Capítulo 57
O caminho até o lago Cristal tinha sido tranquilo, eu estava começando a me acostumar com minha nova condição, apesar de não conseguir enxergar com os olhos, conseguia saber onde eu estava, através da minha conexão com a natureza.
Durante toda a viagem de barco fiquei treinando o que minha tia me ensinou, ver sem ser com os olhos, nunca pensei que esse ensinamento seria tão útil.
Era uma forma diferente de se ver, não consigo explicar bem, era como se eu recebesse ondas de energia mágica e conseguisse distinguir assim, o que estava ao meu arredor.
Zamir tinha se tornado um bom companheiro, apesar do seu péssimo hábito de encher a cara toda a noite, lhe disse que se eu morresse a culpa ia ser dele, o orelhudo teve a audácia de dizer que ele bêbado, tinha mais talentos do que sóbrio.
Apesar do seu sarcasmo com praticamente tudo, fosse para lidar com um simples almoço ou para falar de guerras, Zamir era uma figura peculiar, ele me intrigava cada dia mais.
Nossa jornada estava quase no fim e eu teria que agradecer a ele, tenho certeza que ele não sabe o quanto me ajudou nesse tempo, seu conselho sobre meu poder, foi primordial para eu conseguir voltar a ter confiança em mim mesma.
O espaço que ele me dava, não perguntando sobre o que passei, em parte acho que ele não ligava, mas outra parte, acha que ele sabia que eu precisava de uma companhia que não fizesse perguntas.
Não pude deixar de me apegar as suas malditas cantigas, quando estava bêbado e ficava gritando pelo barco versos, que muitas vezes saiam embolados, e é claro, sobre todas as informações que me deu sobre o mundo élfico, cada coisa que ele falava eu me sentia mais perto do meu pai.
Eu iria sentir saudades desse orelhudo arrogante e egocêntrico, um sorriso triste apareceu no meu rosto, quando penso em quantas elfos poderíamos conhecer e aprendermos uns com os outros, se não fosse esse conflito sem sentido.
- Chegamos ninfinha.
- Finalmente.
Respiro fundo e sinto a brisa do lago atingir o meu rosto, um cheiro suave de pinho preenchia o lugar. A imagem daquele lugar ainda era bem vivida em minha mente.
Apesar de eu conseguir enxergar agora com os sentidos, tinha criado o hábito de andar sempre com uma das mãos nos ombros de Zamir, ele foi meu elfo guia nos primeiros dias, quando não conseguia dar um passo sem bater em algo, e essa hábito acabou ficando.
- Venha, vamos arrumar o acampamento, sua tia deve chegar somente amanhã.
Nos sentamos nos cascalhos perto da água, aaa a água. Como eu sentia falta de poder mergulhar nela, eu precisava urgentemente desse contato.
- Zamir, qual a profundidade do lago?
- Porque a pergunta?
- Quero tomar um banho.
- Fundo o suficiente, mas não vá muito para o meio do lago, falam que é a parte mais profunda, muitos já se afogaram nessa parte.
Retiro minhas botas e sinto o frio dos cascalhos nos meus pés. Me levanto e ia começar a desabotoar a minha camisa, quando paro e me dou conta, que Zamir está do meu lado e me veria nua.
- Algum problema ninfinha – Sua voz é séria – Mudou de ideia quanto a nadar?
- Vire-se.
- Lia, um corpo é um corpo, não é porque estas nua que irei te desejar. Alias, não entendo esses pudores, parece até os humanos quando falas assim, são eles que ficam cheios de dedos, sabes que para nós não existe isso, além do mais, é meu dever te proteger como farei isso se não posso vigiá-la?
Sim, eu sabia que os elfos e as ninfas tinham menos pudores que os humanos, mas não consigo evitar, não depois de tudo...
- Por favor Zamir, eu não estou indefesa aqui.
Escuto ele suspirar, mas faz o que lhe peço. Desde a minha reação no barco com seu elogio, Zamir nunca mais ousou falar qualquer coisa do gênero.
- Obrigada.
Retiro todas as minhas roupas, ficando somente com a faixa de Kael amarrada em meus olhos como uma venda. Vou caminhando em direção a água, sentindo os cascalhos em meus pés ficarem aos poucos molhados.
