• É nisto que dá me meter•
Acordei com o nascer do Sol. Os raios atingiam a superfície lisa e serena do lago e eram refletidos com um intenso brilho.
Sem perder tempo tomei um banho com um bom mergulho pra despertar e saí me vestindo normalmente e preparando um café da manhã com os mantimentos que tenho.
Bem, hora de continuar. Acho que vou voltar pra estrada.- pensei comigo mesma.
– Vamos lá Devan, vamos voltar pro caminho.
Digo enquanto acaricio seu focinho. Ele dá um leve relincho e balança a crina "resolveu continuar foi?" Ele parece querer dizer.
– Fazer o quê? Não tem outro jeito.
Acabei por seguir a pé enquanto voltava pela trilha. Depois de um tempo saí na estrada e por fim montei, seguindo a meio galope.
– O que será que houve? Será que ele foi mesmo embora? Bem, já que é...
– Falando sozinha Samhara?- Ele me interrompeu.
– Pensei que houvesse ido embora.
– Eu disse que estaria com você não disse?
– Não quero que fique por obrigação.
– Não estou. Depois de tudo que passamos, acho que podemos prosseguir não?
– Não sei. - suspiro.
– Samhara escute, eu gostaria...de...te pedir perdão - ele solta deixando a postura - Não foi aquilo que queria dizer.
– Foi sim e sabe disso. Tio não vou lhe obrigar a ficar, se não pode conviver com minhas maneiras de lidar com as situações é melhor que volte.
– Sam eu estava em choque. Até então eu...eu duvidava que você pudesse fazer isso. Eu achava que estava blefando, foi um choque pra mim e...
– Então porque me impediu na vila dos lobos se achou que era um blefe? Já entendi que para o senhor eu agi errado..
– Não Samhara não é isso.
– É o que então? Sei que está descepcionado comigo.
– Não. Não é com você que estou decepcionado - ele suspira - é comigo.
Ele abaixou a cabeça.
– É com minha covardia. É com a minha incapacidade.
– Do que está falando?
– Quando o ladrão te levou eu não fiz nada! Eu fiquei olhando desesperado! Quando eu ouvi eles rindo e te xingando eu não fiz nada eu nem ao menos tentei...eu não estava lá, pra te impedir. Pra lhe ajudar - ele completa cabisbaixo.
– Tio - chamo e ele me encara - Não havia nada que o senhor pudesse fazer. Não havia nada.
Olhei em seus olhos castanhos cheios de vergonha.
– Quanto a me impedir, eu fiz o que fiz porque quis. Não estava fora de mim, não estava fora de controle. E da última vez o senhor usou um forte argumento. Mas eu te pergunto: Até quando acha que a memória de Jason surtirá efeito sobre mim? - continuei encarando.
Silêncio.
– Parece que você está se acostumando com a dor afinal - Ele fitou um ponto qualquer.
Dei uma risada sarcástica.
– Não tio, ainda dói. Dói muito e todos os dias, todas as horas, todo momento. Eu nunca vou me acostumar. Talvez seja por isso que não sinto mais a vida como deveria. Acontece que apesar de doer, ele não me controla. Ele me controlava, quando estava vivo. Agora não mais. Não faz sentido me submeter a sua memória. Enfim, não havia nada que o senhor pudesse fazer pra impedir.
– Tem certeza? - ele me pergunta.
– Absoluta. - respondo tentando passar o máximo de certeza possível.
– Bom, então podemos continuar?
– Claro - dou um sorriso de lado e aperto sua mão estendida.
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Estamos a cavalgar a três dias estrada a fora. Já passamos por duas vilas e um bom pedaço de chão. Ao redor a vegetação segue campestre com vastos campos verdes salpicados por pequenos arbustos.
Nuvens densas e escuras ameaçavam uma bela tempestade e se não achássemos um lugar para servir de abrigo estaríamos bem encrencados. A boa notícia é que até o fim do dia devíamos começar a alcançar os bosques de Lyséria. O jeito é torcer pra não chover antes.
