• Amizade?•
Escutei vozes ao longe, distantes, densas, como se eu estivesse embaixo d'água.
Será que eu morri?
Não, se tivesse morrido não estaria com essa dor de cabeça horrenda. Lentamente abri os olhos, mas a claridade os feria.
– Arrrg! - Protestei com a dor.
– Vejam só quem acordou. - ouço uma voz desconhecida dizer.
– Samhara! - duas vozes conhecidas soam em uníssono.
– Onde estou? - pergunto ainda meio grogue.
– Em minha casa senhorita. - a voz desconhecida diz.
Abri os olhos me deparando com uma senhora idosa me encarando com seus olhinhos azuis por cima do óculos.
– E quem é a senhora?
– Me chamo Esther querida.
– Ela nos ajudou a cuidar de você Samhara. - meu tio diz.
– E onde fica essa casa?
– Ainda estamos nos bosques de Lyséria Sam.
– Os corvos me disseram que havia uma bruxa branca morando no bosque. Eles nos trouxeram até aqui e Dona Esther nos recebeu de braços abertos.
– Como está se sentindo meu bem?- pergunta a senhora.
– Com uma dor de cabeça horrenda - pressionei as têmporas.
– Ah sim. Tome este chá aqui, vai melhorar. - ela me estendeu uma xícara e eu aceitei bebendo o líquido amargo.
– Você vai ficar bem querida, passou bem perto da morte se posso dizer - ela continua.
– Uma pena que não pude negociar com ela.
– Parece que o humor dela está voltando. Vai sobreviver - tio Ray fez piada.
– Sam...- Ellyna começa - me desculpa. Tudo isso foi culpa minha, devia ter voltado pra minha floresta ou ao menos feito alguma coisa...
– Ellyna - interrompo a torrente de palavras chamando sua atenção - Não foi culpa sua. Você inclusive me salvou. Obrigada.
– Sim, mas eu demorei muito! Eu devia ter reagido antes! Podia ter evitado! Tinha que ter lu...
– Ellyna! Calma, respira - a mulher já estava ficando até vermelha - o importante é que você me salvou. Não importa se você demorou. O importante é que fez. E mais uma vez, obrigada.
– Acho que estamos quites então - um sorriso contente abre em seu rosto.
– Acho que sim. Tudo bem com o senhor tio?
– Eu bati a cabeça quando arremessado e desmaiei. Mas fora isso tudo bem.
– Ótimo. Aai!- tentei me levantar, mas senti uma fisgada. Olhei meu peito e havia um curativo nele.
– Cuidado. Você sofreu um ferimento muito grave. Por pouco ela não atingiu seu coração.
– Eu levei uma bela surra não? - dei uma risada sem humor - olha pra isso.
Me avaliei. Estava toda arranhada com um curativo na região do peito, cheia de cortes e hematomas. Meus músculos doíam e cada centímetro do meu corpo protestava.
– Teve sorte. Além de viva não quebrou nenhuma costela.
– Tudo que eu menos precisava era quebrar outro osso em tão pouco tempo. Ellyna, o que foi aquilo? - a encarei.
Eu não sabia que bruxas das trevas podiam fazer aquilo.
– Quando...quando uma pessoa pratica bruxaria sombria ela fica vulnerável. É como se expusesse a alma demais. Nisso eu pude...pude sugar a alma dela. Eu a dissipei depois, mas, usei a energia vital dela em você.
– Então eu realmente morri?
– Quase. Estava por um fio. Pude restaurar sua aura com a dela.
– Ok - digeri a informação - Muito obrigada.
– Não há de que - sorriu.
Não podia deixar de reparar que Ellyna estava com uma aparência mais fraca, parecia um pouco mais magra e seus olhos criaram um par de olheiras fundas. Realmente aquele feitiço exigiu muito dela.
– Eu posso tomar um banho? - pergunto.
– Claro meu bem. Saindo do quarto a segunda porta a direita - a senhora respondeu.
Agradeçi e dona Esther me entregou uma toalha e uma roupa qualquer. Me dirigi ao local e retirei minhas roupas ficando apenas com as roupas de baixo. Me olhei no grande espelho encostado na parede.
Estava coberta de traços rosados que antes foram arranhões. Um grande hematoma roxo se encontrava em toda a extensão do meu tronco no lado esquerdo, além de outros menores espalhados por meu corpo. Não arrisco nem encostar neles. Retirei o curativo de meu peito e no local cinco feridas formando um círculo estavam depositadas, pra me lembrar daquelas cinco garras que quase tiraram minha vida.
Um corte na testa acima da sobrancelha, e uma cicatriz perto do pescoço. Engraçado como na hora não senti nada isso. E com certeza Dona Esther e Ellyna trabalharam bastante em meus ferimentos.
Retirei o resto das roupas e tomei um belo banho. Ao sair fui até a cozinha onde todos conversavam.
– Como está? - Dona Esther pergunta.
– Bem melhor. A dor de cabeça ao menos passou - sentei a mesa e peguei um pedaço de pão - Quanto tempo estou desacordada?
