03 | HERDEIROS DA TERRA
Quando abriu os olhos, Azzenka se deparou com uma janela reforçada e impenetrável. Do outo lado, podia ver uma Europa diferente da qual estava acostumado a apreciar na Capital. As estradas da pequena cidade eram largas e tudo estava impecável, sem nada do tumulto da grande metrópole. Grandes casarões e castelos eram as únicas coisas que compunham o lugar, além de jardins enormes e arbustos milimetricamente podados. No centro da pequena cidade, havia um lago esverdeado, uma ponte de tijolinhos com barras de ferro nas laterais, parecia algo tirado da era das trevas. E mesmo sendo tudo tão arquitetônico e bem cuidado, Azzenka conseguia sentir apenas tristeza.
As luzes do teto se acederam e ele soube que iriam pousar. Colocou as mãos no rosto e se preparou para se levantar, mesmo não querendo. Quando passaram pela quadra de esportes aberta, soube que estava bem perto de sua antiga casa. Ainda tinha memórias vívidas de quando passava as férias junto de seus amigos. Hoje, todos assumiram responsabilidades perante suas famílias e tudo deixou de ser como antes.
O castelo se mostrou no horizonte e toda a dor estarreceu a mente de Azzenka novamente. Todas as vezes em que vinha até ali e avistava as vidraças negras do castelo de sua mãe, sentia vontade de chorar. A arquitetura remetia a algo medieval, com torres e tetos pontudos. Era formado por torres desreguladas, dando um ar gótico a tudo. Quando ainda vivia com Camilie, sua falecida mãe, morria de medo de encontrar fantasmas dentro do castelo, com a morte dela, o lugar ficou conhecido como Castelo da Desesperança.
A nave pousou, estava com o coração acelerado, mas se acalmou quando viu a nave prateada do irmão mais novo, Ekko. Se levantou e caminhou até a saída, relembrando todas as vezes que sorriu quando a mãe ainda viva. Não esperou Ekko para entrar no castelo, queria acostumar-se sozinho com o interior novamente. Desde a morte prematura de Camilie, Azzenka nunca mais retornou para o pequeno vilarejo europeu que ela tanto adorava.
As portas negras se abriram sozinhas, e os guardas vestidos de azul o reverenciaram. Não olhou para o rosto deles, ou os assustaria. Azzenka entrou em passos lentos e silenciosos, pesados, temerosos com as memórias que iria relembrar. A escadaria de mármore branco era a primeira coisa avistada lá dentro, era enorme, imponente, como em castelos da antiguidade. Nas paredes estavam telas pintadas a mão de antigos Imperadores da Terra e suas esposas. Desde pequeno, nunca gostou de observar por muito tempo o rosto sério dos mortos.
Como uma forma de se desafiar a aguentar todas as emoções, Azzenka caminhou pelas telas. O primeiro era Gregório Zancarli, o melhor dentre todos os Celestes, aquele que reuniu os melhores de cada continente e conquistou todo o mundo. Ao lado dele, Adora Honório, sua esposa. Ela tinha o rosto marcado por uma pequena cicatriz no queixo, e os olhos Celestes como a pedra alienígena que deu origem a tudo. Azzenka tinha medo de olha-la mais do que o suficiente, principalmente porque lembrava muito a descendente dela, Agrippina Honório, que mesmo não sendo uma dos Celestes Conquistadores, conquistaria facilmente a humanidade com sua perspicácia.
Quando criança, seu pai, Maloch Zancarli, o obrigou a estudar cada um de seus antepassados, as formas como governaram, como perderam e venceram batalhas, e por isso, reconhecia cada um dos rostos ali. Seu pai adorava a história de todos que conquistaram e aumentaram o poder da família, mas teve que parar quando reconheceu o rosto da Imperatriz Alicant Zancarli, a Perdedora. Se lembrava muito bem do pai dizer o quanto era burra e imatura, perdendo uma guerra e manchando para sempre o nome Zancarli.
As portas se abriram novamente e Azzenka se virou assustado, um pouco atordoado por estar ali novamente, depois de tanto tempo. Ekko entrou, visivelmente abalado. Seus cabelos brancos estavam manchados de algum tipo de tinta cinza azulada, o que fez o irmão estranhar.
— Tantos quadros para admirar, e escolheu o de Alicant? Nosso pai o deserdaria por isso — murmurou Ekko.
— Nosso pai me deserdaria por qualquer detalhe.
