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CINCO
O cuco do relógio da sala me acorda e sento assustada na cama. Não sei que horas são, porque o maldito relógio está na sala e não tem nenhum no meu quarto, mas aposto que ainda é cedo... Deixo meu corpo cair novamente na cama e fico deitada por mais alguns minutos, até ouvir batidas na porta. Levanto-me cambaleando de sono e vou até lá, abro e dou de cara com o Max. Esse menino não vive sem mim, só pode!
– Por que não está pronta?! – Ele parece irritado comigo e eu me viro, deixando-o falando sozinho. Eu sei, fui grossa, mas nunca disse que sou simpática de manhãzinha... – Aonde você vai?
– Voltar a dormir, achei que fosse algo importante...
– Tudo bem, você quem sabe... Mas não é bom chegar atrasada logo no primeiro dia de emprego. – Estou na porta do quarto, porém aquela frase me faz parar e olhar para ele. – Quem não trabalha, não come. E eu aposto que você não tem nada aí na sua cozinha.
Max fecha a porta e eu escuto seus passos indo embora. Meleca! Saio correndo para o guarda-roupa e visto às pressas a primeira coisa que encontro: calça de couro preta (lógico), blusa azul e um casaco branco. Estou calçando as botas e já descendo pelas escadas quando me deparo com uma cena... Nem tenho adjetivos para isso: todos da vila, umas trinta pessoas, no máximo, paradas numa fila horizontal e, diante delas, o motivo do meu espanto. Vou caminhando lentamente, de olhos arregalados, e paro perto da coisa.
– Está atrasada. – É um projeto de pessoa, superalto, barrigão, braços e pernas bem magrinhos e orelhas de elfo. Ele parece muito mau com essa monocelha gigante e a voz dele é rouca e grossa. – Entre na fila!
– O que é você? – Eu sei que deveria obedecer, mas minha boca é sempre mais rápida do que meu cérebro!
Ele cruza os braços e franze a monocelha. Melinda, pelo amor de Deus, não ria da coisa, imagina se ele fica bravo e resolve te jantar?!
– Isso é uma piada? – Dou uma risada superfalsa e falo, batendo no braço dele, como se fosse sua Best Friend Forever.
– Dããã, lógico!
Vou para o fim da fila e fico ao lado da Anna, que está numa posição a la soldado e eu tento imitar a pose dela: aprumo a postura, empino o bumbum e o nariz. Não sou um soldado muito másculo, mas acho que dá para enganar... Franzo as sobrancelhas tentando parecer mais séria, quando a coisa continua falando e eu preciso prestar atenção.
– ...Então vão, já sabem o que fazer!
No mesmo instante eu ergo a mão, como quem pede a vez para falar na escola, e a coisa olha para mim, incrédulo. Ele não vai me dar a palavra, então resolvo falar assim mesmo.
– Desculpe, eu sou nova aqui. O que devemos fazer?
O ser estranho inspira fundo. Quando faz isso, seus olhos parecem revirar, e eu juro que se ele fizer isso de novo não vou conseguir segurar a risada!
– Então você é a Melinda? – Aceno que sim e ele continua. – A Rainha disse que escalou você para o time B, isso significa que vai colher nozes e amoras. O time B está abaixo da meta essa semana, então vocês vão precisar trabalhar arduamente hoje, compreendeu, mocinha? – Aceno novamente e ele berra, me fazendo estremecer de susto. – Então, vão, vão, vão!
As pessoas se dispersam e eu continuo parada, não sei qual é a minha equipe... De repente, ouço uma voz familiar do meu lado:
– Que pose é essa?! – Max... A voz dele soa surpresa e ele parece achar graça de mim.
– Nada não. – Volto a ficar normal e olho para ele. Deus, esse menino é muito lindo! Foco, Melinda. – Sabe qual é o meu grupo?
Ele sorri, um sorriso superficial e rápido. Segura meu rosto com as duas mãos e, supondo que vai me beijar, fecho o punho, preparada para o soco. Mas ele vira meu rosto para a esquerda, me mostrando onde está meu time. Volto-me na direção dele e sorrio em agradecimento, murmuro um "obrigada", que acho que ele não ouviu, e saio correndo.
Eles estão numa espécie de estábulo que eu logo percebo ser um armazém. Enquanto pegam cestas e lanças, eu me aproximo sorrindo. Uma garota ruiva de olhos verdes vira-se na minha direção e, quando vou dizer um "oi, eu sou a Melinda", ela me entrega uma cesta e uma lança. Garota mal-educada, eu hein!
