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VINTE E QUATRO
A ponte parece que nunca vai ter fim, ou talvez seja apenas a ansiedade de chegar logo. Assim que terminamos de atravessá-la, vejo duas enormes portas de cristal, elas estão entreabertas e é um convite para a entrada de visitantes. Discretamente, ao lado esquerdo, vemos uma pequena placa, essa feita de madeira branca:
– "Lagoa Real: em segurança repousam os corações majestosos, congelados pelo tempo à espera do eterno" – leio em voz alta. – Acho que acertamos.
Max não responde e eu não o espero fazer isso. Viro-me na direção da porta e caminho decidida até lá. Assim que adentro essa espécie de caverna, falta-me ar e palavras. Em toda a minha vida, jamais pensei que veria algo assim fora das telas do cinema...
O local é arredondado, o teto é o mais alto que já vi e tudo tem uma cor azul-acinzentada. Contudo, a caverna não é muito grande, fria e o mais bizarro é a espécie de ornamentação: em duas filas, uma de frente para a outra, dezenas de pedestais. Em cima de cada um, que medem um metro e pouquinho de altura, sobre almofadas negras, repousa um coração completamente congelado. Os pedestais são feitos de mármore branco e as duas filas formam uma espécie de caminho, como o corredor entre os bancos de uma igreja. Vou me aproximando a passos lentos do primeiro pedestal.
O piso parece refletir o teto da caverna de tão brilhante que é, e mais lá na frente, no fim das filas de corações, tem uma escada de dez degraus. Chego perto do primeiro pedestal da esquerda e observo:
– Tem tipo um desenho gravado nele... É um tracinho.
– Nesse aqui tem dois tracinhos. – Max comenta, analisando o primeiro pedestal da direita.
– E esse aqui tem três traços – digo enquanto observo o segundo pedestal da minha fila.
– Melinda, acho que são números romanos. Esse segundo aqui da minha fila é o número quatro.
Deixo de reparar no pedestal e analiso o coração número cinco. Assim como os demais, ele não bate, está totalmente congelado, porém o que mais me apavora são as horríveis cicatrizes que vejo nele...
Começo a caminhar em direção à escada, no meio do corredor. Observo os números romanos aumentando: 29, 30, 31... Lembro-me de uma coisa e volto para trás, encarando o Max, que ainda está no começo das filas:
– A profecia! Lembro que ela falava alguma coisa sobre cinquenta reinados... – Olho ao redor e falo, de braços abertos: – Veja, aposto que tem cinquenta corações aqui! Independentemente de quem seja o Valente, nós conseguimos. Cumprimos a profecia, seja lá o que isso signifique!
– Aposto que o quinquagésimo coração está no alto daquela escada. – Max comenta, encostado num dos pedestais da direita. Acho que ele não vai prosseguir.
Então continuo avançando sozinha. Subo as escadas e sinto minha boca seca, o suor em minha testa escorrer e a ansiedade aumentar a cada degrau. Quando chego ao topo, vem a confirmação: em cima de um pedestal negro marcado com o número cinquenta, delicadamente posicionado sobre uma almofada branca, um coração. E este bate. Lentamente e sofridamente...
Estou como que encantada. Avanço lentamente, até chegar bem próximo a ele. É o coração com mais cicatrizes que já vi por aqui. Sinto meu estômago embrulhar. Deus, a Rainha deve ter sofrido muito no passado!
Estico uma mão e encosto nele. Um coração totalmente congelado e machucado, que bate uma vez a cada dois segundos. Ninguém sobreviveria com batidas cardíacas a essa velocidade, a menos, é claro, que você seja Rainha da Terra dos Sem-Coração. Porém, assim que meus dedos encostam no órgão, ouço um barulho ensurdecedor, como um trovão. Me afasto imediatamente do pedestal e viro na direção do Max:
– O que foi isso?!
– Eu não sei! – Ele grita de volta e parece assustado. Meleca! – Melinda, pega logo o coração e vamos dar o fora daqui!
O barulho continua, então viro-me novamente para o pedestal. Estou com os olhos arregalados e sinto minhas pernas tremerem. Inspiro fundo e pego o coração o mais rápido possível. E assim que o retiro de onde ele repousava, um terremoto acontece. Perco o equilíbrio e caio no chão, tentando proteger o pequeno órgão ao máximo.
– Vamos!
Ouço o Max gritar. Levanto e sinto novamente a terra estremecer. Durante uma fração de segundos eu espero o segundo terremoto passar, para então me levantar e tentar sair correndo. Max correu até o pé da escada, com as mãos estendias, me esperando:
– Vem, Melinda!