Azzenka abandonou os quadros e foi para onde o irmão estava. Suas roupas eram parecidas, de um azul escuro com detalhes em preto, mas seus rostos eram bem diferentes. Enquanto Ekko mantinha a estética Celeste de cabelos brancos, Azzenka tinha os cabelos pretos do pai, que herdaram dos primeiros Celestes, era raro, mas alguns poucos nasciam com cabelos escuros.
— Acho que não senti saudade desse lugar — comentou Ekko. — Apenas dela.
Os dois irmãos olharam ao redor, sentindo a alma da mãe em todos os cantos do castelo. Nenhum dos dois aceitou a morte dela, principalmente por saberem quem foi o responsável. Em uma noite chuvosa, ela tomou o máximo de veneno que encontrou. Na época, já estava divorciada de Maloch, que a deixou para morrer no castelo, abandonada junto dos dois filhos. Ele estava encantado com Júpiter Xio, uma Celeste belíssima, que já havia dado a luz a um terceiro irmão, Velkoz.
— Me promete que vai vencer na Arena de Sangue e vai vingar a morte dela.
Azzenka ficou em um silêncio brutal e incômodo. Não gostava quando o irmão falava sobre a arena, era uma coisa que evitava se lembrar. Quando Gregório Zancarli conquistou a Terra e se viu em uma encruzilhada para decidir quem seria seu sucessor entre os quatro filhos, decidiu que o trono seria passado para aquele que vencesse em uma batalha até a morte. Desde então, Azzenka, Ekko e Velkoz estão destinados a se matarem em um festival, aquele que sobreviver, vira Imperador. Matar Velkoz não é um problema, afinal, é o filho da mulher por quem sua mãe foi trocada, o gatilho que a fez sucumbir e se entregar para sempre para a depressão e melancolia, mas matar Ekko é, definitivamente, um problema.
— Está me pedindo para te matar? — perguntou ele, com a voz baixa.
— Não. Não exatamente. Mas você sabe, não pode fugir disso para sempre. Foi para isso que nós nascemos, para brigarmos naquela arena, e você e o resto do mundo inteiro sabem que não vou vencer.
Azzenka olhou minuciosamente para o irmão, para seu corpo frágil e mais baixo que o normal. Ekko não é um guerreiro, não como os Celestes foram feitos para ser, mas ele e Velkoz são, então, mesmo não querendo admitir, Ekko não vencerá a Arena, o mundo espera a derrota dele.
O silêncio foi quebrado pelo som horrível de outra nave se aproximando. Os dois se entreolharam. Ali era uma cidade privada, proibido que fosse sobrevoada por qualquer pessoa. Azzenka caminhou até a janela e pôde ver a nave azul escuro de Velkoz, o irmão do meio.
— Velkoz está indo para a Capital também — murmurou Azzenka, já sentia a raiva o consumindo.
— Nosso pai o convocou também?
— Aparentemente, sim.
Azzenka não queria ver mais nenhum cômodo do castelo da falecida mãe, ou então desabaria. Todos os dias, se perguntava como seria tê-la por perto. Quando menor, havia tentando impressionar o pai de todas as formas, mas não conseguia. Para a imprensa e para a mídia, era o filho prodígio, o preferido para ser o próximo Imperador, mas para o pai, não passava de um lixo.
— Está na hora de irmos.
Ekko balançou a cabeça em concordância e os dois retornaram para suas naves em silêncio, pensando em como tudo poderia ser diferente se Camilie não tivesse sido morta.
...
Azzenka viajou até a Capital sentindo o sangue ferver em suas veias. E quando finalmente pôde ver a cidade no horizonte, ficou ainda pior. Não fazia idéia do porquê Maloch havia convocado os três filhos, mas tinha certeza que terminaria em uma briga.
Diferente do vilarejo onde ficava o castelo de sua mãe, a Capital era movimentada, com o céu lotado de aeronaves e prédios. O barulho era insuportável, os motores nunca paravam de funcionar. O centro era povoado pelos mais ricos, protegidos pelos mais pobres nos arredores. Azzenka nunca havia parado para pensar neles, para analisar como eram as condições de vida deles. Ele estava sempre ocupado demais tentando irritar o pai e pensando em não morrer na Arena de Sangue.