– Oi. – Viro de costas e me deparo com um garoto de, no máximo, doze anos. A presença dele ali me choca e ele continua. – Sou o Johnny, e você?
– M-Melinda – gaguejo. Meu Deus, é uma criança! O que será que aconteceu com ele para vir parar aqui?
Sorrindo, ele se fasta e eu fico ali, estática. Ouço a ruiva dizer para irmos, então me viro, seguindo o bando de sete pessoas, oito comigo. Não consigo tirar os olhos do Johnny e, assim que ele para para arrumar alguma coisa em sua bota, eu me aproximo.
– Então, Johnny... Me diga: o que era aquilo? – Ele me olha como quem não está entendendo nada e tento ser mais específica. – Alto, anoréxico, monocelha, barrigão de verme...
O garoto ri de mim, numa gostosa gargalhada que me faz sentir idiota. Ficamos para trás e tentamos andar mais rápido: estamos indo para além dos muros do castelo.
– Um Máximos. O nome dele é Vinny.
– Máximos? Como os Mínimos, só que maiores? – Começamos a rir, mas logo a ruiva grita lá da frente, provavelmente ela é a líder o grupo:
– Silêncio! – Eu olho para o Johnny e faço uma careta, imitando a enjoada e o garoto dá um risinho contido.
Caminhamos por alguns minutos para o sul, além da muralha, em silêncio, até que uma pequena floresta aparece na nossa frente. Apesar das árvores estarem cobertas de neve dá para ver que são frutíferas. Fazemos um pequeno círculo e a ruiva começa a falar cochichado:
– Vocês ouviram o Máximos, pre...
– O nome dele é Vinny! – interrompe o Johnny.
– Shhhh! – Ela faz uma cara feia para o menino e eu estou cada vez mais enjoada dessa menina! – Precisamos dobrar a colheita hoje, então, nada de distrações, ouviu, Johnny?! – Gente, qual o problema dessa garota?! – Muito cuidado com os esquilos, nem preciso falar, não é? Vamos!
Assim que eles vão cada um para um lado, me afasto do grupo. Vou caminhando por entre as árvores até encontrar um "pé máster" de amoras. Grandes, roxas e cobertas pela geada, elas parecem superapetitosas, principalmente para quem não tomou café-da-manhã! Deixo a lança e a cesta de lado e vou comer um pouquinho... Não faz mal, não é? Depois é só catar o restante rapidinho, nem vão perceber...
Comi até sentir que estava satisfeita e depois fui colhendo as restantes o mais rápido que podia. Quando termino, olho em volta e... Por onde mesmo eu tinha vindo? Ai, meu Deus, Melinda! Eu não acredito! Se perdendo no seu primeiro dia? Ah, mas também, como eu vou me achar aqui sem placas e pontos de referências? Olho para a lança em minha mão e, pela primeira vez, questiono: para que diabos catadores de frutinhas precisam andar armados?
Decido andar para o lado que eu acho que é o certo e, por milagre, eu encontro a fogosa catando nozes a alguns metros de mim.
– Oi! – Ela vira-se e eu continuo. – Não tivemos a chance de nos apresentar, eu sou... – Porém a garota me encara com os olhos arregalados e faz sinal para eu ficar em silêncio. – Nossa, que cara feia! Olha aqui, eu estou achando você...
– Shhhhh!
– Não faz "shhh" para mim!
Mas ela parece realmente assustada, o que começa a me deixar nervosa. Viro-me lentamente na direção em que está olhando, receosa do que posso encontrar, e a ruiva começa a gritar sussurrado, desesperadamente:
– Não! Melinda, não faz isso! Para!
Viro e dou de cara com um esquilo. Ou eu acho que seja um. Ele tem os olhos vermelhos, dois dentes enormes e afiados para fora e, ainda assim, parece superfofo! Sempre adorei esses bichinhos gracinha tipo coelho e esquilo, por isso não resisto:
– Oi, coisinha linda! – digo, fazendo biquinho e com uma voz boba, enquanto a fogosa fala coisas como "o que você está fazendo?!". – Que esquilinho fofo! Sim, eu sou muito lindinho e eu vou matar você de fofurice!
De repente, o esquilo solta um grunhido agudo e pula em cima de mim, me mordendo! Começo a gritar e sacudir desesperadamente, jogo a cesta de amoras para o alto e lanço meu corpo contra a árvore, acertando o esquilo e fazendo-o cair no chão, morto.
– O QUE VOCÊ FEZ?! – berra a ruiva, do outro lado.
