DOIS
Eu fecho os olhos com força, tentando não entrar em pânico... Calma, Melinda, respira, você não vai morrer... Mexa-se, criatura! Sinto uma pequena lágrima escorrer dos meus olhos por causa da força com que os fecho, luto para estabelecer contato com meu corpo, mas ainda estou imóvel e a neve já o amorteceu...
Vagarosamente consigo movimentar as pontas dos dedos e logo minhas mãos e braços voltam à vida. Torno a abrir os olhos, mas, dessa vez, o faço lentamente... A luz ainda atrapalha minha visão e tudo o que consigo enxergar é um branco perturbador. Aos poucos, vou me acostumando com a claridade e a primeira coisa que identifico são os floquinhos de neve caindo em mim...
Com dificuldade, sento e vejo que estou no meio de uma floresta de pinheiros. Uma floresta! Meu Deus... O que aconteceu?! Abraço-me numa tentativa de reter o pouco calor que me resta, mas sei que se não encontrar ajuda logo, morrerei congelada. O vestidinho florido e o cardigã amarelinho não me aquecem e eu tremo freneticamente. Meu nariz está tão gelado quanto um picolé e tenho medo de que, dentro da sapatilha, meus pés já estejam arroxeados.
Tremendo, levanto-me e olho ao redor, sem a mínima ideia de onde ir, ou do que fazer. Onde diabos é aqui e o que aconteceu? Não, Melinda, você está fazendo as perguntas erradas! Primeiro, pergunte para onde ir! Porém, na minha frente eu só vejo uma floresta que aparenta ficar cada vez mais densa e nada promissora.
– Socorro! SOCORRO! Estou aqui! Alguém me ajude!
Eu grito o máximo que posso, mas parece que a minha voz morre a poucos metros da minha garganta e os uivos do vento não me dão chance alguma de ser ouvida... Tudo bem, Melinda, pode começar a se desesperar! Meus olhos se enchem de lágrimas e levo a mão à cabeça, passando os dedos pelo cabelo num gesto inconsciente de desespero. Mas, assim que fico de costas para onde estava até então olhando, vejo uma grande muralha há uns bons metros de distância. Rodeado por ela e no topo de uma colina, um enorme castelo negro, daqueles que a gente nunca espera encontrar...
Começo a correr naquela direção, mas minhas pernas estão tremendo tanto que eu caio umas três vezes ou mais. O castelo não está longe e eu me recuso a desistir, meu coração está batendo mais rápido do que nunca e, neste momento, me sinto mais louca que o Chapeleiro Maluco, tenho inúmeras perguntas em mente, porém tudo que consigo pensar é que estou correndo em direção à minha única chance de sobrevivência.
Chego lá e sei que estou perto do meu limite, começo a esmurrar os enormes portões de ferro, mas isso não faz o barulho que eu esperava... Como vou chamar a atenção de seja lá quem more aí?
– Ajude-me... – Ao invés de um grito, o que sai é um sussurro, uma voz que morre antes mesmo de sair de minha boca.
Encosto o rosto no portão, não acredito que nadei tanto para morrer na praia... Mas algo brilhante à direita me chama a atenção: um pequenino sino de ouro pendurado, como se fosse uma espécie de campainha. Estico a mão para tocá-lo, estou no automático, meus pensamentos estão mais lentos e todas as minhas energias parecem voltadas para meus órgãos vitais...
O som do sino ecoa tão alto e tilintante que, por um momento, eu me afasto um pouco para trás, encarando o pequeno objeto. Como o som de um sino pôde ter saído mais alto do que quando gritei na floresta de pinheiros?
Os portões rangem e vão se abrindo lentamente, gemendo como se não fossem abertos há anos. Meu coração parece muito egoísta, batendo tão rápido assim e gastando minhas preciosas energias. Vejo uma praça com um chafariz no centro e até acharia bonito o jeito que a água congelou, até poderia estranhar as casas acinzentadas, mas tudo o que consigo fazer é encarar uma mulher alta e com ares majestosos, que está parada diante dos portões agora totalmente abertos.
