VII
O céu já estava escuro, mas não haviam estrelas. Elas estavam cobertas pelas nuvens escuras e neve caía, calma e silenciosa em meio a noite, cobrindo o telhado da pequena cabana de madeira em meio à floresta e o chão a sua volta com um lençol branco gélido. Eu observava a neve cair atentamente, acompanhando os flocos de neve caírem no chão e se juntarem com os outros.
A lareira e o aquecedor mantinham a temperatura dentro da cabana agradável, o que acabou fazendo com que Riley dormisse com facilidade no chão da sala. Os animorfos ficaram indignados em deixar seu líder dormir num tapete velho enrolado em cobertores, mas Riley os olhou com um grande sorriso no rosto - como sempre fazia - e os assegurou que nenhum deles deveriam deixar suas camas por ele. E ali ele estava, dormindo pesadamente, completamente encolhido em uma bola enquanto eu podia ouvir o som do leve ronronar em seu peito enquanto ele respirava.
Ao contrário dele, Alya se mantinha acordada lendo um livro qualquer enquanto segurava uma xícara de alguma bebida quente em suas mãos e mantinha uma colcha de retalhos grossa em seu colo, seus olhos verdes concentrados nas palavras que ela lia. Infelizmente seus poderes estavam enfraquecidos e não poderíamos voltar para a Irlanda até que ela estivesse completamente descansada. Sendo uma curandeira, sua magia era limitada, e o teletransporte - juntamente com o Ghoul e a cura de nossos ferimentos - acabou por esgotá-la.
Enquanto isso, eu apenas olhava atentamente para a janela, ignorando o fato de que eu deveria descansar um pouco, e deixando que minha mente vagueasse entre os acontecimentos daquela tarde. Meu próprio rosto me encarando parecia ainda me deixar nervosa, suas - minhas - palavras ecoando em minha cabeça.
"Você pode voltar a ser quem era. Mas terá que aprender a se perdoar." minha própria voz havia dito a mim mesma
Bufei, balançando a cabeça, trincando o maxilar logo em seguida. Me perdoar... Perdão talvez fosse uma das coisas mais difíceis de se dar no mundo, principalmente a mim mesma, depois de anos me culpando por tudo que havia acontecido de ruim a mim e aos outros ao meu redor. Talvez então eu não devesse voltar a ser quem era, talvez fosse mais fácil continuar sendo assim e lidar com as consequências.
"Bufar bem alto é algum tipo de tratamento para inquietude?" a voz de Alya soou atrás de mim e eu me virei, levantando uma das sobrancelhas "Porque se for, não está funcionando com você."
Seus olhos me encaravam atentamente, parecendo me analisar da cabeça aos pés, e eu evitei os olhar, cruzando os braços.
"Só estou preocupada com o que está acontecendo enquanto estou fora." menti "Sou a líder, agora, afinal. A raça é uma preocupação minha."
"Sei que está mentindo." ela colocou o livro de lado, levantando do sofá com cuidado para não pisar em Riley, se aproximando de mim com um olhar preocupado e curioso "Mas não entendo porque mente."
Me virei novamente para a janela, vendo-a parar ao meu lado, olhando para a neve que caía também. Mordi levemente o lábio, resolvendo que talvez falar com alguém sobre aquilo fosse bom, e soltei o ar com força, me virando para Alya, que me olhou curiosa.
"Sem Azriel eu senti que um peso foi tirado de minhas costas. Na hora em que Ezekiel me levou até o palácio após sua morte eu estava em êxtase, eu me senti como se eu fosse a Olivia humana, como se todos os séculos e todas as dores tivessem desaparecido." contei, vendo-a ouvir tudo com cuidado "Mas agora um novo peso foi colocado em minhas costas, um que eu nunca quis carregar. E junto a isso, sem Azriel, eu pareço estar finalmente tentando quebrar as barreiras, tentando recuperar o pouco de mim que eu posso, mas para isso eu tenho que me livrar de culpas que eu nunca fui capaz de me livrar antes. Eu estou inquieta porque voltar a ser quem eu era, colar os pedaços de quem eu fui, é mais doloroso do que eu achei que seria."
Alya ficou em silêncio, olhando para a neve caindo com a testa franzida. Seus olhos pareciam agitados e ela parecia tentar achar uma resposta. Baixei a cabeça, me sentindo tola de achar que ela teria alguma resposta para mim, até que sua voz ecoou no silêncio.
"Talvez seja porque você está fazendo tudo errado." a olhei, franzindo cenho, e ela me olhou de volta, sorrindo gentilmente "Você nunca vai poder voltar a ser quem era, Olivia. É impossível. Há pedaços de você que não irão voltar."
