EPÍLOGO
SETE ANOS DEPOIS
O dia estava mais quente do que o normal e o fato do meu escritório ficar de cara para o sol não ajudava em nada a aliviar o calor.
O ar condicionado já não aguentava dar conta de refrescar a sala e praticamente pedia arrego em um barulho estalado que começava a me irritar.
— Preciso trocar essa coisa urgente. -Murmurei enquanto assinava alguns papéis da Instituição Íris.
Durante mais de seis anos eu trabalhei com afinco naquele lugar.
Dei meu suor e sangue para que todas as meninas que estivessem ali ficassem a salvo e soubessem que não correriam mais perigo nas mãos daquela maldita gangue.
Eu ainda ficava chateada ao lembrar de que mesmo com a morte de Harvey, nada mudou.
Outra pessoa assumiu a chefia e eles continuaram tentando aliciar jovens inocentes com a promessa de que seriam ricas ou que ganhariam o suficiente para manter as suas famílias, filhos, irmãos, sobrinhos...
A tática mudou, já que eles não podiam mais correr riscos como aconteceu com Steven, no entanto, como eu prometi depois de aceitar a proposta de Viktor, não deixei de ajudar a segunda divisão a prender aqueles filhos da puta.
Essa era a minha missão e eu continuaria lutando até o final da minha existência.
Por falar na segunda divisão, Josh assumiu o posto de Harvey e isso foi fundamental para mim.
Nossa aliança se tornou inquebrantável e a cada garota que desaparecia eu recebia o seu chamado de uma linha livre de grampo.
Porque é claro que nossa união teve que permanecer em segredo, caso contrário o governo cairia em cima de nós dois por conta de que até mesmo no mais alto escalão há corrupção e pessoas que se beneficiam de mulheres indefesas.
Só de pensar nisso meu estômago embrulhava e eu precisava engolir aquela vontade de vomitar.
Guardei os documentos na gaveta com chave e respirei fundo me preparando para tomar um descanso, comer algo e ligar para o meu marido para saber como estavam as coisas no cassino.
Eu amava aquele homem com todo o meu ser e morria de saudades quando não estávamos juntos, mas ao mesmo tempo sabia que tanto eu quanto ele precisávamos do nosso espaço.
Observei o meu dedo anelar com uma aliança preta adornada com pedras vermelhas em formato de rosas e sorri lembrando de como me senti completa quando o amor da minha vida deslizou aquela jóia pelo meu dedo no dia do nosso casamento.
Podia até mesmo ouvir as palavras que ele sussurrou no meu ouvido enquanto deslizava lentamente o anel.
"Eu prometo que sempre vou te amar, te cuidar e te respeitar. Você é a minha Rainha de Copas e eu sou o seu súdito."
Nós optamos por não fazer uma cerimônia espalhafatosa, apenas amigos e família, mas foi perfeito.
— Caramba, é incrível como a cada dia que passa você parece mais e mais apaixonada pelo seu marido que também é um bobão. -Sabrina brincou encostada no batente da porta e levei minhas mãos até o peito para acalmar meu coração que batia acelerado com o susto.
— Vou ser obrigada a colocar um sininho no seu pescoço se continuar entrando assim no meu escritório -resmunguei me levantando da cadeira e me aproximando do seu corpo esguio.
Sabrina acabou virando meu braço direito na casa e se não fosse por ela eu teria ficado louca.
Ela é muito inteligente, fez faculdade de contabilidade e me ajuda com todas as burocracias da instituição além de ter se tornado uma boa amiga.
— É tão divertido te assustar, nunca perde a graça. -Ela sorri dando de ombros recebendo uma revirada de olhos como resposta.
— Aconteceu algo? Você só me interrompe assim quando é coisa séria.
Os olhos castanhos me encararam por alguns segundos antes dela sorrir novamente.
— Não aconteceu nada, só vim te avisar que a sua visita já está aqui... -Sabrina nem terminou de falar quando um furacão passou ao lado das suas pernas indo direto até onde eu estava parada e pulando no meu colo, como de costume.
— Mamãe! - Zoey gritou animada apertando as minhas bochechas. — Te amo tanto, tanto, tanto! -Completou em um sorriso banguela e levantei uma sobrancelha desconfiada.
— Hum... eu também te amo meu amor, mas tenho a sensação de que essa declaração vem acompanhada de algo mais. -Seus olhos imediatamente brilharam com lágrimas não derramadas e nesse momento meu peito se apertou com medo de que algo tivesse acontecido com a minha menina.