Ela está com um invejável casaco de peles bem branquinho, tem uma longa cabeleira negra e uns olhos de um azul assustador. Sério, parecem de vidro. Por baixo do casaco dá para perceber que ela usa um vestido azul-celeste que se arrasta no chão. Ela me sorri torto e diz:
– Seja bem-vinda.
Não consigo responder e, como se estivesse lendo meus pensamentos, ela vem até mim e me envolve num abraço quentinho e revigorante. Agarro aquele casaco de peles e de jeito nenhum vou soltá-lo, o problema é dela se não gosta de abraços demorados. Mas ela não me empurra, nem se afasta de mim, pelo contrário, tira o casaco e o pendura em minhas costas. Deus te abençoe, minha filha, acaba de salvar minha vida!
Ela se levanta novamente e só então reparo na coroa em sua cabeça.
– O que é isso? Halloween? – A mulher parece não se ofender e dá um sorriso. Ela é realmente simpática!
– Não, você está na Terra dos Sem-Coração.
Eu diria alguma coisa, nem que fosse um palavrão, mas fico simplesmente estática. Quer dizer, a última coisa de que me lembro é do livro, da fechadura, mas, espera aí... Isso não pode ser real!
– Quero ir para casa. – É tudo o que consigo dizer.
Ainda estou ajoelhada, encolhida naquele gostoso casaco de peles e ela está de pé, diante de mim, naquele vestido encantador, com o vento frio soprando algumas mechas de seu cabelo.
– Tudo bem, você pode ir.
Por essa eu não esperava. Achei que estaria, tipo, presa numa terra fantasiosa dentro de um livro e jamais poderia sair!
– Posso?!
– O que te trouxe aqui? – Aquela pergunta me faz lembrar do Adrian e eu abaixo a cabeça, sentindo uma pontada no peito. – Algo triste, não é? Ninguém vem para cá porque está feliz. Você está ferida por dentro, vejo em seus olhos uma dor tão angustiante que te fez olhar através da fechadura e acreditar.
Eu ergo a cabeça e a encaro com raiva, quem essa coroada pensa que é? Abraço o casaco enquanto o nó em minha garganta se aperta. Ela pergunta meu nome e eu murmuro um "Melinda", satisfeita por ter conseguido dizer algo sem derramar todas as lágrimas que estou impedindo de escorregar.
– Melinda, eu sou a Rainha dos Corações Congelados. – Olho para ela com os olhos meio arregalados, meu cérebro não está processando as informações que vem recebendo nestes últimos minutos. – E eu posso curar a tristeza que está te matando aí dentro.
Engulo em seco, não consigo desviar os olhos dela nem falar. A Rainha me dá a mão e eu levanto. Ela é mais alta que eu e me encara de um jeito que me deixa desconcertada, não sei dizer se é um olhar bom ou ruim, só sei que mexe comigo.
– Mas você tem uma importante decisão a tomar: se ficar, você nunca mais sentirá tristezas como a que te trouxe aqui, se partir, estará por conta própria. – Eu arqueio a sobrancelha, estou com medo e a voz quase metálica da Rainha, que não demonstra nenhum fio de emoção, não ajuda em nada, só me deixa ainda mais desconfiada.
– Não vejo a desvantagem de ficar. – Tudo tem um ponto fraco, algo ruim. Ela não vai me oferecer diamante em troca de pedra.
– Melinda, não há uma desvantagem... – Eu a encaro. Ela estreita o olhar e minhas mãos começam a suar. Estou nervosa e assustada. – Há um preço a pagar.
Ah, sabia. Nada é de graça. Eu ergo a cabeça num sinal de que sou toda ouvidos e ela continua, com os olhos terrivelmente azuis brilhando de... Excitação, acho.
– O seu coração será arrancado e guardado no castelo. – Prendo a respiração e meu pobre coração, antes tão afoito, parece parar de repente. O quê?! – É isso aí, Melinda. Para não sentir mais a angústia que te fere, você precisa abrir mão do que te faz sofrer.