– Dois dias completos. - Tio Ray responde.
– Que beleza. Dois dias de atraso. Partiremos assim que terminarmos nosso café.
– Não acha precipitado? Sam você está muito machucada. - meu tio argumenta.
– Não mesmo. Já atrasei uma semana por causa da maldita perna quebrada. Não vou parar agora por conta de uma surra. - virei o copo de suco na garganta - Dona Esther, Ellyna não tem onde ficar, poderia oferecer um quarto pra ela enquanto ela se reestabeliza?
– Sam, nós estávamos conversando...Ellyna, melhor você dizer. - meu tio começa, mas passa pra morena.
– Eu, eu quero entrar para o seu grupo. Eu quero poder ajudar nessa guerra. Eu sei que sou péssima em luta, mas posso aprender a controlar meus poderes e ser útil! - ela começa.
– Eu me comprometo a ensiná-la. - meu tio completa.
– Eu sou muito grata por ter salvo minha vida Ellyna, mas isso quitou eu ter salvo a sua. Agora prosseguir conosco eu acho bastante arriscado. - neguei com a cabeça.
– Por favor Sam eu não tenho mais nada pra onde voltar - suplicou - não precisa se preocupar com minha segurança mais, só peço um lugar ao lado de vocês na viagem.
Relutei. Mais uma carga que poderia me trazer mais problemas. Por outro lado também poderíamos deixar ela pra trás pra ganhar tempo caso algo desse errado, e se ela realmente aprimorar seus poderes vai ser bem útil.
– Tanto faz. Contanto que partamos daqui a meia hora. - me levantei - Sua comida está maravilhosa Dona Esther. Vou pegar meus pertences.
Me levantei e andei até o quarto em que estava. Peguei minhas armas e minha roupa imunda. Levei-as para fora e fui recebida por um relincho empolgado.
– Devan! Que saudade amigo. - passei a mão em sua crina.
Lavei e sequei minha roupa em alguns minutos. Não podia seguir caminho de saia e sapatilhas, minha calça e minhas botas eram bem mais apropriadas. Após trançar meu cabelo e enfaixar aquele hematoma tenebroso me vesti e me equipei adequadamente. Ainda estava esperando meu tio e Ellyna acabarem, então decidi praticar um pouco.
A idiota aqui esqueceu de diferenciar as plumagens das flechas comuns das abençoadas e isso quase me matou. Como não tinha tempo pra trocar as penas agora, apenas coloquei-as em aljavas separadas.
Testei meus arcos e eles estavam ótimos, estava com certa dificuldade ao atirar devido as dores musculares, mas as ignorei acertando os alvos mesmo que não tão bem quanto antes. Finalmente eles apareceram acompanhados de Dona Esther.
– Queria agradecer todo o cuidado que teve comigo. Obrigada por me curar e me desculpe não poder ficar mais, infelizmente não dispomos mais de tempo. - segurei as mãos da senhora.
– Não há de que querida. Sempre será bem vinda em minha cabana. Todos vocês. - ela diz. - Boa sorte em sua jornada.
– Adeus - a abraço - fica bem.
– Oh querida ficarei sim.
Saímos da clareira da feiticeira e voltamos a trilha. Teríamos que sair dos bosques de Lyséria e passar pela vila de Avnor, para continuar pelo caminho e assim o fazemos.
Os dias se passaram lentos, principalmente por conta da minha recuperação. Todas as noites Ellyna trabalhava um pouco em meus ferimentos para que se curassem rapidamente. Tio Ray é um bruxo branco, ele também abençoava minha bebida para o mesmo fim.
Assim que conseguimos um cavalo para a nossa nova companheira a viagem se tornou mais rápida, uma vez que Caramelo agora não precisa levar duas pessoas, e assim podíamos manter o ritmo a meio galope por quase um dia inteiro. Devo mencionar que Ellyna mudara a cor dos cabelos. Agora estava ruiva, o que combinava bastante com seus olhos verdes claros, e contrastava menos com sua pele demasiada pálida.
Segundo ela, apesar de estar ruiva, chamaria menos atenção pelas cidades onde passaríamos.
E realmente. A aparência original de Ellyna a denunciava na hora. Seus cabelos são de um preto sem igual. É até surreal diria. Ruivas sempre são alvos de maus olhares, sempre tem a desconfiança de todo mundo, mas era isso, desconfiança, se Ellyna aparecesse na cidade com sua aparência natural, certeza que os guardas arranjariam uma desculpa qualquer para prendê-la.
Até sua pele parecia menos translúcida com a mudança.
Mas havia algo que estava me incomodando profundamente e que me fazia rondar a área onde estivéssemos acampados todas as noites.
A sensação de estar sendo observada.
Antes eu sentia isso em alguns momentos. O que eu achei até ser paranóia minha, mas depois da minha bela surra, eu sentia mais que observação. Estávamos sendo seguidos e bem de perto. E isso estava me dando belas noites de pouco sono e muita preocupação. É frustrante você sentir isso ir atrás todas as vezes e não encontrar nada. Nem meu tio nem Ellyna pareciam notar.
