•Primeiros passos•
Acordo.
E surpresa por ter dormido. Acho que as lesões e a exaustão superaram a dor. É manhã e há um nascer do sol no mar. Acabei dormindo no telhado, estava observando o céu e nem notei quando cai no sono.
Eu me sinto vazia, sem emoções relevantes. Nada me agrada, nem mesmo o nascer do sol parece belo aos meus olhos. Eu vejo o mundo meio cinza, ou ao menos o que restou dele pra mim.
Eu perdi tudo. Vida, rotina, segurança, família, sim família, porque eu tive que me separar deles.
E perdi Jason.
Eu cai em um buraco que dá em um outro mundo. Como no livro que li uma vez. "Alice: no país das maravilhas". A diferença é que não há nada de maravilhoso onde estou. É apenas...vazio.
Eu estava preparada para me separar de minha família, eu já havia aceitado que pra resolver toda essa situação seja de que forma for eu teria de me distanciar, mas assim que tudo se resolvesse eu voltaria pra perto deles.
Mas perder ele é algo irreversível. E eu definitivamente não sei lidar com isso. Além de que, voltar pra onde? A essa altura já nem sei se tenho um local seguro pra voltar.
Nada de importante aconteceu na viagem. Apenas água pra todo lado e algumas ondas mais revoltas e só. Antes de seguir para o outro reino pelo Mar de Edlyn, o navio faria uma parada em Sindel, para reabastecer.
Os dias se passaram arrastados e preguiçosos. Eu mantinha uma rotina de exercícios para manter a forma física. Tinha minha cabine e na maioria das vezes ficava no telhado observando as coisas. Dentro de quinze dias estávamos em Sindel. Não era uma cidade como Illidya e sim uma vila, onde tinha um porto no qual os navios paravam e recarregavam os mantimentos e partiam para o Oceano.
Desci do navio e andei pela cidade até conseguir uma carona em uma das poucas carroças para a área mais rural. Depois de um tempo de caminhada, cheguei à casa de minha tia Allis. Um casarão rústico com uma boa plantação de verduras e legumes aos fundos, dois andares de madeira clara. Passei o cercado e me aproximei pra então um Pastor Belga vir correndo e latindo.
- Acalme-se Brutus sou eu, Samhara! - rosnei para ele de volta.
Ao ouvir o som da minha voz ele pareceu reconhecer e se calou vindo até mim, que passei a mão em sua cabeça.
- Bom garoto.
Andei até a porta e bati. Uma mulher baixa de vestido simples e avental, cabelos loiros meio grisalhos presos em um coque mais afrouxado, um olhar astuto de olhos azuis e pele pálida, me atendeu.
Minha tia Allis era apenas três anos mais velha que minha Tia Agatha, mas loiras costumam ficar grisalhas mais rapidamente.
- Samhara! Que surpresa boa! - disse me abraçando - vamos entre, chegou na hora do almoço.
Entramos na casa, e ela me indicou as escadas.
- Você já sabe o caminho, se quiser tomar um banho fique a vontade, mas a comida está pronta caso queira almoçar.
- Vou aceitar o almoço faz dias que só como carne seca e peixes. - suspirei.
- Então venha, sente conosco.
Almoçamos na companhia de minhas primas gêmeas Katlin e Caterine.
- Então minha querida, o que a trouxe aqui? E porque está sozinha? - tia Allis pergunta.
- Estou fugindo tia.
- De quem Sam? -pergunta intrigada.
- De Mégara e seu circo dos horrores.
Expliquei a ela toda a história, qual ouviu atentamente.
- Certo. Receio que tenha chegado a hora - se levantou da cadeira apreensiva.
- De que?
- De contatarmos O Conselho Bruxo.
- O que é isso? - nunca havia ouvido alguém mencionar esse tal Conselho.
- Sempre que há uma ameaça iminente, O Conselho Bruxo, um tipo de autoridade entre nós, é acionado para que a defesa possa ser ordenada.
- Entendo. E eu faço o que?
- Nada. Desta vez nada. Apenas espere porque antes falarei com Ray pra saber dele.