Pisquei algumas vezes, tentando entender porque ela havia dito aquilo, abrindo a boca e fechando algumas vezes, enquanto movia a cabeça, confusa. Ela então levantou uma mão, chamando minha atenção novamente, e segurou a minha com a dela.
"Mas não quer dizer que não possa recuperar alguns. Você nunca vai ser a mulher que foi um dia, Olivia, porque você mudou, e sempre vai mudar. Essa é uma das características mais impressionantes nas pessoas. A questão agora é como você irá mudar, e, talvez, o primeiro passo para essa mudança seja o perdão."
Ela sorriu mais uma vez, como se tentasse me acalmar com seus sorrisos, e eu bufei, sorrindo levemente. Talvez ela estivesse certa, voltar a atrás era impossível, eu só poderia seguir em frente, e a realização que aquilo me trouxe pareceu esclarecer algo dentro de mim.
"Obrigada, Alya."
"Não há de quê." ela soltou minha mão, olhando em volta rapidamente, como se procurasse alguma coisa "Agora, talvez devêssemos fazer algo para aquietar essa mente."
Franzi o cenho, vendo ela indo até Riley e pegando o celular que estava ao lado dele. Ela apertou alguns botões e eu pude ouvir o barulho da tela desbloqueando. Levantei as sobrancelhas enquanto via ela mexer em alguma coisa no aparelho e sorrir ao achar algo.
Ela colocou o celular em cima da mesinha de centro que estava ao lado do sofá para que Riley pudesse dormir no tapete, e veio até mim, levantando sua mão para que eu a segurasse. Logo pude ouvir uma música começando a tocar no celular, e eu engoli em seco, entendendo o que Alya queria.
Antes que eu pudesse segurar sua mão para dançarmos, a letra da música me chamou a atenção, me fazendo erguer as sobrancelhas enquanto a olhava.
"I tried to leave it all behind me, but I woke up and there they were beside me..." eu falei a letra da música, vendo Alya sorrir levemente "Sério?"
"É uma boa música, e ouvir algo que nos lembre do que se passa em nossa cabeça é normalmente terapêutico." ela deu de ombros, estendendo a mão novamente
Balancei a cabeça, sorrindo levemente, e segurei sua mão, começando a dançar com ela assim que o refrão começou, enquanto eu cantava levemente junto com a música. Percebi que a dança era antiga, parecia algo que eu dançaria em uma festa de meus pais, e sorri um pouco mais ao perceber que Alya fazia aquilo de propósito.
Ela era uma médica, e provavelmente estava me tratando como se eu fosse sua paciente, me dando o que eu precisava para que eu ficasse melhor. Senti meu corpo ficar um pouco mais leve enquanto dançava, o peso se esvaindo enquanto eu deixava que tudo o que se passasse em minha cabeça fosse aquele pequeno momento de aparente calma e - me atrevo a dizer - alegria.
"O que está acontecendo? Por que meu celular está tocando música?" a voz sonolenta de Riley nos fez parar de dançar e Alya apenas riu, gesticulando para que ele se levantasse
Após alguns momentos de confusão, Riley se juntou a nós, dançando e rindo conosco enquanto cantávamos as músicas que tocavam de seu celular, como se fôssemos três amigos que não tinham nada para fazer. Como se não houvesse guerra, dor e preocupação alguma em nossas mentes. Eramos apenas nós, a música e o fogo da lareira que nos mantinha aquecidos.
༶
Acordei subitamente com batidas na porta da cabana e me levantei, consequentemente acordando Riley já que o havia usado como travesseiro no final daquela noite. Pisquei algumas vezes, vendo Alya com seu livro em mãos, sentada no sofá, olhando para a porta curiosamente antes de olhar para mim.
Assim que o topor do sono me deixou, pude sentir a presença de um vampiro do outro lado da porta. Abri uma brecha para olhar quem era e logo franzi o cenho ao ver o rosto do vampiro que me olhava de volta com uma expressão superior no rosto.
"Andrei..." falei, abrindo a porta completamente e colocando uma expressão séria no rosto
O líder da colônia russa sorriu maliciosamente, se curvando e levantando um pouco o rosto para me olhar nos olhos enquanto ainda se curvava.
"Minha senhora..." o sotaque russo era forte em sua voz e estranhei ele estar falando em inglês "Soube que estava aqui, tive de vir prestar uma visita. Principalmente para lhe parabenizar pela sua... promoção."
Tentei não rolar os olhos e sorri sem humor algum. "Não é muito bom saber que agora você obedece a mim, não é?"
"Azriel era inteligente, dou a ele esse crédito, mas deixar o trono para uma criança sem controle?" ele inclinou levemente a cabeça, seus olhos escuros voltando a encarar os meus com malícia por trás deles "Não sei se foi uma decisão muito boa."