Viktor passou pela porta do escritório minutos depois caminhando direto até mim, beijando minha boca rapidamente antes de tirar Zoey do meu colo e colocá-la no chão.
— Acabamos de voltar da escolinha. -disse respirando fundo. — Zoey bateu no colega... de novo.
— Foi culpa dele! -Ela gritou com os braços cruzados e a cara fechada e me abaixei para ficar na sua altura.
Suas bochechas adquiriram um tom avermelhado de raiva e seu peitoral subia e descia rapidamente como se ela estivesse a ponto de ter um infarto.
— Pode me explicar o que aconteceu? -Pedi acariciando o seu rosto quente por conta de toda a fúria contida.
Viktor aproveitou para se sentar em uma das poltronas vazias pois sabia que não adiantava intervir ao seu favor.
Aquela conversa era entre nós duas.
— Danniel me xingou outra vez e eu já estou de saco cheio de aguentar tudo calada. -Franzi o cenho respirando fundo.
— O quê ele te disse?
— E-ele falou que eu era um cachorro como daquele filme da Cruella que a gente viu semana passada e que vocês me acharam jogada em uma caixa de papelão em um beco, por isso meu cabelo e minha pele são diferentes das suas. Pelo menos Rico me defendeu, como das outras vezes.
Meus olhos se encheram de lágrimas ao escutar as palavras que jorravam da sua boca como adagas lançadas no ar e então eu compreendi a sua raiva.
Zoey sabia que ela não tinha nascido das minhas entranhas, mas ela também sabia que isso não significava que a amávamos menos.
O único problema, era que as pessoas viam como ela era uma garotinha negra, com vitiligo no rosto e em algumas partes dos braços e o cabelo tão enroladinho que me fazia chorar de tão lindo e pensavam logo de cara que ela não era nossa filha, afinal de contas Viktor era alemão e eu caucasiana de olhos castanhos.
Até mesmo já disseram que ela era filha da Susanna de tanto que os dois passavam tempo juntos e pareciam um pouco.
Sua cabeça estava baixa quando ela terminou de contar, o queixo quase encostando no esterno e meu coração apertou de raiva e impotência.
— Ei, olhe para mim. -Segurei sua bochecha levantando o seu olhar e me controlando para não deixar transparecer a tristeza que estava sentindo ao ficar sabendo de toda aquela confusão. — Você pode até não ter saído daqui. -Apontei para a minha barriga. — Mas sempre esteve e sempre vai estar aqui. -Guiei sua mão até o meu peito do mesmo jeito que coloquei a minha sobre o seu coração. — Está sentindo? Eles batem na mesma frequência e isso é suficiente para mim.
— Mas eu nunca vou ser igual ao papai ou a você... -Ela choramingou sem estar convencida.
Viktor se aproximou e a pegou no colo levando-a até o espelho que ficava em uma das paredes laterais do escritório.
— Pois eu estou vendo dois gêmeos. Olha só, até mesmo essa meleca no nariz é igual a que eu tenho aqui. -Ele fez de conta que estava cutucando o nariz e Zoey caiu na risada.
O som mais maravilhoso da face da terra.
— Você é linda e perfeita, filha. Seu rosto, seu cabelo e principalmente essa partezinha aqui. -Ele tocou a sua testa e depois o seu coração exatamente do jeito que eu fiz segundos antes. — E também aqui.
Me juntei aos dois e nos unimos em um abraço familiar ficando na mesma posição por alguns minutos.
Durante anos eu neguei a simples ideia de ter um filho ou crescer como família.
Viktor também estava de acordo com essa decisão e nossa vida seguia o seu curso até que um dia uma ligação de Josh fez tudo mudar.
SEIS ANOS ANTES
— Alicia, preciso que me acompanhe urgente! Descobrimos uma casa de tráfico humano e uma das garotas está gravemente ferida pela troca de tiros. -Meu amigo gritou pelo telefone enquanto xingava quem quer que estivesse ao seu lado.
— Me envie o endereço por mensagem, chego em minutos. -Eu disse já me preparando para mais um confronto.
Aquela semana tinha sido intensa e eu já não aguentava mais toda a pressão psicológica.
Mesmo assim eu sabia que não poderia dizer não ao seu chamado.
Meu instinto me dizia que eu devia ir, que me arrependeria amargamente se não o fizesse então coloquei a arma na cintura e subi na minha moto seguindo o endereço que tinha acabado de receber.
