7
SETE
São cinco da manhã e eu estou varrendo o pátio. Não gosto e não tenho o costume de acordar cedo, mas queria aproveitar a total ausência de trânsito para varrer mais rápido. E, enquanto passo a vassoura no chão de pedras, não consigo deixar de pensar que tudo isso é muito injusto... Eu não sabia que os esquilos daqui eram temperamentais e venenosos. Custava eles terem me avisado? E bem que a Rainha podia ter sido mais humilde, admitido que fora um erro deles e me liberado do castigo.
– Por que tão cedo? – A voz parece vir do além e eu solto um grito, seguro a vassoura em posição de ataque enquanto sinto um choque de adrenalina percorrer meu corpo.
– Diabos!
– Nossa, estou tão mal assim? – É o Johnny e eu não consigo evitar um sorriso ao ouvir a piada.
– Quer me matar do coração, garoto? – Tento parecer brava, mas o acho fofo demais para realmente sentir isso.
– Aí eu teria um sério problema... – Ele sorri e coloca as mãos nos bolsos, meio tímido. – Quer companhia?
– Claro. – Ele, então, senta na beirada do chafariz, mas eu não volto a trabalhar de imediato.
– O que está fazendo acordado a essa hora? – Crianças não gostam de acordar cedo, então deve haver algum motivo.
– Não consigo dormir.
Ele desvia o olhar e fica brincando entretido com a água congelada da fonte. Não consegue dormir?! Se quer me enganar, pelo menos minta direito!
– Johnny... – Eu o espero erguer a cabeça antes de continuar. – O que aconteceu?
– Nada não. – Ele percebe que não vai se livrar de mim e se rende com um suspiro. – Tive um pesadelo...
Eu sei que tem mais coisa aí, que ele tem uma história, afinal ninguém vem para cá porque a vida era um conto de fadas... Mas, apesar da curiosidade estar acabando comigo aqui dentro, resolvo respeitar o espaço dele e volto a varrer. Depois nós conversaremos sobre isso, só preciso ganhar a confiança dele primeiro.
– Quer me contar o pesadelo? – pergunto por educação.
– Não...
Começamos, então, a conversar sobre coisas do cotidiano e ele me diz algumas histórias bem interessantes da vida alheia. Agora eu sei, por exemplo, que a fogosa tinha sido escalada para o time D quando chegou aqui, mas que ela quase matou um potro sem querer ao tropeçar nele, então a Rainha a mudou de time. A Anna é chamada de "dama gelada", porque nunca se relaciona com ninguém e o Steve (esse eu não conheço ainda) adora caçar. Quando diz isso, Johnny encolhe os ombros e completa:
– O Steve me assusta um pouco.
– Por quê?
– Ele disse que quando mata um animal, gosta de sentir o sangue nas mãos.
– Ai, meu Deus! O que esse psicopata maluco está fazendo aqui?! – Caramba, do jeito que eu sou covarde, se esse cara falar comigo, vou começar a chorar. Ou correr...
– Não conta para ninguém que eu te disse isso! – Johnny fala, aproximando-se de mim, apreensivo.
– Calma, garoto, eu não sou fofoqueira! – Ouvimos o sino das seis tocar, é o sinal de que dali a uma hora deveremos estar em fila para trabalhar. – Vai se arrumar. E não se preocupe, você pode confiar em mim, Johnny – digo isso segurando os ombros dele e olhando fundo nos seus olhos azuis, quero transmitir segurança.
Já em casa, não consigo deixar de pensar numa coisa: os olhos do Johnny têm aquela mesma "auréola" azul cristal, da cor dos olhos da Rainha. A mesma auréola que o Max tem e que eu vi nos olhos da Rachel... Em alguns ela é maior, ocupando da borda da íris até o centro desta, mas, em outros, ela é menor, apenas na bordinha mesmo... E isso está me cheirando muito mal.
Primeiro, tomo um chá com as folhas que encontro na minha cozinha e, depois, vou me trocar: calças brancas, blusa preta e um lindo casaco azul. Droga, estou começando a enojar dessas cores!
Saio para o vento frio da vila e vejo o Max. Ele parece estar com sono e fica muito fofo com essa cara amassada e emburrada.
– Está olhando o quê? – Ele pergunta, quando me aproximo. Apesar disso, não soa grosseiro.
– Um bolinho. Ah, não, espera, é a sua cara. – Ele finge um sorriso e o Vinny se aproxima de nós, pigarreando.
Fico entre o Max e o Johnny e o Máximos começa a dar os avisos: o time B precisaria trabalhar como nunca em suas vidas e a equipe D tinha que levar os cavalos para passear no outro lado do Rio Esperança. Ele continua falando, mas não consigo prestar atenção, porque sinto os olhos semicerrados da Rachel me encarando do outro lado do Johnny. Se um olhar matasse, eu morreria fulminada agora.