"Você também é inteligente, Andrei." dei um passo a frente, cruzando meus braços e deixando minha expressão o mais neutra possível "Me provocar não é uma decisão muito boa."
Ele soltou uma leve risada, também dando um passo a frente, me fazendo ter que olhar para cima para que eu pudesse olhá-lo. Reclamei comigo mesma por ser tão baixa comparada a ele, enquanto via seu sorriso crescer ao ver o quão vulnerável eu parecia naquela situação.
"Continua metida." ele balançou a cabeça "Americanos..."
"Sou britânica."
"Pior ainda."
"Olá, meu nome é Riley, o que está acontecendo aqui?" Riley saiu da cabana, já devidamente agasalhado, e olhando curioso para mim e Andrei, como se quisesse impedir a briga que provavelmente iria se desenrolar se continuassemos a conversa
Andrei deu alguns passos para trás, agora olhando friamente para Riley, e notei que Alya havia se juntado a nós, olhando para todos ali como se fossemos algo esquisito aos seus olhos.
"Riley Breen, líder dos animorfos." Andrei levantou a mão para que Riley apertasse e sorriu com charme, me fazendo rolar os olhos "Ouvi falar de você. Sou Andrei, líder da colônia russa de vampiros."
"Andrei e eu temos uma certa... Rixa." falei, olhando atentamente para o vampiro "Digamos que os humanos não foram os únicos a terem um desentendimento durante a Guerra Fria..."
"Você estava sendo prepotente, apenas fiz o mesmo."
"Você tentou me matar."
"Fala como se não tivesse feito o mesmo, malen'kaya devochka."
"Me chame de garotinha mais a vez-"
"Tudo bem! Nós entendemos!" Alya se apressou em dizer, caminhando para ficar entre nós, me empurrando levemente
"Afinal, por quê está aqui?" perguntei, vendo Andrei me olhar novamente
"Além de lhe dar os parabéns por tomar o lugar de Azriel," ele sorriu, se divertindo com a ideia de me ter como líder "vim lhe dar notícias. Azriel me encarregou de tentar negociar com a colônia egípcia para que entrasse na luta."
Arrumei minha postura, o interesse falando mais forte que a rixa. Me afastei um pouco de Alya, a olhando e garantindo que não brigaria com Andrei, cruzando os braços para ouvir suas notícias.
"O que tem a colônia egípcia?" Riley nos olhou, esperando alguma resposta
"Ela é a única colônia de vampiros que não está sob controle do poder de Azriel... Ou do meu, agora." passei a mão no cabelo, bufando levemente "Eles queriam ser uma colônia livre e desafiaram Azriel pelo poder. Azriel não contava muito essa história já que foi a única vez que ele perdeu uma batalha da qual ele estava determinado em ganhar."
"Ela é uma colônia independente, e seu líder, Kanope, é um filho da mãe." Andrei sorriu levemente, voltando a olhar para mim "Ele não aceitou a proposta. Não vão entrar na luta."
"Eles tem vampiros fortes que seriam úteis..." murmurei
"Sim, eles tem, mas Kanope não irá dar o braço a torcer. Ele se recusa a ser liderado como as outras colônias."
Balancei a cabeça, respirando fundo e resolvendo que a questão da colônia egípcia ficaria para outro momento. "Mais alguma coisa?"
"Sim, bem, tenho algo para você." ele colocou a mão no bolso e eu esperei que ele tirasse algo de lá, mas tudo que ele fez foi tirar sua mão do bolso e mostrar seu dedo do meio para mim, sorrindo com desgosto
"Saia da minha frente antes que eu tenha que achar um novo líder para a Rússia."
Ele se curvou novamente, ainda sorrindo convencido e sumiu dali, correndo para longe. Balancei a cabeça, revirando os olhos e vi Alya e Riley me olhando confusos.
"Os líderes das colônias não gostam muito uns dos outros..." comentei, voltando a entrar na cabana "Somos alguns dos vampiros mais velhos e arrogantes. Temos a tendência de brigar entre nós."
"É fácil de perceber..." Riley murmurou, entrando logo atrás de mim
༶
Assim que terminei de me arrumar para ir embora saí da cabana, olhando em volta para as árvores cobertas pela camada de neve que havia caído aquela noite. Soltei o ar pela boca, vendo a fumaça se formando pelo meu hálito. Movi meus pés levemente na neve, vendo a marca das solas de meus sapatos nela. Era um belo ambiente, eu não podia negar.