– Mas eu vou morrer! – grito. Que ideia insana é essa?!
– Eu estou viva. Todos nós estamos. – O sorriso dela se alarga e eu tenho a impressão de que ela saiu de um filme de terror, psicopata maluca!
– Dói? – O quê? Ah, essa minha boca grande... Eu não vou ficar! Melinda, e a Ashley, e os seus pais?
Mas pensar neles me leva a pensar no Adrian e, instintivamente, eu fecho os olhos. Lembro-me dos desenhos que fiz, dos poemas que tentei escrever, dos sonhos de garota apaixonada... Como vou superar isso? A Ashley vive tão ocupada quanto eu, meus pais separados quase não têm tempo para mim e eu não consigo fazer isso sozinha...
– Um pouco – responde a Rainha e eu estremeço. – Mas o que dói mais: ficar com seu coração, ou arrancá-lo? Pense, Melinda, seu tempo está acabando. Você precisa decidir!
Eu olho para ela, desesperada. Não tenho certeza se o que está acontecendo é real ou não, mas sei que a decepção, a tristeza e a dor de meu coração em pedaços é bem real. E eu quero fazer tudo isso simplesmente desaparecer! Olho para o meu peito e ponho a mão no rumo onde palpita o pequeno desesperado. Eu sinto muito, mas se não tirá-lo de mim, vai ser pior... Não consigo nem imaginar como esquecer o Adrian e preciso seguir em frente... Em meu caminho há uma bifurcação e, neste momento, não vejo nenhum motivo para voltar para casa. Estou despedaçada, murcha como uma rosa e ferida como uma presa... Posso ficar aqui até ser curada e depois volto, mas não posso enfrentar tudo sozinha...
– Eu fico... Quero ficar – digo isso e deixo minha mão cair, estou derrotada.
E então, sem aviso nenhum, a Rainha enfia a mão em meu peito e eu sinto como se todo o meu corpo fosse eletrocutado, minhas pernas perdem as forças e eu agarro a Rainha, tentando permanecer de pé. Abro a boca tentando gritar, mas não consigo. Então, olho para a mulher em minha frente, estarrecida, enquanto ela me encara como se sentisse prazer.
Finalmente, ela puxa para fora meu coração e eu caio prostrada no chão, gemendo e arfando de dor. Meu Deus, meu Deus! Meu choro sai entrecortado por tentativas de respirar enquanto me contorço no chão. Sinto-me como se fosse uma casca: um corpo sem alma, pensamentos soltos, sentimentos mortos... Solto gritinhos de dor e seguro com força meu peito, buscando desesperadamente por alívio. De repente, ouço a Rainha dizer tranquilamente, como se não estivesse ouvindo os meus soluços ou vendo minhas lágrimas:
– Hum... Isso é incomum. – Será que ela não pode demonstrar nenhuma emoção?! Você acabou de arrancar meu coração e fala como se estivesse fazendo compras no supermercado!
Quando ela diz isso, fecho meus punhos sobre onde uma vez bateu um coração e levanto a cabeça, encarando-a irada. Você disse que doía um pouco, mas essa é a pior dor que eu já senti!
– O quê? – ranjo entre os dentes. Meu corpo todo treme e sinto um pânico, uma inquietação tão grande que simplesmente não sei explicar!
– Olhe. – Ela se ajoelha e mostra meu coração nas mãos.
Terror é pouco perto do que eu sinto ao ver, nas mãos da Rainha, um coração todo rasgado e arranhado, batendo desesperadamente. Encaro-a apavorada e, para o meu espanto, ela diz, normalmente:
– Está vendo essas duas gotinhas de sangue escorrendo na minha mão? É o choro de um coração quando ele é tirado do corpo ao qual pertence. Geralmente os corações choram uma gota, o seu chorou duas. Você tinha muita frustração aí dentro...