Meu tio cantarolava alegremente uma canção qualquer. Desde a nossa briga tudo ocorreu bem e não tocamos mais no assunto. Toda aquela situação me fez pensar em como eu era antes...
Se fosse antes eu não teria feito o que fiz. Na verdade eu só matei os vampiros por que senão eu é quem morreria.
Se naquelas batalhas os irmãos tivessem desistido eu teria os deixado ir embora. Eu acreditava nas pessoas. A verdade é que só matei Dillan por medo de ele se soltar e vir atrás de mim, e seus irmãos iriam destruir a vila. Eu sempre hesitei por milésimos de segundos com todos eles.
Por que eu era ingênua a ponto de achar que eles "iriam embora". Porque eu tinha misericórdia. Eu tinha esperança. O máximo que eu tinha matado na vida eram galinhas e de um momento pra outro tive que assassinar três pessoas. No espaço de um dia.
Mas a perseguição daquelas pessoas me mostrou que não importa o quanto você faça por elas, você não terá reconhecimento ou retorno, ou gratidão.
A perda do meu melhor amigo me fez enxergar de outra forma. Me fez ver que a vida é cruel e que o mundo não é o cara legal da história. E se o mundo não é o cara legal pra mim, pra que eu vou ser a garota boa com o mundo? Se a vida é cruel comigo, porque eu devo ser legal com ela ou com as pessoas?
Se ninguém se importa com ninguém porque eu devo me importar?
Foi por isso que eu fiz o que fiz. Eu sabia que eles continuariam a fazer a mesma coisa com outras moças e além disso aproveitei pra ter a minha vingança pessoas pelo teatro que eles aprontaram comigo.
Se fosse antes eu teria simplesmente fugido ou os matado rapidamente. Porque eu tinha esperança de que isso parasse, mas isso não foi antes, foi no agora. E eu já não possuía mais esta dádiva dos puros.
Eles não foram bons comigo. Eu não iria ser com eles.
– Socorro! Socorro!
A súplica passou zunindo como uma flecha por nós. Ao olharmos na direção, vimos alguém dependurada em uma vassoura enquanto o objeto era montado por uma bruxa.
Eu não deveria me meter nisso.
– YA! - grito pra Devan atiçando as rédeas, fazendo meu cavalo correr.
Me concentrei no ar ao meu redor, em movimento é bem mais difícil conseguir concentração. Por fim consegui a conexão necessária, manipulando a atmosfera e criando ventos fortes e os mirando na vassoura da bruxa.
A vassoura rodopiou no ar violentamente, mas a dona parecia ter bastante experiência com esse tipo de situação. Infelizmente com toda a movimentação e velocidade em que ela voava, não podia simplesmente "paralisá-la" como fiz com os ladrões.
Se eu colocasse mais força, a moça que estava dependurada poderia cair.
– Devan se você entende o que estou dizendo, pelos Céus, mantenha o ritmo - peço na esperança de ele entender.
Peguei meu arco longo e tirei uma flecha abençoada da aljava. Disparei o projétil com plumas negras que se cravou nas costas da bruxa. Atirei outra e esta acertou a cabeça. O corpo inértil caiu da vassoura que também começava a cair, mas consegui fazê-la pousar em segurança.
Tio Ray me alcançou e nos aproximamos da moça, que segurava na vassoura com tanta força que os nós dos dedos já estavam brancos, enquanto mantinha seus olhos fechados.
– É toda sua. - apontei com a cabeça pra ela.
Ele vai se sair bem melhor no quesito gentileza do que eu.
– Menina, está tudo bem já passou, você está em terra firme agora - disse suave enquanto tocava seu braço.
Ela se surpreendeu com o toque e lentamente abriu os olhos. Vendo que era verdade, suspirou aliviada e soltou a vassoura.
– Obrigada! Não sei como agradecer vocês me salvaram! - respondeu abraçando meu tio.