Quando a água gelada beija a minha pele, solto um suspiro de satisfação, como é bom poder mergulhar novamente, nado sem pressa, me deliciando com cada minuto, pois nesse momento, consigo esquecer pela primeira vez de tudo.
Quando saio da água, me encaminho para perto de onde deixei minhas roupas, percebo que o elfo não está lá, procuro com os meus sentidos enviando ondas pelo local que estava, mas não encontro Zamir.
- Onde o orelhudo se meteu?
Não fico preocupada com ele, sei que o elfo sabe se cuidar. Aproveito a sua ausência, para usar o vento e secar o meu corpo que ainda estava molhado, o vento gelado causa arrepios em minha pele.
Estou vestida e sentada na beira do lago esperando Zamir voltar, utilizo do tempo sozinha para fazer o meu mantra diário, desde que tudo aconteceu, todo dia eu medito e no final, sempre invoco os elementos para me lembrar que não estou amarrada.
Fiz esse ritual durante toda a minha viagem, principalmente quando acordava gritando e tremendo dos pesadelos que eu tinha, nas primeiras noites Zamir vinha ver como eu estava, e era ele que falava as palavras que agora eu recito sozinha, me lembrando do meu poder e me acalmando.
Eu ainda tinha pesadelos e acordava durante a noite, mas não gritava mais, me sentava, respirava fundo e falava para mim mesma que eu estava bem e segura.
Esse mantra acabou se tornando algo que comecei a fazer quando estava ansiosa, com medo ou até mesmo quando tinha algum tempo livre, como era o caso agora.
- Que a água me tome e me mostre o meu caminho – Expiro o ar – Que os elementos me protejam – Inspiro – Eu estou segura, eu estou no controle, eu sou forte e nada me machucará.
Essa última parte era o que Zamir me dizia, acabei acrescentando um pouco por conta própria. Sinto um movimento perto da mata e assim que o ser se aproxima mais, vejo que era o elfo voltando.
- Onde você se meteu?
- Você estava demorando muito no seu banho, não achou que eu fosse ficar sentado o dia todo – Faço uma careta para ele – Além do mais, você me disse que sabia se cuidar, então achei que fosse gostar de comer algo que não fosse peixe hoje.
Olho intrigada para o elfo, ele reparou então que eu estava cansada de comer peixe, durante nossa caminhada na floresta comemos alguns peixes que tínhamos pescado e guardado, pois Zamir não queria se afastar para caçar, não queria jogar com a sorte e acabarmos encontrando quem não devíamos.
Não consigo deixar de ficar admirada com o pequeno gesto que o elfo faz, ele pode não querer demonstrar que se importa, mas me sinto importante nesse momento, por ele ter caçado algo que não fosse peixe.
- Obrigada. – Lhe dou um sorriso sincero.
- Você não é a única que esta cansada de comer peixe, então não se anime muito.
- Obrigada mesmo assim orelhudo.
Estávamos devidamente alimentados e não sei de onde o elfo tirou a garrafa de vinho, mas ele a entornava agora. Zamir já estava um pouco alterado por causa da bebida, e começou a fazer diversas perguntas sobre mim.
- Como é sua tia?
- Ela é difícil de descrever, mas você a reconhecerá quando a vir.
- Mais uma náiade então.
Não falo nada, apenas sorrio comigo mesma.
- Zamir, posso lhe fazer uma pergunta?
- Poder pode, se vou lhe responder já é outra coisa.
- Você nunca mais se apaixonou novamente?
O elfo fica em silêncio, penso que ele não irá me dizer o que lhe perguntei.
- Não, todo romance que penso é na noite que irei passar com a pessoa e adios.
- Que horror Zamir.
- Você que perguntou. Sabe ninfinha, se você tivesse vivido tanto quanto eu, veria que uma noite pode significar muito mais do que uma vida inteira, além do mais é uma ótima forma de fazer esquecermos o que não queremos lembrar.
Fico olhando intrigada para o que o elfo tinha acabado de dizer.
- O que quer dizer com isso?
- Que vivi coisas muito mais intensas em uma noite, do que muitos vivem durante uma vida, estando do lado de parceiros onde muitas vezes não os valorizam.