Em minutos, ainda nocauteado pela raiva, quando percebeu ao seu redor, já estava caminhando entre as naves do palácio do pai. Isso seria uma matéria interessante nos tablóides: a família Zancarli enfim reunida, depois de tantos anos. A nave do irmão mais novo estava estacionada bem a frente da sua, e pôde perceber que havia uma nave branca e uma serpente vermelha na lateral. Sabia o que isso significava: um dos Honório estava ali. Quase sorriu, gostava de Agrippina, mas não de Constantine.
Como uma forma de sempre homenagear as raízes e relembrar a todo momento o quanto são superiores, o castelo do Império Terráqueo é localizado exatamente no lugar que Gregório Zancarli pousou a primeira vez como conquistador. Caminhou pelos corredores como um zumbie, alheio a tudo que acontecia ao seu redor. Não sabia onde estava Ekko ou Velkoz.
Passou pelo salão de reuniões. Espiou pela janelinha de vidro na porta e viu que estava vazia e escura. O pai devia estar em seu escritório pessoal. No meio do caminho, encontrou Agrippina parada em um canto sozinha. Estava vestida em um belo traje espacial branco. Os cabelos platinados brilhavam como a lua pálida, e os olhos azuis o fitaram imediatamente.
— Olá, querido — cumprimentou ela, e abriu um sorriso encantador, que mostrava cada um dos seus dentes brilhantes e alinhados. — Fiquei com saudades.
A mão de Agrippina percorreu a cintura de Azzenka com agilidade, e depositou um beijo em sua bochecha. O Zancarli sentiu o perfume dela e ficou um pouco embriagado. Os dois eram quase do mesmo tamanho, a Honório poderia muito bem ser uma Celeste guerreira, mas ela era nascida no Ninho dos Honório, as serpentes ardilosas do Império, e por isso escolheu o caminho dos estadistas.
— Seu irmão está aqui — disse ela, sorria com um pouco de escárnio e ansiedade para saber o que aconteceria nos minutos seguintes. — Ele já está na sala com o pai de vocês.
— Como sempre, você sabe mais sobre minha casa do que eu.
— Ah, não fique bravo, docinho. — O apelido que Agrippina lhe deu soou como mel nos lábios vermelhos dela, Azzenka sentiu a nostalgia no coração. — Não brigue comigo, sou sua principal aliada.
Azzenka confiava em Agrippina, mas ela era esguia e fria como a serpente no brasão dos Honório. Ela era a preferida de Maloch e parecia manipular até mesmo ele. Não tinha tanta certeza se podia gostar tanto dela. Quando crianças, eram inseparáveis. Brincavam nas casas de férias durante todo o verão e roubam doces na madrugada. Agora, ela era uma das pessoas mais perigosas do Império. Ainda não era Governadora porque o pai Constantine estava vivo, mas ela agia como se fosse. Sempre ela a frequentar reuniões e a ter destaque em eventos de estado. Os outros herdeiros sonhavam em ter um pouco da glória de Agrippina Constantine.
Azzenka sorriu e deu o braço a torcer. Agrippina não era muito amiga de Velkoz, e isso já bastava para que confiasse nela. Ekko surgiu do outro lado do corredor. A porta se abriu e Velkoz surgiu furioso do outro lado. Azzenka sentiu um arrepio, sabia que algo ruim estava prestes a vir.
Velkoz e Azzenka se odiavam por terem nascidos como inimigos declarados. Um não viveria se o outro não morresse. Mas para a tristeza de ambos, eram bem semelhantes, com todas as características do pai. Eram grandes e fortes, e o rosto muito parecidos. se encararam e o ar ficou ainda mais tenso. Todos se encaminharam para o escritório. Agrippina tocou as costas de Azzenka tentando acalma-lo.
Maloch estava sentado em sua cadeira de couro rotatório atrás de uma mesa preta gigantesca. Haviam papéis jogados por todo lado, e um armário trancado atrás dele. Na parede principal, um quadro enorme do brasão Zancarli. Os cabelos preto dele eram idênticos aos de Azzenka, uma raridade genética entre os Celestes. Era quase que uma marca especial dos Zancarli. Seu rosto exibia soberba e escárnio, estava ansioso pela embate com seus filhos.
— A família enfim reunida.
Os três irmãos se entreolharam rapidamente. Azzenka sentiu um aperto do peito e a garganta trancou. Podia sentir a raiva de Velkoz, que não segurou o resmungo ao encarar o pai.
— Vocês devem estar se perguntando o porquê de Velkoz relinchar igual um cavalo nesse exato momento - comentou Maloch. — Espero que sejam mais obedientes quando dou ordens.