– O que queria que eu fizesse?! Ele me atacou!
– Estúpida! – Mas ela não teve tempo de terminar de me xingar, porque, de repente, toda a árvore estava cheia de esquilos, nos encarando com seus olhos vermelhos brilhantes e dentes afiados.
– AAAAHHHH!!! – Não lembro a última vez que corri tanto. De repente, eu estava lá na frente, em disparada, enquanto os outros corriam e gritavam atrás de mim.
Em poucos minutos, que pareceram míseros segundos para mim, eu estava diante do portão, tomando fôlego. O segundo a chegar foi o Johnny, para o meu alívio... Jamais me perdoaria se ele se machucasse por minha culpa!
– O que aconteceu? – Era um Mínimos, que estava por ali e ouviu a gritaria.
– Fomos atacados por esquilos! – Respondeu o garoto, vermelho por causa da corrida.
O Mínimos levou a mão à boca, espantado, e saiu correndo em direção ao castelo. Ótimo... Fofoqueiro!
– Melinda... – Virei e lá estava a fogosa, de cabelos despenteados e os olhos verdes brilhando de... O que é isso? Metade dos olhos dela são azuis! Por acaso essa vila é a vila dos olhos azuis?
Nem percebi que a garota não terminou a frase, num momento ela estava me encarando e, no outro, já ia embora a passos firmes para o castelo. Ótimo, mais uma... A Rainha vai adorar ouvir o que eu aprontei! Mordo os lábios, receosa pela reação que ela vai ter, e vejo os outros passando por mim, mal-encarados. Legal, agora todo mundo me odeia...
– Foi por sua culpa que eles atacaram? – É o Johnny, com os olhos fixos em mim.
– Sim... – digo num sussurro, envergonhada demais para fitá-lo de volta.
– Demais! – Espera, ele está feliz?
O garoto vai embora e eu me sinto menos pior. Pelo menos alguém aqui tem um pouco de espírito de aventura!
❄ ❄ ❄
Estou parada na enorme sala do trono, esperando a gélida Rainha vir me dar uma bronca... Quando a gente pensa que nunca mais vai passar por isso depois de sair do Fundamental... Você nunca vai crescer, não é? Lembro-me da Ashley me perguntando. Crescer é muito chato, as pessoas nunca deviam deixar de ser crianças... Era o que eu sempre respondia. Levanto o olhar e vejo que a Rainha já está na sala, parada diante de mim. E ela está com uma cara nada boa...
– Desculpe, não vi você entrar.
– Majestade. – Encaro-a sem entender e ela complementa. – Está na hora de você aprender a usar os pronomes de tratamento: chame-me de Majestade.
– Sim, Alteza.
– Eu disse Majestade... – Ela range entre os dentes. Porcaria de boca apressadinha, faz besteira e ainda tira sarro, muito bonito, Melinda!
– Perdão. – Eu digo, abaixando a cabeça, submissa.
– Rachel me contou o que aconteceu. – Então esse é nome daquela... – Preste atenção no que eu estou dizendo, Melinda! – A Rainha altera a voz. Ela alterou a voz! Aleluia! Já estava achando que ela era completamente fria! – Você não está me ouvindo!
– Estou sim, Majestade.
– Por quê? – Ela quer saber o motivo do pequeno demônio ter me atacado?!
– Aquele esquilo tem problemas! Eu só...
– Não! O esquilo não tem problemas, Melinda, você tem! E eu quero saber se você pode se comportar como uma adulta, porque é assim que as coisas funcionam aqui! Seriedade Melinda, você não está num parque de diversões!
Eu engulo em seco e abaixo o olhar... Odeio que me tratem assim, mas não acho que tenho muita escolha.
– Perdoe-me, Majestade... Não tinham me avisado sobre os esquilos... Juro que não foi minha intenção...
A Rainha parece se acalmar e me abraça de lado, suspirando. Ela se afasta e diz, voltando ao seu modo gélido e implacável:
– Tudo bem, está perdoada. Mas terei que mudar você de equipe. – Lembro do Johnny e imploro:
– Não, não, está tudo bem, por favor, eu prometo, eu juro que...
– Chega, Melinda! Quando uma rainha diz algo, você simplesmente concorda!
– Sim, Majestade.
– Você vai para a equipe D. – Cavalos... Acho que ela nunca mais vai me deixar sair para além das muralhas! – E quanto ao seu castigo...
– Mas... – Ela me encara e eu paro de falar. Achei que trocar de time era castigo!