– Então, vão, vão, vão, e bom trabalho! – grita a coisa. E, como eu sei que a Anna é do time D, vou seguindo-a.
Paramos noutro estábulo e eu vejo o cavalo preto que me deram no primeiro dia. Como é possível ter me apegado a ele mesmo nunca tendo cavalgado antes? Eu nem sabia que gostava de cavalos!
– Oi, Meia-Noite! Como você está, garoto? – Começo a alisá-lo e parece que o cavalo gosta de mim.
– Não ofenda a Lucy. – Olho para o lado e vejo um cara loiro dos olhos verdes olhando para mim. Ele segura um arco e tem o olhar de urso.
– Não sei se fico mais impressionada pelo fato do Meia-Noite ser fêmea, ou de se chamar Lucy! Quem deu esse nome para ele? Isso é nome de gente! – digo com ares de indignação.
– Ela. E foi a Rainha quem a batizou. – Ele sorri e dá um passo em minha direção, enquanto estende a mão. Eu vou ao seu encontro para cumprimentá-lo, quando ele diz: – Meu nome é Steve.
Congelo. Minha mão ficou no meio do caminho e meus pés pararam de andar. Droga, Melinda, você prometeu ao Johnny que não ia contar, então aja como um ser humano normal e cumprimente o maluco! Mas ele é mais rápido que eu e segura minha mão, aquela que tinha parado a centímetros de mim. O Steve sorri e diz com um ar zombeteiro:
– É frio aqui, não? Só cuidado para não congelar de vez. – Engraçadinho. Ele é do time C, então o que faz aqui?!
– Não se preocupe, o Steve tem esse poder sobre as mulheres: todas perdem o ar quando estão com ele. – Uma garota fala e eu me viro encarando-a com um ar de surpresa. – O quê? Eu não vi nada! – defende-se ela.
Ótimo, agora pensam que eu estou a fim do Steve.
– Não estou interessada nele e gosto demais do meu ar para perdê-lo. – A garota ri. Ela tem um cabelo acobreado médio e ondulado, além de parecer super gente fina. Os olhos dela são cor de mel, o que destaca mais a borda azul-gelo da íris. – Meu nome é Melinda.
– Summer. – Nós nos cumprimentamos e eu engulo a piada que pensei em fazer com o nome dela.
– Vamos. – É a Anna. Ela está puxando um cavalo para fora do estábulo e eu imagino que ela seja a líder da nossa equipe.
Pego a Meia-Noite e vou seguindo atrás dela. De jeito nenhum vou chamar minha égua de Lucy!
– Melinda. – A Anna me espera fitá-la e continua: – Antes de montar na Lucy, ajude os outros a trazerem todos os cavalos para fora. – É, ela sabe falar mais de duas palavras numa frase... Estou voltando para dentro do estábulo quando ela completa: – E nunca cavalgue na minha frente. – Mulherzinha mandona!
❄ ❄ ❄
Chego em casa um pouco cansada, segurando o pacote pardo que o Vinny me deu. Felizmente não estraguei nada hoje. Levamos os cavalos para além dos muros do castelo, seguindo a Nordeste até atravessar uma ponte sobre um córrego congelado. Do outro lado do rio tinha umas árvores baixinhas e, apesar de não saber do que eram, logo percebi que os bichos amavam comê-las. Depois, voltamos para o estábulo e escovamos todos os quinze cavalos.
Pois é, somos mais ou menos trinta e tem apenas quinze cavalos... Acho que eu não sou realmente a dona da Meia-Noite. E, se fosse para adivinhar, eu diria que a Rainha dá os cavalos somente para as pessoas que fazem por merecer. Então, eu devo estar em último lugar na lista dela!
Fiz uma sopa e estou lavando os pratos quando ouço batidas na porta. Enxugo as mãos e corro para atender. Mas toda minha euforia se esvai quando vejo o Steve sorrindo para mim.
– Oi. – Ai, eu sei, estou julgando o coitado... Melinda, você não tem motivos para não gostar dele!
– Oi, Steve. – Forço um sorriso.
– Lembra meu nome... – Claro, como poderia esquecer?
– É, eu... Era o nome do meu falecido gato. – Putz, essa é a pior mentira que você já contou em toda a vida!
Ele dá um sorriso largo e eu seguro a maçaneta da porta com força. O Steve tem cara de safado. Ah, não, julgando de novo!
– Desculpe, não quis dizer... – Tento remendar, mas ele avança e, puxando-me pela cintura, começa a me beijar.
Ele está me beijando como um louco e eu tento arrumar um jeito de afastá-lo de mim... Mas é difícil fazer isso quando um cara está prensando você contra a parede! Pelo amor de Deus, Melinda, morde a língua dele!
