XVII
54 anos depois...
23 de Outubro.
Meus olhos observavam as árvores que se erguiam altas numa parte mais isolada do Canadá. Após passarmos por algumas casinhas de aparência confortável em meio às árvores, o carro parou em frente ao sobrado de madeira que eu reconhecia perfeitamente. Havia fumaça saíndo da chaminé e o local parecia quieto em meio às árvores.
Ezekiel me cutucou levemente, me fazendo o olhar, e levantou as sobrancelhas, gesticulando com a cabeça para que eu saísse do carro. Ele pagou o taxista enquanto eu apenas olhava para o sobrado, sentindo minha garganta fechar com o pensamento do que eu estava indo fazer ali.
Antes que eu pudesse dar o primeiro passo para perto da casa, uma garotinha com cabelos escuros e saiu de meio das árvores, carregando uma bola consigo. Ela olhou rapidamente para mim e logo parou de correr, arregalando os olhos e dando um largo sorriso antes de correr até mim e se jogar em meus braços. Me permiti dar uma risada enquanto a garota ria com felicidade por me ver.
"Olly! Você veio! Trouxe algum presente para mim?" a garota me encarou, seus olhos azuis brilhando
Sorri levemente, arrumando a garota em meu colo, e balancei a cabeça, vendo-a cruzar os braços e me olhar feio. "Desculpe, Leah. Hoje eu vim apenas visitar sua avó."
A garota subitamente mudou de expressão, parecendo ficar tristonha, e eu engoli em seco.
"Ela estava esperando por você. Tentei brincar com ela mas ela disse que estava guardando as forças para falar com você."
Balancei a cabeça, colocando a garota no chão, que logo correu para Ezekiel em busca de mais um abraço. Encarei a casa por mais alguns segundos antes de caminhar até ela, notando que a porta estava aberta e me permitindo entrar sem ser convidada.
Assim que entrei na sala notei mais pessoas me encarando surpresas, e apenas sorri sem jeito enquanto esperava Ezekiel entrar com Leah em seu colo.
"Vovó..." uma mulher de cabelos ruivos vibrantes e olhos castanhos gentis me cumprimentou, sorrindo levemente "É bom revê-la. Gostaria que as circunstâncias fossem outras..."
"Concordo, Mia." minha voz soou baixa e eu baixei os olhos para o chão
Os braços de Mia logo estavam em volta de mim e eu a abracei de volta, sentindo a tristeza dela quase que imediatamente.
"Vocês chegaram!" uma voz falou ao longe e me soltei de Mia, para ver um senhor me encarando do andar de cima do sobrado com um sorriso no rosto
Anos e anos haviam se passado, mas o sorriso dele continuava o mesmo. Não evitei sorrir junto a ele.
"Riley Breen... Continua o mesmo garoto de sempre."
"Acho que sua visão está meio ruim, Olivia. Sou um velho que não aguenta mais a dor nas costas." ele deu uma risada e eu sorri mais uma vez
"Seus olhos e sorriso ainda brilham como no dia em que o conheci."
"Estou grato pelo elogio." seu rosto mudou de expressão levemente, parecendo misturar seriedade com tristeza, e eu respirei fundo inconscientemente, sabendo que eu não devia estar muito diferente "Ela está dormindo, se quiser posso acordá-la."
"Não, por favor. A deixe dormir. Eu-" parei de falar imediatamente, mordendo o lábio e contendo as lágrimas que insistiam em querer sair desde que entrei no vôo em Londres "Eu preciso me preparar um pouco."
Riley assentiu, dando um sorriso triste antes de sumir novamente. Senti a mão de Ezekiel tocar em meu ombro e eu apenas o ignorei, sabendo que ele queria ter certeza de que eu estava bem, mas eu não estava. Mentir seria inútil naquela situação.
Olhei para todos que estavam na sala e a vontade de chorar apenas aumentou. Os três filhos de Molly estavam ali: Mia, Caleb e Iris. Junto a eles, suas famílias. Ao todo, Molly tinha três filhos e cinco netos. Brian, o mais novo, estava no colo de Caleb enquanto dormia tranquilamente, alheio a tudo em sua volta. Parecia surreal ver aquilo, aquela família, e saber que para eles eu era parte dela.
"Olly...?" a voz de Iris me acordou e eu vi a garota me encarando
Ela, mais que os outros dois, me lembrava de Molly. Tirando a cor dos olhos, eu poderia confundi-la com Molly a qualquer momento. Pisquei algumas vezes, sorrindo para ela e tocando em seu ombro.
"Desculpem eu... Eu só..."
"Nós entendemos." Caleb falou, sorrindo para mim tristemente enquanto cobria levemente as orelhas do filho para não incomodá-lo "Não esperávamos ver uma reação diferente vinda de você. Sabemos da sua história com a mamãe."