– Vai limpar todo o pátio da vila, por uma semana. – Droga, Rainha má... – Melinda... – Ela espera eu voltar a fitá-la e sorri. – Faço isso para o seu bem, pela ordem da comunidade, você entende, não é?
Eu murmuro um "sim" e a outra suspira. Não queria causar tantas confusões e estou superarrependida, de verdade. A Rainha parece uma mãezona, sempre paciente e disposta a ajudar e eu tirando a paciência dela... Sinto os dedos da Rainha erguendo meu rosto e volto a encará-la:
– A Rachel também me contou que por sua culpa eles não atingiram a meta de hoje, pelo contrário, estão pior do que já estavam. – Eu mordo os lábios e ela continua. – Prometi ao time B que eles iam ganhar o salário do dia integralmente, afinal não foi culpa deles, mas não poderei dar o seu completo. Sinto muito.
Ela me entrega um pacotinho pardo e me manda para casa. Vou de carona com um Mínimos, já que não sei o que fizeram do lindo cavalo negro que me deram no primeiro dia. Sei que me apossei dele, mas acho que o cavalo, no fim das contas, não era um presente para mim...
Tanto faz, estou chateada de qualquer maneira. Odeio quando brigam comigo e hoje meu dia foi uma bosta.
❄ ❄ ❄
Encolhidinha no sofá, sinto a febre queimar meu corpo. Passei o dia inteiro olhando o relógio e pintando a sombra de um esquilo-demônio. É, eu sei, fiquei obcecada. Mas já faz um tempo que estou no sofá, com dores nas costas e os olhos lacrimejando e... Espera aí. Tem um coelho cor-de-rosa sentado no meu sofá? E ele está usando um vestidinho azul?!
– Melinda? – Olho para o lado e vejo o Max agachado, me encarando preocupado.
– Tem um coelho rosa no meu sofá. – Isso, vai, assusta o garoto!
Ele coloca a mão na minha testa e diz que estou com febre. Vai para a cozinha e volta com uma garrafa de álcool que eu nem sabia que tinha. Como poderia se você nem abriu as gavetas da sua cozinha? Ele tira meu casaco e me ajuda a sentar.
– O que está fazendo?! – digo assustada.
– Tirando sua blusa.
– Não! – Mas que pervertido!
– Ei, o esquilo mordeu suas costas, não foi? – Ele já sabe do ocorrido. Vila pequena, sem televisão ou Internet, é nisso que dá: todo mundo cuidando da vida uns dos outros! – Se eu não limpar essa ferida, o veneno vai continuar te infectando e você vai ficar doente por dias!
Receosa, concordo em tirar minha blusa. Será que ele sabe que é o primeiro cara para quem eu tiro a roupa? Ah, Melinda, tenha paciência! Você não está tirando a roupa para ele, o Max só está te ajudando... Mas o fato de estar só de sutiã na frente dele me faz lembrar do incidente da banheira e eu coro mais ainda.
– Prontinho.
Abro os olhos, nem tinha percebido que os fechara e ele sorri para mim. Sinto falta do meu coração, certamente ele estaria palpitando aqui dentro de mim agora. Faço uma careta e abaixo a cabeça. Não, se você estivesse com seu coração agora, estaria sofrendo por causa do Adrian.
– Está tudo bem?
Eu aceno que sim e o Max avisa que eu preciso comer e descansar, esperando que o álcool esterilize a ferida. Ele vai para a porta enquanto visto a blusa novamente.
– Ah, mordida de esquilo causa ilusões, então não se preocupe, não tem coelho rosa no seu sofá. – Sorrio e ele coloca o capuz, saindo e fechando a porta atrás de si.
Queria saber o que o trouxe até aqui, já que ele é uma boa pessoa, quando não está sendo chato. Abro o pacotinho que a coroada me deu e percebo que tem um pedaço de pão, queijo e uma espécie de doce que eu não sei do que é. Eles nos pagam com comida? Queria que pagassem com o quê, Melinda? Dólar?
Depois de comer o pão e o queijo, que estavam ótimos, por sinal, vou para o quarto e ponho outra camisola de lã, uma azul escuro. Quando vou deitar, vejo o Adrian sentado do lado direito da minha cama, só de cueca. Ele está lendo um livro e, quando me vê, dá aquele sorriso encantador.
– Sério isso, cérebro? Muito bacana da sua parte, valeu, hein!
Deito sob as cobertas,ao lado da ilusão do Adrian, e fecho os olhos com força, esperando que o álcool faça efeito logo.
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