– Na verdade quem te salvou foi ela ali - ele apontou com o polegar pra mim enquanto era sufocado pela garota.
- Ah, desculpa - envergonhada e vermelha como um pimentão soltou seu pescoço
Ela olhou pra mim e pareceu recuar um pouco.
– Obrigada, eu realmente não sei como agradecer! - ela agradeceu ainda mantendo distância.
Quem diria, eu, assustando as pessoas.
– Não há de que - respondo - Qual seu nome?
– Ellyna Manttern.
Ela tinha os cabelos negros assim como os meus, mas sua pele era bem pálida, quase translúcida diria. Seus olhos eram fundos e de um verde bem forte. Era baixa e possuía um corpo esguio.
– Meu nome é Samhara. Me diga, porque uma bruxa das trevas estava sendo sequestrada por uma bruxa negra?
– Como sabe que sou uma bruxa das trevas? Você é uma caçadora? - ela respondeu recuando mais e ficando na defensiva.
– Suas características não são lá muito sutis. - dei uma risada sarcástica - e não, não sou uma caçadora. Sou uma bruxa elementar.
Fiz uma chama surgir na palma da mão.
– Mas você não respondeu minha pergunta. - acusei.
– Não sei - ela diz com um suspiro de frustração - Ela só disse que eu tinha que ir com ela senão morreria. Eu disse que não iria, nisso ela incendiou minha cabana e me sequestrou.
– Hm. Estranho...mas isso não vem ao caso agora. De onde você é Ellyna?
– Eu vivo na floresta que fica a alguns quilômetros atrás. Bem, vivia.
– Passamos por lá, sabemos onde fica. Mora sozinha? Você parece ter minha idade. - questionei.
– Sim, perdi meus pais quando tinha treze anos. Hoje tenho dezesseis. Infelizmente não tem como morar na cidade com minha aparência.
Isso era verdade. Bruxas das trevas não existem em grande número como as elementares e as alquimistas. São um grupo menor. Apesar do nome, elas não são "do mal". Existem as que seguem a magia sombria, mas era opcional.
Elas eram um tipo que sofriam pela aparência destacada. É difícil se misturar com os humanos tendo seus fortes traços. Geralmente moram isoladas. Seus poderes são ligados a tudo que se refere a morte. Espíritos, cadáveres, podem curar doenças e adiar o tempo de vida de alguém, não mais que alguns dias de vida, afinal não se pode enganar a morte.
São ótimas combatentes de magia sombria afinal ela usa de maldições, pragas, doenças, e essas são coisas que as bruxas das trevas podem enfrentar. Podem sentir maus presságios, e conversar com os corvos.
Os corvos são tidos como mensageiros da morte, maldições e etc.
– Se quiser pode vir conosco até os bosques de Lyséria. Pelo menos estará protegida e poderá acampar. - Meu tio ofereceu.
– Se não for incômodo...
– Não há problema algum. - respondo.
Seguimos para nosso destino. Tio Ray ofereceu carona e eu achei melhor assim. Ela não parecia confortável com minha presença.
Com o fim do dia, a chuva começou a cair levemente, depois de seguir por mais um tempo durante a noite alcançamos os bosques de Lyséria, mesmo que um pouco mais tarde que o previsto e totalmente encharcados apesar das capas.
Montamos nossas barracas e ela pareceu hesitante ao entrar.
– Pode vir Ellyna eu não mordo. Mas se quiser dormir na chuva também não me importo. - entrei na barraca.
– Ah claro. - respondeu me seguindo.
Sequei a nós duas e nos deitamos. A essa altura já estava uma tempestade imensa, com direito a raios e trovões e ventos bastante furiosos. Mas a vegetação do bosque amenizava um pouco a tormenta.
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Acordamos e finalmente a chuva havia parado. A situação da clareira estava um horror. Cheia de galhos caídos e lama. Após limparmos a área, consigo fazer uma fogueira, e tomamos nosso café.