Balancei a cabeça, soltando o ar com força e olhando em volta, procurando algo que pudesse me distrair do sentimento de que eu estava prestes a perder algo, e vi a estante em que Molly havia enchido de porta retratos de memórias que ela queria guardar. Caminhei até lá, não evitando um sorriso ao ver a quantidade de fotos minhas que ela havia conseguido por tirá-las sem que eu soubesse, entre elas uma foto minha segurando Mia no dia em que ela nasceu. Meus olhos estavam arregalados e eu sorria boba para a criança em minhas mãos, com algumas lágrimas molhando meu rosto. Havia também uma minha e de Arin, caminhando na praia e sorrindo, e uma minha e de Molly dormindo calmamente no sofá da nossa antiga casa em Atlanta.
Meus olhos passaram pelas fotos, o sentimento de saudade me atingindo em cheio. As fotos do dia do casamento de Molly estavam ali - incluindo uma foto de Ezekiel a levando até o altar -, assim como um porta retrato com três lugares, com fotos de Molly grávida de cada um de seus três filhos. Um grande retrato com a foto das três crianças juntas e, ao lado dele, uma foto minha sorrindo carregando Mia em meus ombros enquanto meus braços seguravam Caleb e Iris. Haviam algumas fotos minhas com Riley e Arin, em meio a jogos de poker ou apenas rindo juntos.
Mas duas fotos me chamaram a atenção depois de algum tempo. Uma delas era a foto que antes ficava em minha sala no apartamento de Atlanta: a foto de Molly criança em seu aniversário de nove anos, sorrindo abertamente para a câmera. E a outra era a uma foto em que a moldura dizia 'família'. Nela, Riley e Molly estavam no centro da foto, sorrindo, com seus três filhos em frente a eles. Eu estava do lado de Molly, com Ezekiel ao meu lado. Arin tinha seu braço nos ombros de Riley e sorria abertamente enquanto a foto era tirada, com Winnie e Alya bem ao lado dele, parecendo felizes. Nicolas também estava lá, ao lado de Ezekiel, parecendo nervoso pela foto, mas sorria mesmo assim.
Peguei o porta retrato, passando a mão levemente na foto, e, pela primeira vez em muito tempo, eu senti que eu tinha completado algo, que minha maior tarefa estava feita. Molly tinha uma família agora, graças a mim, e aquela realização pareceu me trazer paz.
Sorri mais uma vez para a foto, colocando o porta retrato no lugar, e me virei para encarar Ezekiel. Ele olhava para as fotos sorrindo, e podia ver que seus olhos estavam cheios de lágrimas também.
"Foi uma longa jornada..." ele murmurou
"Foram setenta e um anos da minha vida... Parece tão pouco para o que eu já vivi..."
"Nunca vai ser o suficiente, vai?" ele perguntou e eu mordi o lábio
"Não. Nunca."
"Olivia..." a voz de Riley me chamou a atenção e eu me virei, vendo ele com lágrimas nos olhos "Ela acordou. Está perguntando por você."
Fiquei parada por alguns segundos, sem saber o que fazer, mas logo assenti e comecei a o acompanhar para o andar de cima do sobrado, caminhando até a porta aberta do quarto de Molly. Assim que parei na porta, quis sair dali correndo.
Molly estava deitada na cama, seus cabelos brancos estavam espalhados pelo travesseiro. Sua pele parecia pálida e as marcas do tempo eram evidentes em seu corpo. Algo em mim queria acreditar que aquela não era a minha Molly, mas eu sabia que era, e aquilo parecia doer ainda mais.
Ela virou o rosto levemente, olhando para mim e Ezekiel parados na moldura da porta, e nos lançou um sorriso. "Eu não mordo, sabia?"
Ezekiel entrou primeiro enquanto eu ainda a encarava de longe. Observei enquanto ele dava um beijo na testa de Molly, conversando com ela, e tomei coragem para entrar, me aproximando da cama e chamando a atenção dela para mim. Foi só ali que eu percebi que chorava.
Molly me olhou com atenção, dando uma risada logo em seguida, me fazendo franzir o cenho. "Pare de chorar, Olly. Você já sabia que isso ia acontecer um dia..."
"Não quer dizer que eu aceitei que iria acontecer..." murmurei, me sentando na cama enquanto enxugava as lágrimas "Oi, Molly."
"Oi, mãe." balancei a cabeça, rindo, ainda entre lágrimas "Você ainda parece uma adolescente, não é justo. Ao menos você está vestindo um pouco mais de cor agora."