- Acho que vou ajudar a Caterine na horta então.
- Tudo bem querida. Mas antes me responda o que houve a mais? Você está diferente...
- Nada. Não houve nada.- digo me retirando.
Não contei sobre Jason. E nem pretendo. Isso é algo meu e não interessa a mais ninguém. Agora o que me resta fazer é esperar.
♤♡♤
- Você não vai falar nada! - tio Ray grita.
- Mas é a única coisa a fazer! - tia Allis grita de volta.
- Eles vão matá-la se souberem.- ele argumenta passando a mão pelos cabelos.
- Eles vão ajudar! Vão convocar um exército para a nossa defesa e assim enfrentar as bruxas. - ela gesticula exaltada enquanto os fios dourados acompanham o movimento do corpo.
- Eles não vão promover uma guerra se podem cortar o mal pela raiz. Ela estará em perigo.
Nisto tia Allis se calou.
- Se matarem Samhara, acabam com o perigo. Por isso nada de conselho.
- Me desculpe...- ela diz desviando o olhar para o chão.
- Allis, você não...- sua voz morre aos poucos.
- Sim, eu já fiz. - tia Allis responde de cabeça baixa.
- Quando? - tio Ray pergunta preocupado.
- Hoje de manhã.
Meu tio suspirou e se sentou na poltrona massageando as têmporas. Ele é mediano e magro, de cabelos ruivos e olhos castanhos amendoados. Estamos no dia seguinte a minha chegada, na hora do jantar e eu assisto à discussão do sofá.
- Samhara? - ele me chamou.
- Sim?
- Você tem noção do que acontecerá agora?
- Vou ter que fugir de novo? Sinto muito, mas não vou. Cansei de correr amedrontada.
- Não você não vai fugir. Acho que fuga não é a solução. A guerra é iminente e você tem que começar a armar a defesa.
- Tudo bem que eu quero vingança e não quero correr outra vez, mas eu armar uma defesa já está soando longe demais - ergui uma sobrancelha - afinal só tem eu nessa bagunça.
- E esse é o próximo passo. Mégara tem o exército dela e você terá que montar o seu.
- A não ser que você tenha uma corneta mágica que faça soldados aparecerem eu não faço ideia de como.
- Você irá convocar seus aliados. Aqueles que possuem interesse em manter a raça humana viva. Bruxos brancos, os elementares que estiverem do nosso lado, os lobos não perderão a oportunidade de massacrar alguns vampiros, rixa antiga você sabe, e também o povo da natureza.
- Elfos? O senhor está louco? Esse pessoal é muito isolado e cabeça dura demais pra entrar nessa batalha.
- Você vai precisar deles. E não não vai ser fácil, mas é necessário. Eu vou falar com as famílias bruxas e espalhar a notícia, mas os lobos teremos que ir pessoalmente. Com os Elfos, a mesma coisa.
- "Teremos"?
- Não acha que vou te deixar sozinha nisso acha? - me perguntou ofendido.
- Obrigada pelo apoio, mas porque tem de ser eu? Porque não outra pessoa pra se encarregar disso? - questiono. Acontece que mover um exército parece algo grandioso demais.
- Porque você está sendo caçada e o único modo de se manter viva é enfrentar quem te ameaça. Nós sabemos que estão atrás de você pra ressucitarem Agnes então além de acabarmos de vez com essa situação ainda impedimos uma invasão das bruxas.
- Certo - engoli de mal jeito a justificativa - Obrigada por estar ao meu lado.
- Não há de quê. Prepare-se, começaremos nossa jornada depois de amanhã. Daqui a três dias alguém do Conselho vira aqui portanto temos pouco tempo.
- Já me acostumei a peregrinar.
- Vocês tem certeza ? - Tia Allis pergunta.
- Não tenho lá muitas escolhas.
- Não se preocupe querida, eu vou ir e voltar antes que você perceba. - ele respondeu a selando.
♤♡♤
Depois de dois dias estávamos de partida. Iríamos fazer primeiro a visita aos lobos, que estavam mais perto nas florestas vizinhas.
