•Sentimentos•
Explodindo de raiva.
É assim que estou.
Voltei a meus aposentos depois de conversar com Jason, mas não paro de andar de um lado a outro repleta de irritação. Eu não consigo acreditar nisso. Como assim ele não podia me contar? Ele tinha que me contar! Depois de ter me visto na floresta, e visto quem sou, deveria ter se revelado!
Isso teria evitado tanta coisa...
- Entre. - respondo a quem bate na porta.
Lucian cruza o cômodo se aproximando de mim.
- Ainda não tinha caido a ficha de você estar viva, tive que vir conferir com meus próprios olhos. - me encara com suas esmeraldas.
- Parece que estou não é mesmo - respiro fundo - desculpe, só...não estou bem.
- Percebi - ele ri descontraído - deu um belo susto em todos sabia? Especialmente em mim.
Me abraça. Um abraço carinhoso, de saudades, não pude e nem quis evitar de retribuir. Lucian é um amigo inesperado. Ele chegou rápido e mais rápido ainda conseguiu perfurar minha casca. É alguém precioso pra se ter ao lado.
- Também achei que havia te perdido, ao menos pelos poucos segundos que te vi antes de desmaiar - me afasto - Como está o ferimento?
- Bem, apenas uma cicatriz a mais e amargas memórias do medo de te ver morrer. Mas e você teimosa, como vai? - passa um dos braços sobre meus ombros.
- Melhor impossível - ri - Ao menos fisicamente. Ele me encara com uma sobrancelha erguida.
- Que foi?
- Você riu. - disse como se fosse a coisa mais inacreditável do mundo.
- Sim e daí?
- E daí que Samhara riu. Sem sarcasmo, sem ironia, sem deboche. Achei que não estaria vivo pra saber como é sua risada. - põe a mão dramaticamente no peito.
- Palhaço. - acabo rindo outra vez o que faz com que erga agora as duas sobrancelhas.
- Certo agora conte-me o que aconteceu que fez esse milagre?
- Nada seu curioso.
De repente meu corpo cai e rapidamente é amparado por seus braços. Ele me deu uma rasteira.
- Sua guarda está baixa. A Samhara que conheço jamais levaria um golpe desse. Postura relaxada, olhos brilhando, rindo, tom de voz leve e descontraído apesar da raiva que eu vi você exalando enquanto respirava desrreguladamente. - diz perto de meu rosto.
- Está certo sabichão eu conto, agora me solta - fico de pé outra vez. - Eu estava encarceirada no covil Orc todos esses dias. Só consegui sair de lá com ajuda, ou seja, fui resgatada.
- Por quem? - pergunta sentando na cama.
- Por um velho amigo.
-Reencontros...isso explica a felicidade do seu corpo, mas não a irritação da sua mente. - bate ao seu lado na cama pra que eu me sente.
- Nós brigamos a pouco. Ou melhor, eu briguei com ele. - respondo ficando a seu lado.
- E porque?
- Por ele ter me escondido quem era.
- Mas você havia contado quem era você a ele?
- Não, claro que não. Mas não é por ter me escondido isso que me magoei, afinal eu também tinha meu segredo, mas ele descobriu quem eu era quando esse rebuliço todo começou e mesmo assim continou se escondendo, sem me contar nada. - digo ressentida.
- E qual o motivo de ele não ter te contado?
- Ele disse que não podia.
- E a razão de não poder?
- Não sei e nem quero saber. Não há justificativa, ele tinha que ter me contado.
- Samhara, se eu apareço aqui e digo que você tem que ir comigo a tal lugar querendo ou não o que você faz? - pergunta se virando melhor pra mim.
- Eu digo que você não manda em mim. E que eu não tenho que fazer coisa alguma.
- Exato. Do mesmo modo que você ele não é obrigado a fazer nada. Concordo que tendo uma relação de amizade e ele descobrindo seu segredo, nada mais justo que revelar o dele. Mas acho que se são tão amigos deve haver uma boa razão, e antes de qualquer julgamento as duas partes devem ser ouvidas. Como você pesa algo na balança sem ter o que pesar?
Respiro fundo. Lucian apenas fala o que minha consciência repete inúmeras vezes. Mas não vejo razões pra ter escondido de mim, não tem explicação pra isso.
- Essa não é a mesma pessoa que vi sendo carregada com uma espada atravesando o corpo por um Orc. Porque aquela pessoa sempre foi sensata, e não correspondia em nada com a pouca idade que tinha - ele vira meu rosto em sua direção - Você sabe o que é o certo Baixinha, não deixe o orgulho falar por você, ele apenas faz com que ajamos como crianças imaturas.
Apesar das palavras ele não diz em um tom repreensivo, e sim como um conselho. Deixa um beijo suave em minha testa e se levanta.
- Todos devem ter direito a se explicar. Agora se a explicação é plausível, já é outra história. Vou indo e se precisar é só chamar que virei, sabe disso. - me lança uma piscadela e sai do quarto.
Me jogo de costas na cama encarando o teto.