- Uau, e isso serve também para a sua ex mulher?
Zamir joga a garrafa de vinho longe, escuto o vidro se quebrar, ele se levanta e vem a passos rápidos em minha direção, me segura pelo colarinho da blusa e quando fala comigo, consigo sentir o seu hálito com bebida em meu rosto.
- VOCÊ NUNCA MAIS – Ele rosnava as palavras com uma fúria que nunca tinha visto antes – FALE DA MINHA MULHER! VOCÊ NÃO SABE DO QUE ESTÁ FALANDO!
Tão rápido ele segurou a minha blusa ele a soltou, eu fiquei congelada com a sua reação e pela primeira vez desde que estávamos juntos, senti medo dele, pude sentir a raiva em suas palavras, mas também pude sentir a dor nelas.
Ele se senta ao meu lado, jogando todo o seu peso contra os cascalhos, que rangem e reclama pela bebida ter acabado. Ajeito a minha blusa e passo a mão por meu pescoço, não reparei que prendia a respiração.
- Você já amou alguém ninfa?
Eu não esperava por essa pergunta, não depois dele ter explodido em raiva, estou chocada de mais para responde-lo.
- Já amou alguém, onde você faria qualquer coisa por essa pessoa, até dar a sua própria vida por ela. Onde essa pessoa é seu chão e seu céu, ela é o motivo que você sorrir, é o seu mundo, onde você faz qualquer coisa para ver o sorriso que ilumina o seu dia no rosto dela, você já amou assim?
Escuto as palavras de Zamir e sim, eu já tinha amado dessa forma.
- Eu já, uma vez – Ele suspira e vejo uma lágrima escorrer dos seus olhos, por causa da minha afinidade com a água – E ela foi tirada de mim, eu não pude protege-la.
- Como ela se chamava? – Pergunto com a voz tremula.
- Marien, ela era o meu sol.
- O que aconteceu com ela?
- Durante a grande guerra, eu fui designado para uma missão, eu disse que não iria para o rei, pois nós morávamos numa área de risco, disse que tinha que proteger minha esposa e meu filho que estava em seu ventre, que eu tinha muitos inimigos para abandona-los naquele momento.
Minha garganta se fecha, sinto a emoção em cada palavra que o elfo conta.
- O rei me prometeu que a protegeria, que a transferiria para o castelo por consideração a mim, eu confiava nele e Marien me fez aceitar a missão. Quando retornei à aldeia onde nós morávamos, tudo tinha sido queimado, corpos estavam espalhados por todos os lados, um cheiro de pútrido pairava por todo o lugar.
Levei as mãos ao meu rosto, por causa do horror que escutava Zamir narrar.
- Eu fui andando pelo lugar e foi então que eu a vi, bem no centro da aldeia uma cruz com Marien presa a ela. Os malditos a crucificaram e cortaram a pele de seu ventre, para me enviar um recado.
Eu estava horrorizada com o que escutava, pude começar a entender o porque Zamir odiava o seu rei, ele o culpava por tê-lo tirado de perto da esposa e do filho e os dois terem sido mortos em sua ausência.
- Durante a guerra, alguns elfos da Torre se voltaram contra o rei e lutaram do lado dos humanos, os malditos a torturaram e depois a mataram.
Eu escutava tudo em silêncio.
- Desde Marien, eu nunca mais amei ninguém, não dessa forma. Passei por um maldito período, onde quase me destruí e prometi a mim mesmo, que nunca mais teria alguém que pudesse ser usado contra mim. – Ele respira profundamente - Por isso ninfa eu falo, que uma noite pode ser mais que o suficiente, para fazer você esquecer a merda de vida que tem, ou então um bom copo de álcool.
Ficamos os dois em silêncio, eu não sabia o que falar para ele, pude sentir a sua imensa dor em cada palavra que ele dizia, e pude ver a máscara que ele usava para esconder o verdadeiro Zamir.
Zamir se levantou e eu também fiquei em alerta, nós dois estávamos sentindo a aproximação de alguém, que não estava sozinho. Pude escutar o elfo pegar a sua espada do chão, mas então reconheci quem se aproximava.
- Se acalme, não é inimigo – Eu dei um sorriso – Ela chegou.
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