecia, Enzo devia adorar videogame. E, para falar a verdade, eu também gostaria de matar a saudade daquele ouriço ligeirinho.
– Vamos nessa! – concordei.
Enzo guardou os outros jogos de volta na caixa e apanhou o videogame e os controles na estante. Não levou mais do que um minuto para instalá-lo na televisão – com um adaptador para aquele plugue ultrapassado –, e então encaixou o cartucho e esperamos o jogo carregar. Enzo me deu um dos controles, e, como a versão que ele tinha do Sonic era para um único jogador de cada vez, ele me deixou jogar a primeira fase, e jogou a dele em seguida.
Assim, passamos as duas horas seguintes capturando argolas douradas, pulando obstáculos e vencendo pequenos vilões na aventura do ouriço azul. E, ao contrário do que eu esperava, Enzo não era muito bom naquele jogo. É claro que ele devia ser bom em muitos outros jogos de videogame, mas Sonic não parecia ser sua zona de conforto. Apesar disso, chegamos bem longe. O Game Over só veio na quinta fase, um tipo de aventura aquática: quando o Robotnik apareceu, a água começou a subir, e nenhum de nós dois conseguiu escalar a parede de coral rápido o bastante para alcançar a superfície antes que o ouriço morresse afogado.
Então, paramos para preparar o almoço. Enzo e eu fizemos uma macarronada, e depois eu descobri que a zona de conforto dele no videogame eram os jogos de futebol.
No meio da tarde, depois de uma pausa para um hambúrguer, Enzo se lembrou de sua promessa de me transformar em pianista durante o cativeiro, então, deixamos o videogame descansar um pouco, enquanto ele me dava a segunda aula de piano. Aos poucos, a partitura foi parecendo mais fácil de seguir, e eu quase conseguia respeitar o tempo da música – ao menos, quando tocava com apenas uma das mãos, porque, quando juntava as duas, a canção ficava bem mais lenta. Apesar disso, fiquei bastante satisfeita ao conseguir concluir pela primeira vez a música inteira tocando sozinha.
Enzo me aplaudiu, e, por um momento, eu me senti como Christine Daaé, a cantora lírica de O Fantasma da Ópera, sendo discipulada pelo "Anjo da Música". Na verdade, minha realidade era bastante semelhante à dela: Erik, o Fantasma da Ópera, também a manteve presa, e, a princípio, ele também tratava Christine com toda gentileza e bondade, tentando conquistar seu coração. Exatamente como Enzo estava fazendo comigo, mantendo-me presa naquele chalé de Serra, confortável, e conquistando, dia após dia, com sua gentileza, toda a minha afeição. Eu tivera até a chance de fugir e desprezara por me preocupar com ele; por gostar dele. Eu estava completamente embevecida diante do charme do homem que poderia vir a ser o meu algoz, porque ele me tratava com delicadeza e simpatia. Eu só esperava que o meu anjo da música não se revelasse um psicopata ao final da história.
Percebi, de repente, que o estava encarando, não sei bem com que tipo de olhar – se com medo, ou com ternura; com constrangimento ou com admiração –, então baixei a cabeça, escondendo-me dos olhos dele por trás dos meus cabelos. Enzo, porém, não permitiu que eu fugisse de seu olhar, e, erguendo a mão, colocou a mecha de cabelo atrás da minha orelha, demorando-se com os dedos no meu rosto. Meus dedos, trêmulos, escorregaram sobre as últimas teclas dedilhadas na canção. Os olhos dele me fitavam com intensidade – talvez ainda inebriados pela música; talvez seduzidos pela proximidade entre nós.
De minha orelha, os dedos dele desceram até o meu rosto, segurando-o com carinho. Fechei os olhos sob seu toque; não conseguiria olhar para ele mesmo se quisesse. Eu tinha consciência do quanto era inapropriado – Deus sabe o quanto me custava considerar isso àquela altura –, mas eu não queria – e provavelmente não suportaria – que ele tirasse a mão do meu rosto.