Não vou dar o braço a torcer. Ele sumiu, mas esteve ao meu lado todo o tempo. Teve todas as oportunidades de falar comigo, mas não o fez.
Me levanto e decido ir ver as coisas com Yedryn. Tenho que preparar o próximo passo, e me atualizar da situação geral. Mas antes me encaro frente ao espelho. Concerto minha postura, assumindo a mesma de antes.
"Não deixe que ninguém saiba disso"
Foi o que dragão disse. Mas é fácil dizer, quando não é você que vai ter que atuar todas as horas do dia fingindo algo que já não é mais. Lucian mesmo já percebeu.
É irônico esse pensamento. Eu nunca pensei em voltar a ser o que era antes. E por mais magoada e irritada com Jason que eu possa estar, ainda sim é aliviante tudo isso.
Vou até a sala de Yedryn e como sempre não o encontro. Sinceramente essa sala é o que? Enfeite? Bufo impaciente e começo a procurá-lo até o encontrar no jardim do castelo.
O silêncio da noite envolve a tudo como um manto. A lua ilumina as mais belas flores espalhadas no jardim dando um um brilho especial a cada uma delas, que parecem sorrir ao deleite do momento. O Lord caminha por entre as flores, com as mãos as costas, apreciando o delicioso perfume exalado no ar. O lugar inspira paz e calmaria.
- Samhara. Quanto tempo.
- Sim Yedryn, deixe de simulações sei que não gosta de me ver viva, muito menos em sua presença - digo me aproximando e dando um de meus sorrisos irônicos.
-E o quer comigo então feiticeira. - a pose se desfaz e seu rosto mostra o verdadeiro descontentamento em me ver.
- Agora estamos falando as claras. Vim ter com você sobre o panorama da situação. Sem dúvida falo com o ser mais informado desse mundo, isso é fato.
- Estou em um belo e agradável momento de descanso de minha obrigações como Lord Elfo e gostaria que continuasse assim. Já é tarde bruxa, a lua já subiu ao céu, e podemos ter uma reunião amanhã, assim incluímos seus companheiros. - me responde enquanto caminha entre as magníficas rosas vermelhas de seu jardim.
- Enquanto descansa mais território é tomado. Pôde descansar por um mês e meio.
- E continuarei dessa forma. - recolhe uma rosa e aspira o perfume.
- Como? - pergunto indignada.
- O inverno já está sobre nós Bruxa. Não sabia disso? - Ri com deboche.
- Claro que sabia. Mas por acaso Milord tem medo de neve? - devolvo no mesmo tom.
- Vejo que sua ignorância vai além do que imaginava. Bem, permita-me levar um pouco de luz a seu cérebrozinho escuro e atormentado.
"Todo ano, em Trynie, durante o inverno um fenômeno ocorre. Fenômeno esse devido as Fadas do Norte. Essas criaturinhas transformam o inverno em um clima dez vezes mais forte e rigoroso.
Os ventos são dez vezes mais rápidos, frios e cortantes. A neve cai em dez vezes maior quantidade. Em dias de nevasca não se põe os pés fora de casa. As folhas das árvores congelam nos piores dias. A barreira de Trynie não nos protege apenas de invasores. Antes dela, uma enorme parcela da população da cidade era morta anualmente pelo inverno, esse foi um dos motivos que nos levaram a construí-la.
Mas não é apenas isso. Como lhe disse uma vez, as fadas são criaturas etérias, elas habitantam dois planos diferentes, e durante esse fenômeno, o véu entre os mundos se torna quase nulo, e em um momento você pode estar aqui, dar um passo a frente, e parar em outra dimensão."
Era só o que me faltava. Ter que correr contra o tempo.
- Mais uma razão para que eu saia daqui o quanto antes Yedryn. Além de ambos desfrutarmos do prazer de não olharmos um pra cara do outro.
- Receio que seja tarde pra isso.
Ele faz um gesto com a mão direita, apontando pra cima, lá no alto uma fenda na barreira é aberta, e algo entra, caindo levemente até pousar em sua palma.
Era um floco de neve.
- Infelizmente, estamos confinados aqui até a primavera. - me encara desgostoso.
Não é possível. Levo as mãos no rosto e respiro fundo.
- Vocês são elfos! Vocês controlam a natureza! - Tento achar uma solução.
- Elfos estão ligados diretamente a natureza, juntamente com nossos poderes. Mas as criaturas que de fato tem o maior poder sobre ela, são as fadas.
- E não tem como falar com elas? Mesmo sendo para um bem maior?
- Não. Elas são seres que não ouvem ninguém. Bem parecidas com você nesse quesito aliás. O que tem que acontecer, tem que acontecer. Essa é a função delas, esse é um fenômeno da natureza realizado por elas, que vão garantir que nada dê errado. No meio ambiente tudo é interligado, se algo deixa se de ser feito, altera todo um ciclo.
- Certo. - suspiro resignada.
Dou as costas ao elfo e decido ir caminhar um pouco. Ando pelas ruas calmas do coração da cidade, vendo as crianças brincando sob a luz prateada do luar. Algumas competem pra ver quem faz uma planta crescer mais rápido, outras brincam de pique.