Com um pouco de dificuldade, desço as escadas. Parte do teto desaba sobre o pedestal negro e assim que chego perto do Max, ele me agarra pelos ombros, ajudando-me a sair correndo. O teto continua caindo e eu seguro o coração da Rainha contra o peito.
Sinto o Max me puxar para o lado e uma enorme pedra cai onde eu estava há um segundo. Faltam poucos metros para a porta... Precisamos conseguir! Uma rocha cai bloqueando parte da porta, porém eu me espremo e passo pela abertura da direita.
Assim que chego do lado de fora, olho para trás, esperando pelo meu companheiro. Mas por alguns segundos eu não vejo nada e temo pelo pior.
– Max!
Quando finalmente o vejo sair pela mesma abertura que passei, respiro mais calma.
– Acho que nasci de novo! – Ele suspira, passando a mão no tórax, confirmando que não quebrou nenhuma costela.
Dou uma risada, até ouvir o barulho da caverna se desmoronando lá dentro, então voltamos a correr em direção à ponte.
❄ ❄ ❄
– Eu não quero voltar a pé! Imagine, passar por tudo aquilo de novo! – reclamo, desanimada. Sinto o coração da Rainha batendo lentamente em minhas mãos e essa é uma sensação muito agoniante.
– Não tem outro jeito, não é como se aqui houvesse alguma carona.
Estamos parados na entrada da ponte, discutindo. Eu não quero passar por tudo aquilo de novo e o Max insiste que não temos outro caminho. A caverna da Lagoa Real, antes tão alta e majestosa, agora não passa de uma montanha de entulhos. Volto o olhar para o Max e, quando vou continuar reclamando, ouço uma voz que não é nem minha nem dele:
– Aconteceu!
Ambos viramos na direção da voz e nos deparamos com um Mínimos.
– O que faz aqui? Achei que ninguém adentrava essa Terra! – É o Max quem fala, incrédulo.
– Estou esperando o Valente. – Eu e ele nos fitamos, chocados. – Não esperava que fossem dois.
– E não é, ele está apenas me acompanhando – respondo logo.
– Ei, quem disse que você é o Valente?!
– São vocês ou não?! – A criatura fala impaciente.
– Hã... Sim. – Eu digo sem muita convicção. Ah, se não for nenhum de nós dois, quem será?
– Mostre a prova.
Olho para o Max, com uma expressão de quem diz: "e agora?". Ele pega o coração da Rainha que eu segurava contra o peito e mostra para o Mínimos.
– Isso serve?
A criatura leva a mão à boca, espantado. Ele é um senhorzinho barbudo e, como todo Mínimos, parece bem engraçadinho dentro das pesadas roupas de frio.
– Vamos, vamos, não queremos nos atrasar! Rápido, rápido, rápido!
Como essas criaturas conseguem ser tão pequenas e tão ágeis? Num instante o serzinho está correndo em direção a... Bem, aparentemente não há nada ali.
Rapidamente seguimos o Mínimos. Ele corre para a esquerda da Lagoa Real e logo começamos a descer uma pequena colina. Mais à frente, vemos o Rio Esperança e um barco relativamente grande ancorado. E eu não sei se fico mais abismada por ver o rio descongelado ou pelo barco a la Cruzadas!
– O Rio! Mas... Como?! – Eu exclamo, assim que nos aproximamos do barco.
– Ele descongelou faz uma meia hora. Não ouviram o barulho?
Eu e o Max nos fitamos, pasmos. Claro, aquele trovão que ouvimos era o rio se descongelando! Volto-me para o Mínimos, mas antes que eu tenha a oportunidade de fazer qualquer pergunta, ele berra:
– O que estão esperando? Entrem logo!
Seguro o riso e piso na água. Apesar da bota ser de cano alto e impermeável, preciso avançar alguns metros para poder subir nas escadas do barco, logo, parte da água fria entra inevitavelmente. Maravilha! Odeio pés molhados...
Entramos no barco e o Mínimos liga uma espécie de motor. O barco zarpa lentamente e começamos a subir o rio.
– Me ajude aqui! – pede a criatura. Max imediatamente se prontifica e ajuda-o a erguer a vela.
– Mas o vento está soprando na direção oposta! – Eu observo. Estou sentada perto da borda esquerda do barco, tirando as botas e tentando secar meus pés.
– Paciência, pequena... Fé e paciência! – Esse anão acabou de me chamar de pequena?!
Assim que a vela é erguida, o vento muda de direção, impulsionando o barco rio acima. E eu estou boquiaberta demais para dizer qualquer coisa!
– E você ainda acha que é o Valente, com essa fezinha de nada! – Max me provoca entre risos e eu não posso evitar um sorriso.