Prendi a respiração, ao sentir o hálito dele soprando em minha pele, e cada vez mais perto. Eu não cheguei a ver, mas sentia Enzo se inclinando para mim, até que seus lábios roçaram os meus.
Se isso tivesse acontecido três dias atrás, quando errei os dois versos do Hino Nacional, e Enzo prometeu cobrar os erros com beijos, o cumprimento da promessa teria me apavorado. Mas agora, tão pouco tempo depois de fazer meu coração acelerar com a expectativa de um beijo tomado à força, meu coração acelerava, mas com o desejo de que esse momento não se findasse.
Enzo me beijava devagar, mas com intensidade, como se há muito ansiasse por esse momento. Ele se afastou por um único segundo, como se esperasse que eu o detivesse. Mas esta era a última coisa que eu queria fazer naquele momento. Tinha erguido minha mão do piano, e tocado delicadamente o pescoço dele, mas não para empurrá-lo. Ao contrário, eu queria puxá-lo para mais perto. Meus olhos se entreabriram involuntariamente, mas tudo o que vi foram os lábios dele descendo outra vez para se juntarem aos meus.
E então, o tempo parou. Esqueci que eu estava no cativeiro; esqueci que o homem que me beijava era o mesmo que havia me sequestrado; acho que esqueci até o meu nome. A única coisa que eu registrava eram nossos lábios e mãos se misturando loucamente naquele banco estreito.
Por um momento, nenhum de nós dois se lembrou de seu ombro ferido, quando permiti que ele me levantasse e me carregasse em seus braços até o sofá, sem jamais separar nossos lábios. Enzo me deitou com cuidado, suas mãos me segurando tão firmemente que parecia que ele tinha medo de que eu fosse desaparecer como mágica de diante dele. Mas eu não iria a lugar nenhum, pois eu estava exatamente onde queria estar: nos braços dele.
Por mais irracional que parecesse, havia algo muito familiar na forma como ele me tocava e me beijava. Era como um déjà vu: eu sentia que já tinha vivido aquele momento, já tinha experimentado aquelas mãos, já tinha provado aquele beijo; mas eu não me lembrava de quando ou com quem. A boca de Enzo tinha um gosto familiar, como o Cosmopolitan que Chiara me fizera provar meses atrás: eu soube na hora que já tinha sentido aquele sabor antes, mas não tinha nenhuma lembrança de já tê-lo provado.
Talvez fosse meu subconsciente, trazendo à superfície uma espécie de metáfora leviana: eu sabia que era muito errado permitir que aquele homem me tocasse do jeito que ele estava me tocando agora, mas era precisamente a transgressão e o perigo que ele representava que me seduziam. Talvez fosse o gosto do pecado que eu reconhecia nos lábios dele – não literalmente, é claro; um sabor perigoso, proibido, como o brigadeiro roubado numa festa antes de partir o bolo. Ele tinha o gosto do fruto proibido. E, tal como a Eva no Paraíso, a última coisa que eu queria era recusá-lo.
Subitamente, porém, ele se afastou, recuando até a outra ponta do sofá, com a respiração ligeiramente fora de controle.
– Desculpe... – sussurrou ele, passando a mão nos cabelos, desconcertado.
– O quê...? – comecei a perguntar, mas minha voz havia desaparecido junto com o meu fôlego.
– Eu não posso... – Ele ainda me olhava intensamente, mas agora, com uma expressão torturada.
– O que você não pode...?
– Não posso fazer amor com você. Não desse jeito.
Ele ainda balançava a cabeça quando se levantou do sofá. Eu me levantei ao mesmo tempo, completamente confusa com o que havia acabado de acontecer. Não compreendia porque ele estava fugindo. Na verdade, não compreendia como eu havia me deixado levar, para começar. Enzo era o bandido que havia me sequestrado! E eu deveria estar grata por aquela miraculosa demonstração de bom senso que ele tivera ao se afastar, mas, por alguma razão incompreensível, doía-me vê-lo recuar. Não apenas doía: deixava-me furiosa!