Baixei os olhos para minha camisa, sorrindo com o comentário dela. A camisa amarela que eu usava junto à uma calça jeans azul não seria algo que eu usaria a alguns anos atrás, mas Molly havia me convencido que eu deveria usar mais coisas coloridas no meu dia a dia, garantindo que não queria dizer que eu não poderia mais usar preto. Levantei meus olhos para ela novamente, dando de ombros.
"Achei que ficou bom em mim..."
"Ficou. Ficou muito bom." ela disse "Mas ainda culpo você por fazer a Iris gostar tanto de roupas pretas. Você já viu o guarda-roupa dela? É igual ao seu quando morávamos juntas."
"Ela parece com você e se veste como eu, não sei como reagir a essa combinação..."
Molly riu, logo em seguida tossindo, me fazendo arregalar os olhos e querer dazer algo para ajudar, mas eu não sabia o quê. Quando ela terminou de tossir, pude ver sua cabeça pesar mais no travesseiro e sua expressão cansada me pegou de surpresa.
"Ainda bem que conseguiu chegar a tempo, Olly..." ela comentou "Não sabia quanto tempo mais eu iria aguentar."
Mais lágrimas caíram dos meus olhos e eu mordi meu lábio com força, tentando evitar que elas caíssem a todo custo, falhando.
"Eu nunca quis transformar você, Molly. Você sabe bem disso." murmurei, a olhando nos olhos "Mas ver você assim... Eu sinto que estou perdendo minha família mais uma vez."
A mão de Molly segurou a minha e eu não pude deixar de notar as rugas e marcas nela. Haviam se passado cinquenta e quatro anos, e aquilo para mim era tão pouco, mas para Molly havia sido tanto.
"Você ainda não entendeu, não é?" ela sorriu e eu pude ver algumas lágrimas caindo de seus olhos também "Você ganhou uma família, Olly. Meus filhos a amam, e os filhos dele a amam do mesmo jeito. Essa é sua família. E eu preciso que você prometa que vai cuidar dela como você cuidou de mim."
"Um dia eles irão me esquecer." murmurei
"Não vão, contanto que você não os esqueça. Mia já contou a Leah sobre você e como você é importante. Caleb irá contar as histórias para Brian, e Iris irá contar as histórias para os filhos dela quando ela tomar jeito." nós duas rimos em meio às lágrimas "Você já me disse uma vez que humanos vivem a partir das histórias que são contadas sobre eles quando eles morrem. É assim que continuarei viva, e é assim que você vai continuar viva também. Se não fosse por você, essa família nunca teria existido. Se considerar tudo o que aconteceu, eu poderia ser uma das mortes naquela guerra. Mas, por sua causa, não fui. Você começou essa família, e espero que continue nela."
"Não poderia me separar nem que quisesse..." brinquei "Iris irá morar comigo em Londres para fazer a faculdade."
"Fique de olho nela, por favor... Ela puxou a mim, e nós duas sabemos como eu era teimosa na idade dela."
"Pode deixar." sorri mais uma vez, vendo-a sorrir de volta
"Obrigada por tudo, Olly." ela sorriu abertamente "Eu te amo."
"Também te amo, garotinha."
Me inclinei, dando um beijo em sua testa, e - assim que voltei a ficar sentada direito -, percebi que Molly já não respirava mais. Encarei ela por alguns segundos, não sendo capaz de ouvir seu coração bater, e então a ficha finalmente caiu. Coloquei a mão na boca enquanto as lágrimas agora caíam sem piedade e apertei um pouco mais sua mão, sentindo Ezekiel me puxar um pouco para me abraçar enquanto eu chorava em seus braços.
༶
Assim que saí do quarto de Molly, passei um tempo com sua família, podendo sentir a tristeza de todos ali pelo luto. Conversamos um pouco e fizemos companhia a Riley, que agora não parecia sorrir mais.
Depois de algumas horas fui para o lado de fora do sobrado, olhando para a floresta que o rodeava, agora sem mais chorar. Meus pensamentos estavam confusos. Pude ouvir os passos de Ezekiel quando ele veio até mim, parando ao meu lado e me olhando com preocupação.
"Como você está, criança?" ele perguntou
Não o respondi de primeira, pensando bem em sua pergunta. Eu estava triste, era fácil saber disso. Mas eu sabia que aquilo iria passar. Apesar de eu ter perdido Molly, eu sabia que ela havia vivido uma boa vida e que ela estava feliz. Ela se foi bem, e isso me trazia paz. Com isso em mente, virei para Ezekiel, lhe lançando um leve sorriso, vendo-o franzir o cenho.
"Estou bem."
E, pela primeira vez em séculos, eu não menti. Pela primeira vez em muitos séculos, eu estava bem e eu sentia que continuaria bem.
Eu tinha paz.
Bạn đang đọc truyện trên: Truyen247.Pro