Começamos a arrumar nossas bagagens para seguir viagem. Estava acabando de colocar minhas coisas na bolsa pendurada na sela de Devan, quando fomos alvos de uma explosão. A fumaça invadiu o local e após ser arremessada e bater contra uma árvore, me levantei tossindo.
Dissipei a fumaça encontrando a causadora de tudo isso no centro da clareira encarando Ellyna. Era a bruxa que eu achei estar morta, droga, devo ter pego as flechas erradas.
– Você agora vem comigo pirralha.
Ela é tão asquerosa quanto todas as outras. Essa tinha longos cabelos vermelhos sebosos, alta e magra, com garras afiadas e a pele craquelada. Acho que sem os sinais de bruxaria ela seria uma bela mulher. Mas com todas essas deformidades era impossível.
– Eu não vou a lugar nenhum! - Ellyna responde.
– E vai fazer o que? Vai me atacar com as penas dos seus amiguinhos corvos? - debochou.
– Ela não sei, mas eu vou te dar isso!
Arremessei-a longe com uma bola de fogo. Ela se levantou e contra atacou com o mesmo, mas desviei seu ataque.
– Essa luta não é sua garota! Quero apenas a outra! - ela diz.
– E você acha que vai explodir meu acampamento e sair assim? - repondo.
– Já que faz questão vai morrer junto!
Ela fez com que surjisse uma névoa de pragas na clareira, retirando minha visão.
Desculpa, mas eu não caio nesse truque de novo.
Incendiei as pragas as reduzindo a cinzas. A bruxa agarrou Ellyna e começou a arrastá-la.
Dessa vez lançei um rastro d'água que a desequilibrou. Rapidamente se levantou criando rajadas de vento fortes ao seu redor.
É a primeira vez que enfrento uma igual a mim. Por isso não consegui derrubá-la da vassoura.
Fiz o mesmo usando fogo. Atacamos ao mesmo tempo e uma anulou a outra. Ela veio até mim e começou uma luta.
Me esquivei de suas garras e a atingi em suas costelas com um chute. Ela rodopiou, mas não perdeu o equilíbrio e voltou a atacar mirando meu pescoço e meu rosto. Conseguiu agarrar meu cabelo e me jogar longe. Me levantei a tempo de evitar seu chute. Ela tentou um soco e eu segurei seu punho o torcendo e virando para as costas, dando outro chute em sua coluna e a jogando no chão.
Ela se levantou, nos encaramos, ambas cansadas, imundas e ofegantes.
Seu cabelo então começou a levitar e as mechas terminavam em pontas tão afiadas quanto adagas. Ela começou a chicotear o ar, e então mirou em mim. Me esquivei de um, dois, três, dei uma cambalhota pra evitar o quarto, mas no quinto prendeu minha perna e me arremessou contra uma pedra.
Me agarrou novamente e bateu uma, duas, três vezes contra o chão. Me levantei cambaleante cuspindo sangue. Um de seus "chicotes" agarrou meu pescoço ela se aproximou.
– Agora irá morrer de graça por se meter no problema dos outros.
Ela enfiou suas garras em meu peito adentrando cada vez mais, uma névoa negra saía dali. Um ruído parecido com um chiado escapava da minha garganta.
"Tudo isso pra morrer por essa megera. Sabia que não devia me me enfiar em sequestros alheios" pensei.
Quando achei que suas garras atingiriam meu coração, ela parou. Sua pele foi rachando até ruir em cacos e seu corpo se despedaçar em minha frente.
Meu pescoço foi liberado e eu caí ao chão sem forças, suja de lama e ensanguentada.
Em pé, atrás de onde antes estava a bruxa, Ellyna se encontrava com os cabelos e os olhos completamente brancos e uma névoa esbranquiçada adentrava sua boca entreaberta, suas mãos espalmadas pra cima, acima de onde estava o que restava da megera, de onde saía a tal névoa.
Sem aguentar mais, fechei os olhos para a escuridão.
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