Falando na mesma, ela se mostrou empenhada em seu treinamento. Treinava todos os dias depois das refeições. Ela já tinha a habilidade de conversar com corvos e sentir a presença de espíritos, além daquele feitiço que usou na megera ruiva, mas não sabia ainda como dominar esses espíritos e os corvos.
Além da magia ela estava aprendendo a usar a espada e a faca, mas a primeira opção pareceu ter se adaptado melhor. Com seu corpo esguio ela é bem ágil e se saiu bem na luta. Ao contrário de mim.
Nós somos o oposto uma da outra. Ela se sai perfeitamente bem na luta, e eu sou péssima, ela se adaptou a espada e eu uso facas e adagas. Ela não consegue se dar bem com o arco, enquanto este eu domino.
O que realmente nós duas somos parecidas é no quesito magia. Tanto eu quanto ela reagimos melhor sob pressão. Segundo ela, ela só conseguiu me ajudar no desespero, ao me ver morrendo.
E eu, bem, eu só amplio meus poderes quando perco o controle das emoções. Ódio, raiva, medo. Esses são os gatilhos. E eu não senti nada disso naquele momento em que quase morri.
Entendam, não é que eu queira morrer, só não tenho medo da morte.
Eu quero continuar bem viva.
Voltando ao assunto, apesar da falta de controle emocional ser o gatilho para minha "transformação" eu tenho completa ciênscia do que estou fazendo, ao contrário do que pensam. Realmente eu tenho que me segurar, eu tenho que lutar contra a tentação de deixar o outro lado tomar conta, mas sempre consigo o controle. Se eu deixar, viro apenas impulso, e aí o racional vai embora. E como nunca deixei isso acontecer não faço idéia se ele voltaria.
Até o dia do ataque á vila, nunca havia acontecido antes. Desde então duas vezes e em um curto período de tempo. Era bem comum eu acabar liberando explosões de energia quando perdia o controle, mas era só isso.
Ellyna e eu acabamos por nos aproximarmos. Mais do que eu queria confesso. Ela bem gentil e prestativa, sempre querendo ajudar e é bem disciplinada e focada no que quer. Ela evoluiu muito em pouco tempo.
Já não é mais a coelhinha assustada que encontramos, mas continuava com sua doçura e delicadeza. Conversamos diversas vezes ao dia sobre tudo quanto há. Apesar de eu não ser uma companhia muito agradável.
Infelizmente não faço comentários felizes, nem dou risos alegres. Ela me lembra uma criança as vezes, se encantando com a paisagem, os cantos dos pássaros, faz algumas brincadeiras de uma hora pra outra. Alegria define Ellyna.
– Samhara? - Ela me chama.
– Sim?
– Como era sua vida antes? Eu já te perguntei sobre quase tudo, mas disso ainda não falamos - jogou uma frutinha na boca.
– Era chata e monótona como a de todo mundo - olhei pro horizonte.
– Então você gosta da sua nova vida?
– Apesar de quase morrer todo dia, eu gosto da emoção. Gosto do perigo. Sempre gostei e sempre fazia coisas escondidas - involuntariamente soltei um sorriso nostálgico.
– É a primeira vez que te vejo sorrir sem sarcasmo.
– Não tenho tido motivos para sorrir ultimamente - olhei pra ela.
– E antes tinha?
– Tinha...eu era bem diferente dessa Samhara que você conhece.
– Me conta vai! Quero saber!
– Eu trabalhava com meu primo na mercearia da família. Nós fazíamos os pães juntos, na maioria das vezes a gente acabava fazendo guerra de farinha e saíamos os dois imundos da cozinha. Minha tia quase nos matava.
– Devia ser hilário - ela ri imaginando a situação.
– E era! Minha tia surtava com a bagunça. E sempre repetia " vocês só dão prejuízo desperdiçando desse jeito"! - imito a voz de tia Aghata assumindo sua postura "brava" e fazendo Ellyna gargalhar.
– Isso quando não era dia de festa e virava água dentro dos ponches estragando tudo. A minha maior travessura era sujar de propósito as toalhas da Dona Hilda.
– E você fazia isso sozinha?
– Não...fazia acompanhada, muito bem acompanhada.
– Hmm e esse sorriso ai? Quem que ia com você? - ela me pergunta maliciosamente.
– Não importa. - digo secamente.
– Aposto que era namorado - Ela abre a cara num sorriso que eu achei que ia rasgar seu rosto - Vai fala!
– Não tinha namorado nenhum.
– Claro que tinha. Olha como você mudou de expressão! E o sorriso bobo na cara! Vai me diz.
– Humpft - bufo impaciente - Ya! - atiço Devan e saio em disparada.
– Hey! Volta aqui! Você não vai fugir de mim Sam! - escuto ela dizer e acelerar.
– Voltem aqui vocês! - meu tio grita - essa juventude...- ouço ele resmungar.
Não é hora de falar dele ainda. Ele é uma lembrança minha e não quero compartilhá-la agora. Ellyna que espere se quiser. Ele é a dornque nunca vai passar.
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