Duas lágrimas escapam de meus olhos e ver meu coração nas mãos da Rainha me faz morrer de pena dele. Minha mão ainda está no peito e eu acho muito estranho não sentir o que a vida inteira estava ali, dentro de mim, batendo vinte e quatro horas por dia... Estou começando a me arrepender da minha decisão quando a Rainha vira meu rosto para encará-la, dizendo:
– Querida, não vou mentir para você. Por alguns dias terá pesadelos, sentirá um vazio no peito impreenchível e vai ter a sensação de que é um corpo sem alma. Mas faz parte do processo de adaptação, depois de alguns dias você estará acostumada com a ausência de seu coração e nunca mais vai sofrer por nada, eu prometo.
Apesar das palavras bondosas dela, continuo chorando. Não soluço, são apenas lágrimas escorrendo de meus olhos assustados. Eu arranquei meu coração! A Rainha sorri gentilmente, o que me leva a pensar: como alguém pode ser tão doce e assustadora ao mesmo tempo? Ela, então, vira o rosto e grita, aparentemente para o nada:
– Temos uma nova moradora! Não sejam tímidos, venham cumprimentá-la!
Nada acontece por alguns minutos, até que a porta de uma das casas cinzas se abre e de lá sai um garoto embrulhado num casaco preto de peles. Não consigo ver seu rosto porque ele ainda está longe e usa um capuz, mas dá para ver que ele é bem alto. Não como os jogadores de basquete, mas ainda assim mais alto que eu. A Rainha sorri animada.
– Ah, obrigada, querido! Leve-a para a casa número 17, ok? – Ela volta-se para mim e avisa. – Você passou por muita coisa e um dos efeitos colaterais de se perder um coração é o sono. Vá, descanse bem que amanhã eu mandarei te chamar, então conversaremos melhor, está bem?
Concordo com a cabeça e ela olha para o casaco que eu abraço com carinho. Ah, não! Deixa ele comigo, vai... Mas eu não consigo fingir que não vejo aquele olhar e acabo entregando-o com desgosto.
A Rainha se vira e segue para o castelo, montada num lindo alazão branco que eu nem reparei que estava ali. De repente, alguém me abraça e eu estremeço de susto: é o garoto. Ele começa a caminhar, me empurrando para ir junto dele. E ainda bem que seu braço está ao redor dos meus ombros, minhas pernas estão tremendo tanto que sem esse apoio acho que não seria capaz de dar um passo sequer.
– Não se preocupe, você encontrará roupas quentes e casacos no guarda-roupa do seu quarto.
Tento ver o rosto dele, mas sua altura e o capuz atrapalham. Chegamos diante da casa 17 e ele pega uma chave debaixo do tapete. Entramos na casa e sinto um alívio ao perceber o quão quentinha ela é! O garoto se vira para ir embora e, num reflexo, eu seguro a mão dele.
– Obrigada. – Ele puxa o capuz para trás e finalmente posso ver o rosto dele: cabelos negros como a noite, olhos verde-floresta e traços fortes, ele é sem dúvida um cara que faria o coração de uma garota disparar. Se ela tivesse coração. – Meu nome é Melinda – termino.
Dou um sorriso, mas ele me olha compenetrado, sem esboçar emoção. Parece insensível e aqueles olhos de lobo fazem-me sentir incomodada.
– Max. De nada. – Ele se vai e eu não consigo parar de pensar: qual o problema dele?!
Fecho a porta e vou explorar a casa: todos os móveis são rústicos e de madeira escura, tem uma gostosa lareira na sala e o fogo dela me faz pensar se eles sabiam que eu viria. É claro que não sabiam, mas, então, como já estava tudo preparado? Encontro o quarto e corro para o guarda-roupa. Pego uma camisola de lã e tiro apressadamente a roupa, meu vestido está úmido e é ótimo finalmente poder tirá-lo!
Jogo-me na cama,aninhando debaixo das pesadas cobertas... A Rainha tinha razão, estou morrendode sono... Sinto-me muito mal, uma solidão e um sentimento de estar faltandoparte de mim me consome por dentro, mas meus olhos estão tão pesados que ésimplesmente impossível mantê-los abertos...
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