– Ai! – O Steve se afasta de mim, me olhando com uma cara de indignado, e eu estou encostada na parede, tentando respirar.
– Eu não conheço você. Não amo você. Nem quero beijar você. Então, nunca mais faça isso! – Eu falo pausadamente, esperando que esse cabeça de vento entenda!
– Ok. – Ele passa a mão na boca e dá um sorrisinho cínico. – Mas não precisa amar para fazer isso. Até porque, se for esperar amar alguém aqui, vai morrer esperando.
Ele se vira e vai embora. Eu sinto um frio na barriga e minhas mãos tremem, deveria ter dado um tapa na cara dele! Não é preciso amar para fazer isso?! Por que será que eu tenho a impressão que ele falava de outra coisa, muito além de um beijo? E quem disse que eu vim aqui para beijar ou amar? Eu estou aqui para esquecer um amor não correspondido e ir embora, só isso!
Volto para dentro de casa e, neste momento, estou muito feliz de não poder sentir nada. Caso contrário, eu estaria socando travesseiros de tanta raiva.
Logo o frio na barriga e o tremor de minhas mãos passam e eu resolvo explorar minha casa. Mexo em tudo de todos os cômodos, mas só encontro coisas essenciais, que toda casa deveria ter: velas, no caso de faltar energia; utensílios de cozinha; produtos de limpeza; algumas maquiagens; enfeites; livros e um álbum de fotografias. Esse último eu encontro na gaveta do armário da sala. Sento no chão e começo a folheá-lo.
Cada página é a foto de uma rainha. Todas com vestidos suntuosos e a mesma coroa na cabeça. As fotos são em preto e branco, mas dá para perceber que todas elas têm os olhos claros. Não estou entendendo muito bem: existiram outras rainhas antes desta? E o que aconteceu com elas? A última rainha é aquela que me recebeu no portão. Todas elas tinham o olhar distante, a cabeça erguida e pareciam feitas de pedra. Mas, de todas elas, a rainha que conheci era a mais linda. A mais fria. E a que mais me incomodou. Acho que estou começando a sentir pena dela. Se para vir para esta terra você tem que estar despedaçado, o que precisa ser para se tornar rainha?
– Ah, você achou o álbum. – Estremeço de susto e vejo o Max parado na porta.
– Mas que diabos! Vou colocar hoje ainda trancas nesta porta! – Garoto folgado!
– Eu bati! – Defendeu-se ele, aproximando-se de mim. – Mas você nunca atende...
– Que álbum é esse? – pergunto. Ele já está dentro de casa mesmo, então vamos aproveitar.
Max senta do meu lado e o fecha. Enquanto digo um "ei!", ele passa a mão na capa e aparecem letras gravadas em prateado: Rainhas da Terra dos Sem-Coração.
– É um registro de todas as rainhas que esta Terra já teve. – Ele diz, me encarando com seus olhos estranhamente lindos. – Todas as casas têm um álbum.
– Max...
– Oi?
– O que aconteceu com elas?
– Morreram. Não me pergunte de quê. Estou aqui há três anos e meio e, quando cheguei, foi essa rainha que me recebeu. Acho que ela está no poder há uns quatro anos.
Engulo em seco. Quero perguntar uma coisa, mas não sei se deveria, ou se vou gostar de ouvir a resposta.
– Max...
– Oi? – Esse diálogo seria engraçado, se eu não estivesse tão intrigada.
– Por que seus olhos são assim? – Não preciso explicar. Ele sabe. Tanto que desviou o olhar.
– Melinda, tem certeza que quer saber?
– Por que não iria querer? – Droga, para de me assustar!
– A borda azul dos seus olhos mostra o quão congelado seu coração está. – Hã?! – Um belo dia você acorda e percebe que a beirada da sua íris está azul-gelo. E ela vai ficando cada vez maior e maior, até ocupar toda a íris.
– E então? – pergunto apreensiva.
– Pense.
– Droga, Max, diz logo! – falo quase gritando. Gosto de mistério, mas nos livros. E não quando ele envolve a minha vida.
Max se levanta e vai em direção à porta. Ele não vai me contar?! Levanto também e vou até ele, mas tudo o que Max diz antes de sair é:
– Eu não sei muito bem Melinda, tudo o que temos são teorias.
E lá se vai ele, no seu casaco preto, colocando o capuz. Ótimo! Deixou-me com mais perguntas do que quando entrou! Olho ao redor, tentando pensar em algo para fazer. Eu não quero pintar... E estou começando a ficar entediada! Lembro-me do Johnny e... Por que não?
Coloco o casaco e desço as escadas de casa enquanto calço minhas botas. Lembro que, enquanto varria, ele me disse que a sua era a 13. Chego lá e bato na porta. Ele abre quase que instantaneamente.