Também liguei para Viktor e informei o que estava acontecendo para que ele não ficasse preocupado e ao mesmo tempo enviasse algo de ajuda.
Depois de um tempo a amizade de Josh e Viktor acabou florescendo.
Eu conversei com o meu amigo e ele assumiu ter projetado em mim um sentimento de amor onde só havia amizade e afinidade sexual e até mesmo me pediu desculpas por ter me colocado naquela situação ao confundir as coisas entre nós dois.
Além do mais, depois de um tempo ele finalmente encontrou alguém que pudesse corresponder todos os sentimentos que ele tinha para dar e isso só me fez mais feliz ainda porque assim poderíamos continuar com nosso trabalho sem ficar desconfortáveis.
No início Viktor tinha medo de me deixar participar das missões, mas ele acabou se rendendo ao fato de que não poderia mudar a minha escolha.
Porque por mais que eu já não trabalhasse na delegacia, ainda era uma detetive e sempre lutaria por aquelas garotas.
Demorei menos de vinte minutos para chegar no local e quando desci da moto, tudo era uma confusão.
O barulho dos disparos fez meu coração pular desenfreado dentro do peito e segurei firme minha arma enquanto ia de encontro ao meu amigo que estava agachado atrás de uma parede de cimento para se proteger.
O desespero me invadia a cada explosão e fazia toda a minha pele se arrepiar.
Eu precisava fazer algo.
Precisava ver se havia alguém lá dentro.
Precisava salvar quantas garotas pudesse.
— Já pedi apoio, as viaturas vão chegar em minutos, enquanto isso temos que manter a calma e não fazer merda, ok? -Josh sussurrou ao ver minha expressão de raiva.
— Se demorarmos mais vamos ter apenas cadáveres para levantar, Josh. -Resmunguei mesmo sabendo que estava sendo dura com ele sem nenhuma razão.
— Eu sei Alicia, mas se fizermos alguma besteira, nossos cadáveres vão estar lá no meio também.
Ele segurou meu braço me fazendo perceber que estava me levantando provavelmente para cruzar o pátio e entrar na casa.
O tempo parecia não passar e demorou quase dez minutos para que a primeira viatura aparecesse.
— Finalmente, porra! -Gritei disparando na perna de um dos integrantes da RD que estava prestes a fugir ao ver a polícia se aproximando.
Depois disso tudo virou uma confusão.
Pessoas correndo para um lado, tiros rolando soltos por outro e nada de entrarem na maldita casa.
— Eu vou entrar, Josh. Ou você me segue ou me dá cobertura daqui. -Rosnei sabendo que ele jamais me deixaria sozinha nessa.
— Vamos por trás, lá tem uma porta e poderemos entrar sem chamar a atenção de ninguém.
Balancei a cabeça em concordância e corremos até a parte traseira da casa, onde várias manchas de sangue pintavam o chão de cimento fazendo meu corpo inteiro se arrepiar.
— Merda. Só espero que seja de algum dos idiotas. -Sussurrei para mim mesma.
Josh se aproximou da porta e chutou a madeira velha que por pouco não se desintegrou de tão podre que estava.
Entramos na casa segundos depois, ambos em alerta e preparados para qualquer surpresa.
No entanto, o que nos deixou de queixo caído foram duas coisas:
A primeira, a casa estava praticamente vazia.
Não havia nenhum tipo de móvel, nem mesmo um fogão. Nada.
E a segunda: havia colchões espalhados por cada cômodo, ao lado deles, vasilhas que pareciam ser de comida e água, como se aquelas meninas não passassem de animais.
— Meu Deus... -Meus olhos se encheram de lágrimas, mas continuei avançando em busca da garota ferida que Josh tinha mencionado.
Cada segundo era crucial para salvá-la e eu até mesmo podia sentir como o seu tempo estava acabando.
Me separei de Josh para cobrir melhor o perímetro e quando estava quase desistindo de encontrá-la, um choro de criança chamou a minha atenção.
Procurei de onde vinha o barulho, mas o quarto onde eu estava parecia estar vazio, com exceção de um guarda roupas de madeira.
Então foi como se uma luz acendesse dentro da minha cabeça e abri uma das portas dando de cara com a pior cena que tinha visto na vida.
— Josh, aqui! -Gritei desesperada.
A menina na minha frente não parecia ter mais do que quinze anos, seu corpo estava coberto de sangue por conta dos tiros, mas o que mais me deixou abalada, foi ver como ela mantinha um bebê nos seus braços, protegendo-o com o próprio corpo ao me ver.