O silêncio se tornou sepulcral. Maloch esboçou um sorriso ladino e encarou Azzenka, que estava imóvel como as estátuas dos seus ancestrais no andar de baixo.
— Inscrevi todos vocês no Torneio Celestial.
— Só pode ser brincadeira — vociferou Azzenka.
Agrippina respirou fundo e encarou Maloch. A raiva dos três era tangível, quase visível. Ekko perdeu a fala, sentiu o corpo mole e a visão se turvava mais a cada segundo que se imaginava no Torneio Celestial. Velkoz estreitou os olhos enquanto encarava o pai, até ele estava com raiva, mesmo sendo o preferido.
— Não esperava mesmo que você ficasse calado, Azzenka.
— É porque não aceito essas suas loucuras. Me manda para o acampamento de novo, mas não para esse Torneio.
— Vocês querem ser Imperadores, não querem? Nasceram com o destino de se matarem naquela arena e não vêem a hora de vencerem, não é? - perguntou Maloch. — E sabe o que Messalina Crispina vai fazer quando um de vocês assumirem o meu lugar? Vai vir com força, furiosa, e o herdeiro dela vai ser um militar, um garoto ou garota devidamente testado no Torneio, e que depois se formou na Academia.
Azzenka ficou em silêncio, e até Velkoz decidiu fazer o mesmo. Ficaram quietos porque sabiam que quando Maloch falava de Messalina Crispina Ctherak, era porque estava decidido com a loucura.
— Agrippina estará lá com vocês.
Maloch sorriu e apreciou o silêncio dos filhos. Quando ficavam quietos, é porque haviam aceitado as ordens. Estava ansioso para assistir como seria o desempenho de Ekko, o mais fraco e gentil dos seus filhos. O odiava mais do que odiava Azzenka, que apesar de ser desobediente, ainda eram brilhante, mas Ekko não passava de um Celeste magro e sem a força dos Zancarli, havia puxado o sangue fraco da mãe.
Em uma sincronia invejável, suas três crianças se curvaram e mostraram respeito. Azzenka franziu as sobrancelhas pretas e tentou controlar o coração acelerado, suas mãos estavam suando como se estivesse no calor da praia. Estava cansado da viagem, e não tinha fôlego para discutir. Os três irmãos saíram do escritório, deixando Agrippina sozinha com Maloch.
— Isso não faz sentido, Maloch. Dois deles morrerão em poucos anos, por que manda-los para o Torneio?
— Faz sim. Quero mostrar a eles como é a vida de um Celeste de verdade. Não serão como aqueles que posam para fotógrafos na porta de festas e vivem com o dinheiro que a mídia dá. Até que se mostrem indignos do trono, serão militares.
Agrippina respirou fundo. Também estava cansada, e já sabia que quando Maloch estava determinado a torturar os próprios filhos, ninguém o pararia. Azzenka, Velkoz e Ekko teriam mesmo que enfrentar o Torneio.
— O Torneio está próximo, e eu adoraria saber que coisas eles planejaram para nós.
Maloch respirou fundo e encarou Agrippina parada a sua frente com os braços cruzados. A considerava uma garotinha que se achava muito esperta, mas que não havia vivido quase nada ainda. Porém, se ela e Kartier realmente se casassem num futuro distante ou não, ela seria perigosa.
— Ah, Agrippina... esqueça isso, o diretor esse ano do sorteio é Karlais Zabat, ele não vai dar informações pra mim, não com seu pai sendo meu principal aliado.
— Um Imperador que não manda em seus súditos?
Ele crispou os lábios e encarou o colar de serpente dela. As vezes, ela parecia dissimulada demais, fazendo Maloch pensar que talvez ela não fosse tão idiota quando ele acha.
— Karlais não é responsável pelas provas, mas sim outra pessoa, a tia de Hunt Vermeer, Maura — lembrou ela, e arqueou as sobrancelhas, se Maloch não quisesse fazer nada, ela faria. — Portanto, ainda há coisas possíveis de se mexer.
Maloch sabia que não venceria Agrippina, e se vencesse, ela maquinaria sozinha, afinal, mesmo sendo jovem, ela tinha o sangue de Adora Honório nas veias, e era uma boa serpente.
— Eu entendi, Agrippina.
Ela sorriu, mostrando seus dentes brancos e perfeitamente alinhados. Ela pendeu a cabeça para o lado e colocou uma das mãos na cintura.
— Então, vou indo, querido.
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