Notei que Richard, o animorfo, saía da cabana e vinha em minha direção, me fazendo erguer as sobrancelhas. Assim que ele chegou ao meu lado, seus sua carranca habitual se desfez. Franzi o cenho, o olhando com curiosidade, sua face tomando uma expressão soturna.
"Vamos morrer?" ele pronunciou em russo
Arrumei minha postura no mesmo momento em que ouvi sua pergunta, sentindo o peso de suas palavras. Ele parecia sentir o mesmo peso em seus ombros.
"Riley não nos responde claramente. Ele tenta nos dar esperança." seus olhos se voltaram para mim, escuros e duros "Mas você... Você não parece fazer esse tipo. Por pior que pareça, você parece não ter esperança. Então diga, vampira, a verdade. Vamos morrer?"
Engoli em seco, baixando a cabeça e analisando suas palavras, deixando que um sorriso desgostoso se formasse em meus lábios.
"Eu não faço a mínima ideia. Eu não sei aonde essa guerra vai nos levar, e muito menos aonde ela irá terminar." olhei para ele, sorrindo sem humor algum "A única coisa certa sobre essa guerra é a incerteza que ela traz."
Richard franziu os lábios, parecendo se irritar com minha resposta, e balançou a cabeça levemente. "Ao menos você foi sincera."
Eu assisti enquanto ele voltava para a cabana, ainda podendo ver o peso em seus ombros. Eu entendi aquele peso quase imediatamente. O peso da impotência, da inutilidade. Uma guerra acontecia e Richard parecia sentir como se não pudesse fazer nada a respeito, e eu podia dizer que sentia o mesmo peso em meus ombros.
Assim que Richard passou pela porta da cabana, Riley e Alya saíram, olhando rapidamente para trás, para observar Richard, antes de voltarem a vir em minha direção.
"Eu acho que estou descansada o suficiente para nos levar para casa." Alya falou, esfregando as mãos uma na outra
"Então vamos." minha voz soou mais dura do que eu pretendia e os dois olharam para mim, como se me perguntassem o que havia acontecido, mas apenas os ignorei
Alya então nos tocou e o mundo a minha volta ficou turvo. Em segundos, notei que estavamos no palácio dos Ninphs, em um de seus salões. Alya nos soltou, parecendo levar um tempo para se recuperar da viagem, mas logo sorriu para mostrar que estava bem.
"Não se preocupem." a voz dela saiu levemente fraca, mas firme
"Acho que devo encontrar Ezekiel." falei, já me afastando levemente "Riley, se for possível, leve as notícias à Lorell."
"Irei até ela agora mesmo."
Assenti, dando as costas a eles e começando a andar rapidamente pelos corredores do palácio, a procura de Ezekiel. Fui primeiro até o salão onde as reuniões geralmente aconteciam, notando o barulho vindo de trás das portas. Uma briga parecia acontecer lá dentro.
Abri as portas sem cerimônias, encontrando o Conselho e outros vampiros lá dentro. Eles pareciam em frenesi, alguns com as presas a mostra, outros com seus corpos em posição de ataque, parecendo prontos para agir a qualquer momento, e outros apenas pareciam acuados nas paredes do salão, olhando horrorizados para algo.
Franzi o cenho com aquilo, até que notei o que acontecia no centro do salão. Meu mundo pareceu parar por um momento vendo aquela cena, fazendo com que todos os meus instintos entrassem em alerta no mesmo momento. Pude ouvir quando puxei o ar para dentro de meus pulmões, como se, naquele momento, eu precisasse desesperadamente dele.
No meio do salão, em meio à vampiros agitados e do Conselho - que pareciam assistir tudo horrorizados -, estava Julie, a vampira que havia verdadeiramente amado o monstro que me atormentou por séculos, juntamente com Jane, a vampira que fazia parte do Conselho, de pé em cima do corpo machucado de Ezekiel.
As duas perceberam o abrir das portas e viraram o rosto para me encarar, parecendo levemente surpresas com minha presença ali, mas pude vê-las tomarem uma expressão de autoridade, como se quisessem me intimidar. Baixei meus olhos novamente para Ezekiel e notei suas costas se movendo levemente, como se respirasse.
Ele ainda estava vivo.
"Não vai falar nada, rainha?" a voz de Julie soou e eu pude sentir toda a raiva que havia em meu ser se concentrar na vontade que eu tinha de a matar
Houve silêncio por um segundo, dois, três... Eu não tive reação de primeira, eu apenas deixei que cada fibra do meu corpo tensionasse com a raiva. Então, sem que eu sequer pensasse no que eu havia feito, eu pulei para frente, começando a correr na direção dela, pronta para tirar dela a vida.
_____________________
NOTAS DA AUTORA:
Próximo capítulo: 11/06!
Bạn đang đọc truyện trên: Truyen247.Pro