— Por favor, não nos machuque. -Ela disse em um sopro frágil e balancei a cabeça rapidamente.
— Sou da polícia, estou aqui para te ajudar. Seu bebê também está ferido? -Perguntei tentando engolir aquele nó que se formava na minha garganta e manter o máximo de profissionalismo que eu conseguia.
— Não, ela está bem. Zoey... é o seu... o seu nome. Por favor, não deixe que nada de mal lhe aconteça. -A garota pediu tossindo uma enorme quantidade de sangue ao falar.
— Ei, vocês duas vão sair daqui, ok? Aguente só mais um pouquinho. -Pedi tentando desesperadamente estancar as hemorragias na sua barriga e pernas.
— Por favor... não vou conseguir. Cuide dela... por favor.
— Eu prometo que vou cuidar dela, só não durma, ok? Não feche os olhos.
Um sorriso sereno cobriu o seu rosto de criança e foi como se eu tivesse levado um soco na boca do estômago.
— O-obrigada, você será uma ótima mãe, tenho certeza disso.
Essas foram as suas últimas palavras antes de fechar os olhos para sempre.
Fiquei encarando a jovem com a pele negra, um corpo ainda em fase de desenvolvimento, mas que tinha passado por muito e que estava coberto de sangue e injustiça.
A bebê nas suas mãos era idêntica a ela, pelo que assumi ser sua filha.
Ela parecia uma bonequinha.
Os olhinhos assustados me encaravam, as íris escuras refletindo meu rosto me fazendo perceber que eu estava chorando.
— Deus, o que aconteceu aqui? -A voz de Josh me fez piscar lentamente e eu estava me virando para lhe contar tudo, quando senti um toque suave na minha mão.
Me virei de volta para encontrar os dedinhos da pequena Zoey segurando os meus como se quisesse se certificar de que eu não a deixaria ali.
Nesse instante meu coração pesou tanto que desabei no chão sujo daquela casa velha carregada de maldade.
— P-preciso ligar para Viktor, eu... -Gaguejei pegando a bebê no colo de maneira desajeitada.
Josh continuou revisando se não tinha mais ninguém na casa antes que ela fosse invadida pelos policiais que vieram nos apoiar.
Retirei meu telefone do bolso da minha jaqueta e disquei o número de Viktor com os dedos trêmulos.
Ele atendeu no segundo toque e respirei fundo para tentar me acalmar.
— Amor, está tudo bem? Por favor, não me diga que você está ferida. -Perguntou preocupado.
— E-eu estou bem, -suspirei balançando meu corpo para frente e para trás — É só que... Deus, havia uma menina, ela... ela estava ferida e tinha uma bebê... ela está bem, acho que a sua mãe usou o próprio corpo como escudo para protegê-la.
As palavras jorravam pelos meus lábios parecendo não fazer sentido.
— Porra. Eu sinto muito, amor... Como está a mãe da bebê?
— Ela morreu e me pediu para... me pediu para cuidar da sua filha! Eu não sei o que fazer, Viktor!-Expliquei chorando, as lágrimas parecendo ácidas conforme escorriam pela minha bochecha.
Um silêncio se instaurou do outro lado da linha e eu podia escutar o barulho da sua respiração acelerada.
A pequena no meu colo parecia saber que eu estava triste e levou a mãozinha até o meu rosto, um sorrisinho sem dentes se formando no seus lábios perfeitos.
— O quê você deseja fazer, liebe? Pode trazê-la para a instituição até vermos como seguir, chamar o pessoal da assistência social, esse é o protocolo, lembra? -Viktor ofereceu depois de alguns minutos.
Abaixei a vista para observar a garotinha e foi como se algo dentro de mim gritasse para eu não fazer isso.
Uma voz que me dizia que eu deveria cumprir a promessa que eu tinha feito. Como se eu estivesse destinada a estar naquele lugar, naquela hora.
Eu não podia deixá-la.
— Eu não quero fazer isso, Vik. -Sussurrei aterrorizada. — Prometi que cuidaria dela... eu...eu sinto que ela precisa de mim.
Novamente o silêncio se fez presente e engoli em seco temendo que a resposta de Viktor fosse um não com todas as letras, afinal eu estava sugerindo uma loucura e tinha pego o meu marido de surpresa.
No entanto, quando ele voltou a falar, me fez lembrar do motivo de eu amá-lo loucamente.
— Então nesse caso, traga a nossa filha para casa, Coelhinha.
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