❄ ❄ ❄
À medida que subimos o rio, vamos observando a paisagem. São todos os locais por onde passamos, porém diferentes: Nebrasca, que antes era branquíssima pela neve, agora é um campo verde. Algumas árvores e montanhas ainda estão descongelando, porém o verde das plantas que já renasceram é espetacular!
– A primavera chegou – fala o Mínimos, com uma voz que denuncia sua emoção.
– Tão rápido! – Max fala boquiaberto.
– Não, meu jovem, a primavera já começou no dia que o Valente aqui chegou.
Em poucas horas passamos pelo Precipício da Coragem e o Campo Nebuloso. Neste, a neblina sumiu e podemos ver claramente as peças de xadrez daquele jogo gigantesco, junto com a arcada do animal estranho.
– Olha só, o rei das peças negras caiu! Quando passamos por ele, ainda estava de pé... – Max comenta. Ele está tão encantado com as mudanças quanto eu!
– Mínimos...
– Me chame de Lupo.
– Ok, Lupo... O que é aquele esqueleto gigante?
– É uma longa história e, neste momento, vocês estão ocupados demais mudando o curso dela.
A viagem demorou cerca de cinco horas no total. O barco avançava rapidamente graças ao vento e ao motor, e logo avistamos a montanha do castelo. Ela agora está quase que completamente verde e tudo ali parece ganhar vida aos pouquinhos. Lupo parou o barco e avisou:
– Só vai até aqui. Os próximos metros vocês terminam a pé.
– Muito obrigada, Sr. Lupo, estamos te devendo essa – digo, sorrindo, segurando as mãozinhas rechonchudas dele.
– Acredite, pequena, vocês não devem nada a ninguém. Nós é que devemos a vocês. Agora vão, vão, vão!
Max se despede, agradece e nós descemos do barco. Não entendi o que a criatura falou, mas não temos tempo para conversar.
Como descemos do lado oposto do rio, precisamos correr um pouco até a ponte, para então atravessá-la. Estamos a alguns metros do castelo, tão perto que minhas mãos tremem e eu sinto o suor escorrendo em minha nuca.
– Espere um minuto, Max. – Eu peço e ele para.
Tiro o meu sobretudo e ele faz o mesmo. Apesar da maior parte da neve ter derretido, ainda está frio. Por isso, fico com minha roupa de inverno que estava por baixo do pesado casaco e as luvas. Deixo o sobretudo e a touca ali no chão e voltamos a caminhar apressadamente.
Eu ainda seguro firmemente o coração da Rainha contra o peito e uma enorme inquietação toma conta de mim à medida que eu penso no que está por vir. Não faço ideia do que vai acontecer, mas sei que vai ser emocionante!
Começamos a atravessar a pequena ponte, aquela que cruzávamos quando meu time levava os cavalos para o outro lado do rio, quando sinto uma pontada bem no rumo onde meu coração deveria estar. Caio no chão, arfando de dor.
– Melinda, pelo amor de Deus, o que aconteceu?! – Ouço o Max gritar desesperado ao meu lado.
Olho para ele e abro a boca para dizer alguma coisa, quando sinto novamente aquela terrível dor. Urro em agonia, contorço-me no chão e as lágrimas começam a escorrer.
– Melinda, fala comigo!
– Max... – Consigo sussurrar fracamente. Outra vez sinto aquela pontada, como se alguém estivesse me esmagando por dentro e eu grito, enquanto meu rosto se ensopa de lágrimas. Sinto o Max me segurando pelos ombros e vejo o olhar de desespero dele. – Dói... Meu coração...
É tudo o que eu consigo dizer. Vejo o rosto dele ganhando uma expressão de ira e determinação. Max toma o coração da Rainha das minhas mãos e beija minha testa:
– Fique aqui, eu já volto.
– O que vai fazer? – grito, vendo-o levantar-se. Estou caída no chão da ponte e não tenho forças para levantar e muito menos impedir o Max de fazer qualquer burrada.
– Isso vai depender se a Rainha for uma boa moça ou não.
Deus, eu não sei o que esse menino vai aprontar, mas...
Minha linha de raciocínio é interrompida com aquela dor insuportável e eu gemo, me contorcendo no chão. Vejo o Max correndo em direção ao castelo. O pôr-do-sol pinta tudo aqui com uma cor vermelha alaranjada, cor que me lembra guerra, sangue... Seguro meu peito com mais força, no rumo onde meu coração costumava ficar. E fico ali, deitada, vendo o Max sumir de vista... Fecho os olhos e me esforço para respirar normalmente.
Não sei pelo que devo esperar, tudo o que sei é que neste exato momento eu sou como uma pessoa diante de um abismo, e minha alma se inclina para baixo.
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