Mas então, vislumbrei a aliança na mão dele, quando ele tornou a se sentar no braço do sofá, parecendo não saber exatamente o que fazer, ou como se desculpar, ou o que dizer para justificar sua atitude. Ele parecia estar tão abalado quanto eu com aquela situação. Mas era óbvio: ele tinha namorada. E a maior de todas as ironias, era que o sequestrador era fiel a ela. De certo modo, a compreensão me fez sentir estranhamente orgulhosa, pois ele demonstrava uma rara integridade. Rara demais para um criminoso, de fato. Por outro lado, também me fazia sentir patética: primeiro, por ter estado tão perto de me entregar ao homem que me mantinha em cativeiro; e segundo, por ter ficado magoada com sua rejeição. Provavelmente, aquele foi o momento mais baixo e mais humilhante que eu vivi. Ao menos, até ali.
– Eu gostaria de lhe dar uma explicação razoável – disse Enzo, após uma longa pausa, talvez recuperando o controle de si. – Mas se fizermos isso, eu não vou saber se foi porque você estava com medo demais para me parar, e você não vai saber se foi algo que rolou naturalmente, ou se eu planejei isso desde o princípio. E a verdade é que eu não quero machucar você, Sarah. Eu te prometi desde o início que não iria forçar nenhuma situação, e eu vou manter a minha palavra.
E, tendo dito isso, ficamos nos encarando pelo que pareceram horas – embora não tenha se passado mais do que um minuto. Meu coração ainda batia forte; meu corpo inteiro tremia. Eu precisava me sentar outra vez, mas não conseguia me mexer; não enquanto ele ainda estivesse me olhando como se lutasse consigo mesmo, ou contra o impulso de percorrer aquela pequena distância que nos separava, me tomar outra vez em seus braços e continuar de onde paramos. Estava tudo ali, no olhar dele: o fogo, o desejo, a paixão. Mas também havia dor, desespero, e hesitação.
Acho que nunca desejei tanto que tudo não passasse de um sonho. Como eu queria ter acordado naquele momento, e descoberto que Enzo era apenas um cara bonito que eu vi um dia numa livraria, e depois num restaurante, e com quem eu nunca conversara, nunca realmente conhecera, e em quem eu nunca tocara.
Mas ele era real. Meus sentimentos por ele também eram reais. E a dor que eu sentia agora, tão perto dele e tão distante ao mesmo tempo, também era real.
Após o que pareceu um minuto eterno, Enzo se levantou e se dirigiu à cozinha para preparar o jantar.
– Deixe-me ver o seu ombro – eu disse, tentando me recompor.
– Eu estou bem – disse Enzo, sem olhar para mim.
– Estava sangrando de manhã. Isso nem sequer está suturado, e depois... – Não quis completar: depois de fazer força para me levantar. – É bom trocar o curativo.
Relutante, ele acabou concordando. Tirou a camiseta, e sentou-se diante da bancada. Levantei o curativo com cuidado. Como imaginei, havia sangrado. Pouco, mas sangrou. Enzo não tirou os olhos do meu rosto nem um só instante enquanto eu limpava o ferimento e refazia o curativo. Parecia querer dizer algo, mas se mantinha hesitante. O desconcerto pelo que acabara de acontecer pairava sobre nós, como a névoa num dia de inverno, tornando o ar difícil de respirar.
Eu estava terminando de prender a gaze com o esparadrapo, quando ouvimos o ruído de um carro se aproximando. O cachorro começou a latir, e, em seguida, alguém bateu à nossa porta.
– Tem alguém aí – essa era eu, dizendo o óbvio.
Enzo estava olhando para a porta, com o cenho franzido, enquanto eu terminava o curativo.
– Vou ver quem é – disse ele, levantando-se e agarrando a camiseta. – Fique aqui, está bem?
Deu-me um beijo carinhoso na testa, e vestiu a camiseta enquanto caminhava até a porta. Fiquei ali, quieta, junto à bancada, rezando em silêncio, enquanto ele abria a porta com cuidado.
De todas as aparições possíveis, aquela era, depois do atirador, a última que eu desejava ver naquele momento – e esta era a maior de todas as ironias. Por cima do ombro do meu sequestrador, eu vi dois policiais parados à nossa porta.
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