Estamos agora na mata. Fica a alguns quilômetros de Sindel e seria apenas uma floresta comum como todas as outras exceto pelo fato de que há uma alcatéia de lobos vivendo nela.
E eles são uns cabeças duras.
Acredito que eles não perderiam a oportunidade de arrancar as cabeças de alguns vampiros assim de graça.
Eu e tio Ray entramos faz uma hora e não tivemos nem sinal deles ainda.
- Você acha que vai demorar muito? - questionei me sentando no chão da clareira.
- Daqui a pouco teremos alguma coisa - ele responde alto - na verdade eles já estão por aqui - completa em um sussurro no meu ouvido - dá pra sentir o olhar de um deles.
- Tenho a sensação de estar sendo observada também. - sussurro de volta.
- Bem querida o que acha de explorarmos mais um pouco a floresta? - ele volta a falar em tom normal.
- Acho ótimo. Tem um rio que corta aqui certo? Podemos tentar achar para montarmos acampamento.
Dito isto nos colocamos a caminhar, sempre com a sensação de observação. De fato havia um rio que cortava a floresta e seguia para o mar. Andamos por um bom tempo até ouvirmos o que pareceu barulho de água, minutos depois encontramos o tal rio. Montamos nosso acampamento como se fôssemos pessoas normais. O que era meio difícil afinal ninguém normal entraria em uma floresta.
E nada.
O tempo passou e nada aconteceu. Ainda pudia sentir a presença de alguém nos observando, mas ele nada fazia além disso. Observar. A noite caiu trazendo um luar salpicado de estrelas que eram refletidas nas águas límpidas e serenas.
- Porque essa demora? Já deveriam ter nos interceptado, atacado, sei lá qualquer coisa.
- Calma eles são espertos, apesar de tudo já devem ter percebido nossa diferença dos humanos comuns.
- Como? Não usei magia o dia inteiro?
- Cheiro. Eles podem perceber pelo faro. Estão vendo até aonde vamos, o que pretendemos, talvez queiram nos atacar de surpresa enquanto dormimos.
- Então eu tive que lutar pra acender a droga de um fogo no modo comum a toa? Ok, então o que acha de dormimos mais cedo e acabar com tudo isso de uma vez?
- Acho ótimo, já estou cansado desse jogo.
Com nossas barracas montadas entramos e fomos dormir.
Talvez tio Ray, porque a emoção impediu qualquer resquício de sono de se aproximar de mim. Como esse pessoal tem os sentidos muito aguçados, deitei-me e deixei a respiração lenta e compassada aparentando estar dormindo.
Então milhões de coisas passaram em minha mente. Entre elas o porque de eu estar fazendo isso? Por quê me importar com as pessoas? Elas não se importam comigo. Eu as salvei e elas me caçaram! Por quê não deixar Mégara destruir a raça humana como quer? Só se for por mim, pra salvar a minha pele. Mas pra que me salvar? Nunca mais terei minha vida de volta mesmo. Já não posso voltar pra minha vila, já não tenho meu melhor amigo, e nem mesmo os planos de assumir o mercado da família em Wallya. Então, qual o sentido disso tudo?
Lembro de Jason. Ele não ia querer que eu desistisse da minha vida. Ele ia querer que eu seguisse em frente. Que continuasse.
" Você tem que fazer o certo, porque é o certo." posso ouvi-lo dizer.
"E o que eu ganho com isso?" perguntava.
"Minha eterna gratidão?"
"A não, não vale!"
"Serve um abraço e um doce?"
"Melhorou" eu respondia rindo. Ele era um ótimo cozinheiro. Fazia um doce de amoras espetacular. É, eu me vendia por abraços e doces não me julguem.
Era ele quem me acalmava quando estava com raiva de algo. Quando fazer o certo não me agradava ou estava tentada a quebrar alguma regra.
Michel viu quando o coveiro arrastou o corpo dele - as palavras de Aghata voltavam na minha cabeça, ecoando, rangendo.
Decidi que lutaria por ele, que salvaria vidas por ele e por mais que fosse difícil eu iria vencer, por mais que o mundo tivesse acabado pra mim eu iria continuar. E sempre que tudo parecesse perdido lembraria disso e nada, nada nem ninguém poderia me parar agora.