Desatenta por observá-las acabo tropeçando, mas braços me amparam. Pelo perfume sei bem quem é.
-Certas coisas nunca mudam. - diz perto de meu ouvido e devido a proximidade meu coração acelera.
-Obrigada. - respondo secamente e volto a caminhar sem dar atenção.
-Vai mesmo me ignorar? - rapidamente me alcança andando a meu lado.
-Vai mesmo me seguir? - continuo olhando pra frente.
-Até o fim do mundo. - Suas palavras conseguem prender minha atenção e me fazem parar e olhar pra ele.
Acabo por encontrar o velho sorriso ladino em seu rosto, e algo revira em meu estômago, me passando uma sensação fria na barriga.
-Vá embora. - digo irritada.
-Não.
-Não quero sua companhia.
-Mas eu quero a sua, e não tem nada que possa fazer pra me tirar de perto.
-Não lembrava que era tão irritante.
-Engraçado porque eu lembro exatamente da sua teimosia.
Suspiro irritada.
-Você não entendeu Jason? Estou chateada com você. Profundamente magoada, então pare de tratar isso como se fosse apenas uma implicância tola.
-E não é uma implicância tola? - me encara divertido. - Samhara você fez uma tempestade em um copo d'água. Nem ao menos me deixou explicar!
-E porque está aqui então?
-Porque eu te conheço melhor que ninguém - se aproxima - E sei que depois das suas explosões você volta a usar o cérebro.
-Irritante.
- Marrenta.
Volto a caminhar e ele ao meu lado, não importa o quanto mude o passo, ele muda também e me acompanha.
Jason sempre teve um excelente porte físico, de fazer inveja em muita gente, nunca entendi isso uma vez que ele vivia enfurnado entre os livros, mas agora sabendo que é um lupino não há mistério. Mas a forma que ele anda, descontraído e ao mesmo tempo com um porte único consegue prender minha atenção.
Eu nunca havia reparado nisso antes, ou talvez ele tenha se medido todos aqueles anos em minha presença. Não me espantaria se a primeira opção estivesse correta, afinal, nunca havia de fato reparado nele de outra forma, nem mesmo sabia a sua real importância pra mim.
Ele anda tão...naturalmente. Entenda isso não deveria surpreender ninguém, mas estamos falando de um alguém que sempre tentou passar despercebido, se sentia incomodado com a presença dos outros em massa, e aqui estamos no meio de elfos brincando na calçada, casais passeando sob o luar, e ele completamente a vontade.
Os passos seguros acompanhando os meus. A forma graciosa que caminha, igualmente leve e firme. A confiança que transborda, o perfume que parece duas vezes mais notável que o normal. Sinto minhas mãos suadas, e quando noto que ele me havia pego o observando e devolvia um meio sorriso esperto, viro o rosto pra frente e sinto minhas bochechas esquentarem.
Mas que raios é isso, vergonha? Com Jason? Ele é última pessoa no mundo de quem eu sentiria vergonha.
- Em seis anos de amizade, nunca a havia visto corar. - fala enquanto continua a andar e noto um sorriso em sua voz.
- Impressão sua.
- Não, não é. - Constata ao me virar de frente pra si e erguer meu queixo com um indicador me obrigando a olhar pra ele - Porque não deixa disso Sam, vamos conversar direito, eu sei que você quer que tudo se acerte. - ele abandona a postura relaxada e me pede sério.
Esses olhos âmbares sempre tiveram um poder imenso sobre mim, mas agora estavam fazendo minhas bochechas inflamarem, e isso é desconfortável.
Como eu queria que tudo ficasse bem, que voltasse ao normal, mas não posso ignorar o que aconteceu.
Você sabe que o garoto lobo está mais que certo. Pare de se fazer de durona, você sabe o que quer e o quanto quer. E também sabe que está errada.
Minha consciência tenta me convencer, mas é em vão. Não vou ceder.
- Converse com suas explicações. - Desvio o rosto de seus olhos e me afasto de seus braços.
Ele suspira, leva a mão ao pescoço retirando o colar e me estendendo.
- Deve o querer de volta. - me fala tristemente.
Toda sua certeza e confiança dão lugar a tristeza. Ele abaixa os olhos pro chão e deixa os ombros caírem. Talvez tenha desistido enfim.
Pego o colar de obsidiana de suas mãos, encaro a pedra, fecho os olhos e suspiro. Ele começa a se afastar, mas o alcanço o virando pra mim.
- Ele é seu - na ponta dos pés, o coloco novamente em seu pescoço - Naquela noite não sabia, mas a verdade é que inconscientemente o entreguei como um simbolismo.
Dou alguns passos, até que me pergunta:
- E o que simbolizava?
Sem olhar pra trás, apenas digo sobre os ombros:
- A entrega do meu coração a você.
Antes de ir embora de vez, o ouço responder:
-Engraçado, porque é a mesma intenção do colar que te dei.
Bạn đang đọc truyện trên: Truyen247.Pro