– Oi! – Sorrio para ele toda animada e sou retribuída. – Está fazendo o quê?
– Escrevendo.
– Então você é escritor? – Que gracinha!
– Não... – Ele dá de ombros. – Só gosto de imaginar histórias...
– E se não as escreve, aquela história fica na sua cabeça te enchendo o saco até você tirá-la de lá? – Ele parece ponderar e eu acho que acertei. – Então você é escritor. – Reparo no tamanho dele e completo com um sorriso. – Em desenvolvimento.
– E você, está fazendo o quê?
– Nada... Tem videogame aí? – pergunto, olhando por cima de seus ombros, tentando ver se na sala dele tem TV.
– Não. Aqui não tem essas tecnologias!
Eu enfio as mãos nos bolsos do casaco e fico parada, não sei mais o que fazer. Gosto de videogame e meninos também gostam, então essa seria a minha chance de conquistá-lo. Mas agora não sei como ganhar a confiança dele.
– Melinda...
– Oi? – Sorrio ao lembrar o meu diálogo com Max. Papéis invertidos.
– Sabe fazer torta de amora? – Os olhos dele brilham e eu fico mais animada.
– Sei. Me ajuda? – Entramos na casa dele e vou direto para a cozinha, já que as construções daqui são todas iguais. Parece que o arquiteto deles não era nada criativo.
E nos próximos trinta minutos eu fico ali, cozinhando e ele me ajudando. A gente conversa, brinca com a farinha e as amoras, mancho minha blusa de roxo e nós nos divertimos muito. Enquanto a torta assa, Johnny pergunta:
– Por que você veio para cá, Melinda? Parece tão feliz e divertida, não consigo imaginar você triste...
Eu mordo os lábios e abaixo a cabeça, respondendo:
– Eu amava uma pessoa, o Adrian. Gostei muito dele, durante muitos anos. Mas descobri que ele ia se casar... E eu não conseguia me imaginar sem ele, era como se eu estivesse condenada a viver sem metade de mim mesma...
O Johnny também está cabisbaixo, mexendo distraidamente numa colher. Fito-o esperando uma resposta, até que ele diz baixinho e fitando o nada:
– Meus pais me abandonaram. Cresci num orfanato até os onze anos, quando uma família me adotou. Fui morar com eles e pensei que tinha encontrado a felicidade. Achei que, enquanto eu estivesse com eles, tudo estaria bem mesmo quando estivesse mal. Mas, dois meses depois, a mulher descobriu que estava grávida e eles disseram que iam me devolver.
Eu estou muito incomodada comigo. Sinto pena do Johnny, mas não é compaixão. Do jeito que eu sou, deveria estar chorando rios neste momento, mas tudo o que consigo sentir é dó. Só isso. Pensei que, sem coração, eu ainda seria capaz de sentir certas coisas, mas aparentemente não é só a tristeza que desaparece...
– Eu fugi logo depois que a assistente social me levou para o orfanato. Fui para a biblioteca. – E deu nisso...
Suspirei. Agora eu sabia o porquê ele estava aqui... Segurei sua mão e esperei ele olhar para mim.
– Eles eram uns idiotas, Johnny! Você é o menino mais maravilhoso que conheço! – Ele sorri sem emoção, parece não acreditar muito. Será que ninguém nunca disse isso para ele? – Ei, a torta está pronta, vamos comer? – Tento animá-lo, mudando de assunto.
Logo o clima triste passa e nós voltamos a conversar mais animadamente. Quando terminamos de comer, me despeço dele e vou caminhando lentamente para casa.
Ao chegar lá, vou para a cozinha, onde vejo que me esqueci de lavar o prato de sopa, só a panela está no escorredor.
Pego a bucha e um pensamento rápido passa na minha cabeça. A sopa esfria da borda para o centro! É um momento a la Doutor House, mas acho que acabei de descobrir o mistério das bordas-azuis: assim como a sopa esfria das beiradas para o centro, nós também congelamos de fora para dentro. O Max disse que os olhos mostram o tanto que o seu coração já congelou... Porque os olhos são as janelas da alma...
Meus pensamentos estão uma bagunça e uma pergunta me incomoda: o que acontece quando um coração congela? Não sei, mas também não quero descobrir. Os olhos do Johnny mostram que ele já está bem congelado. E eu preciso ajudá-lo. Primeiro ele e depois o Max. Não posso deixar que eles fiquem frios e insensíveis. Valeria a pena deixar de sentir tristeza se isso significava deixar de ser plenamente feliz? Ou se por isso você também não fosse capaz de sentir as coisas boas da vida? Não.
E eu já sei exatamente o que fazer para ajudar o Johnny.
Bạn đang đọc truyện trên: Truyen247.Pro