Além de cumprir a minha promessa. Eu iria estourar a cabeça daquela megera com minhas unhas, e isso eu faria por mim.
Levei a mão ao pingente e algumas lágrimas rolaram pelo meu rosto.
- Por você Jason. Só por você.
Sussurei baixinho e com a imagem de seu rosto sorridente, adormeçi.
♤♡♤
Acordei com uma movimentação na barraca. Continuei de olhos fechados e a respiração lenta. Alguém passou por mim e segurou na borda acima da minha cabeça no colchonete. Outro na borda abaixo de meus pés. Sou erguida e começo a ser carregada.
- Vê se não deixa ela cair seu desajeitado. - sussurra um.
- Cuidado você pra não tropeçar nos próprios pés.
- Dá pra calar a boca vocês dois? - sussurra um terceiro próximo.
- OK chefia. - respondem em uníssono.
Após longos minutos de caminhada eles pararam. Sei que seguimos por caminhos bem tortuosos, pois me lembro de serpentear enquanto era levada. Sou colocada no chão.
- E agora o que fazemos? - pergunta um.
- Esperamos eles acordarem?- diz um segundo.
- Podem acordar os intrusos - diz um terceiro de uma voz imponente.
- Acho que não é necessário. - ouço a voz calma e controlada de meu tio e acabo por levantar também.
- A delicadeza de vocês passou longe. - me espreguiçei.
Estamos no meio do que parece a tribo. Vários olhos curiosos nos encaram de longe enquanto os homens que nos trouxeram meio que nos inspecionam.
- Quem são vocês? - diz um homem forte de cabelos negros, com uma barba bem feita e um porte lupino que reparei em todos os presentes.
- Meu nome é Raymond, mas me chamam de Ray.
- O meu é Samhara e do que me chamam pouco importa. - recebi um olhar repreensivo de meu tio.
- Certo. Sabemos que vocês são bruxos o que querem conosco para invadirem nosso território? - pergunta o mesmo homem, que aparenta ser o alfa.
- Temos uma proposta para vocês. - diz meu tio pacientemente.
- Que tipo de proposta vocês podem querer nos oferecer? - retruca arrogante.
- Tem a ver com morte e certos seres com presas. - Raymond sorri de canto.
O olhar de arrogância do homem muda para interesse.
- Creio que este não seja o lugar adequado para esta conversa. Vamos para meu escritório.
Ele nos leva para uma construção de madeira perto dali. Mas somos interceptados na porta.
- Antes é claro, as armas. - ele para e nos encara.
Meu tio tira as dele e coloca no chão. Então ele olha pra mim.
- Sinto muito, mas não será possível - cruzo os braços - minhas armas, minha garantia. E eu sou uma bruxa, se quisesse atacar não precisaria delas. E nem tentem retirar a força.
- Samhara!- Ray me repreende.
- Sinto muito. - encaro o suposto líder no fundo de seus olhos mostrando que não voltarei atrás. Ficamos a nos encarar por alguns segundos, até que ele dá um sorriso de lado aparentemente satisfeito com minha postura.
- Gosto da sua atitude garota. Você tem garra. Entrem, mostraram um pouco do seu valor.
Entramos no recinto com meu tio de queixo caído por não termos sido atacados como ele provavelmente pensou que seríamos por conta da minha atitude. O local é iluminado por velas, com três poltronas de pele em frente a uma mesa de madeira, com outra poltrona atrás. Havia uma lareira no fundo esquentando o ambiente e completando a iluminação.
O homem sentou- se atrás da mesa, com um outro homem em pé ao seu lado, e um mais jovem do outro.
- Sentem-se - disse - Eu me chamo Maxuel, e sou o líder dessa tribo.
Bingo.
- Esses são Cassian e Veydnir - disse apontando para o mais jovem e para o mais velho - meu filho, e meu homem de confiança, também meu irmão e meu Beta. Qual é a proposta que vocês tem?
Hora de negociar.
☆♤•♤☆
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