VII
Eu acabei desmaiando de cansaço naquela noite, mas, infelizmente, tive sonhos. Os olhos claros como vidro de Renée pareciam me perseguir neles, apagados, sem a luz gentil habitual que brilhava atrás deles a cada vez que olhavam para mim. Ali nos sonhos, eu via apenas a escuridão mórbida me encarando por eles. Junto a isso, a sensação estranha que tive quando estava em seu apartamento parecia me acompanhar nos sonhos.
Quando finalmente acordei, me encontrei no quarto do palácio de Versalhes, a decoração verde sendo escondida pela escuridão que as grossas cortinas proporcionavam. Os únicos sons no quarto eram a respiração leve de Molly dormindo calmamente ao meu lado e o barulho de uma chuva incessante que insistia em cair do lado de fora.
Me mantive parada na cama, sentindo o peso de tudo aquilo parecer me esmagar. Quando não aguentei mais aquela sensação, me levantei e saí do quarto, ignorando que ainda estava com as roupas meladas com o sangue de Renée, cada passo me fazendo sentir como se meus pés estivessem presos à blocos de cimento.
O peso que eu sentia era tão grande e pesado qu,e por algum tempo, não pude identificá-lo, até entender do que se tratava: Culpa. Eu não estava lá quando ele foi morto. Eu não pude salvá-lo. Parte de mim sabia que não era minha culpa, mas a outra parte se sentia responsável pela morte do vampiro que eu chamava de amigo. Principalmente porque ele havia me ajudado a sentir que ainda estava viva, mesmo em meio a todo meu desespero. Perto dele eu não era uma líder ou uma vampira. Eu era apenas eu, e era tudo o que eu precisava ser. Era tudo que ele queria que eu fosse.
Caminhei sem rumo pelos corredores do palácio, felizmente não encontrando ninguém no meu caminho. Não queria companhia. Olhava vagamente para as janelas, vendo a chuva cair, um pouco mais leve que ontem a noite. O céu estava cinza e o mundo parecia acompanhar meu humor. Sabia que aquele não era o caso, mas era uma coincidência agradável. Um dia ensolarado não era apropriado. Não naquele dia.
Acabei esbarrando em alguém e o cheiro de cachorro molhado acabou entrando em minhas narinas, me fazendo me afastar rapidamente. Arin me olhava raivoso, até ver o sangue em minhas roupas. Pude ver seus olhos se arregalarem e sabia que milhões de coisas se passavam por sua cabeça, mas não tinha forças para brigar.
"O que você fez, vampira?" ele murmurou
Não respondi. Parte porque não o devia satisfação e parte porque não tinha forças para falar. Minha voz parecia ter sumido. O ignorei e voltei a andar, vendo-o correr em direção ao meu quarto. Não contive uma risada debochada quando entendi o que ele estava pensando. Imaginei a confusão que ele sentiria ao ver que eu não havia atacado Molly como ele primeiramente pensou.
Voltei a andar, agora saindo do palácio em meio a chuva, sentando no jardim e olhando em volta. A memória de já ter estado ali a muito tempo - antes mesmo de Versalhes se tornar tão importante para o governo Francês e antes mesmo que o palácio que agora estava lá fosse construido - me fez sentir o nó que eu tinha na garganta se apertar ainda mais. Podia ver com clareza Renée sentado ao meu lado em meio a escuridão de uma noite estrelada, me encarando com curiosidade.
"Eu nunca quis isso. Nunca pedi para ser transformada. Eu só queria uma vida normal." eu lembro de ter dito em meio a lágrimas de desespero e cansaço após o final do que seria meu último treino com ele antes de ir para a colônia "Ele nunca me deu uma escolha. Eu fui arrastada para essa vida contra minha vontade. Eu não a quero!"
"E o que você vai fazer sobre isso, Olivia?" pude ouvir sua voz, seu sotaque carregado por ainda não estar falando inglês com tanta frequência "Você está cansada, e entendo sua angústia, mas o que você vai fazer? O que lhe resta fazer? Vai desistir? Ou vai lutar e tomar o controle?"
O que me restou fazer foi lutar e tomar o controle. Foi ignorar a angústia que sentia naquela época, engolir todo e qualquer sentimento, e liderar. Mas ele esteve ao meu lado, ele me ensinou a viver com minha angústia e tolerar meu fardo. Ele me fazia sentir que ainda havia uma vida para mim, por mais que eu ainda a odiasse com todo meu ser. Ele sempre havia sido a voz da razão, mas agora aquela voz estava em silêncio.
"E o que você vai fazer sobre isso, Olivia? O que lhe resta fazer?"
Olhei para o céu cinza, algumas gotas de chuva entrando em meus olhos. Podia sentir a ardência que a água da chuva causava aos meus olhos, mas eu a ignorava completamente. Dor nenhuma poderia superar aquela que eu estava sentindo naquele momento.
Pude ouvir uma voz chamando meu nome. Ela parecia vir de longe. Olhei para trás, vendo Molly me olhando preocupada sem tentar sair em meio a chuva. Seus olhos estavam cheios de lágrimas, e a preocupação que ela sentia era visível de longe.
Molly, minha única família. O que me restava fazer a não ser cuidar para que ninguém mais se machucasse? Renée se fora, mas Molly ainda estava lá, e eu a manteria segura. Era o que me restava fazer.
Me levantei e caminhei até Molly. Assim que cheguei perto o suficiente ela me abraçou, ignorando que eu estava completamente molhada, e eu a segurei mais perto, sentindo seu coração bater rapidamente.
"Olly, o que houve?"
Apenas me mantive naquele abraço, ainda sem forças para responder, e fechei os olhos, jurando que manteria Molly segura, não importando os meios necessários para isso.
༶
A reunião iria começar mais cedo naquele dia. A notícia da morte de Renée havia se espalhado e Lorell pareceu preocupada, ordenando que a reunião fosse adiantada. Quanto antes o assunto fosse discutido, melhor.
Eu não me arrumaria mais. A roupa que eu vestia seria a que usaria na reunião - um suéter velho, jeans e meus coturnos. Se eu seria julgada pelas minhas roupas? Provavelmente, mas não tinha humor para ligar para aquilo. Eles veriam meu estado deplorável, mas não era como se eu ligasse naquele momento. Aparências eram a última coisa que me preocupavam ali.
Molly parecia não saber o que fazer. A garota tentava puxar assunto mas eu falava poucas palavras antes de voltar a me calar e mergulhar em pensamentos.
Ao contrário de mim, Molly havia se arrumado. O contraste que tinhamos era, no mínimo, interessante; Enquanto eu vestia minhas roupas monocromáticas - ou ao menos com o mínimo de cor possível -, Molly vestia roupas coloridas que chegavam a doer os olhos. Era uma boa alusão a nossas personalidades e aos papéis que tinhamos em volta das pessoas: Eu, sempre com meu humor fechado e introvertida, e Molly, com sua personalidade forte capaz de colorir qualquer dia cinza.
Com esse pensamento, me deixei dar um sorriso. Ela pareceu perceber e olhou para as próprias roupas. "O que foi? Eu estou engraçada?"
Eu estava sentada na cama, abraçada aos meus joelhos e com o rosto apoiado nos braços. Quando ela falou eu estiquei as pernas e decidi que, por ela, eu iria tentar sair de meu estado soturno por algum tempo.
"Não, só estava pensando." falei, notando minha voz rouca e baixa "Você está linda, não se preocupe."
Ela sorriu, parecendo aliviada por eu ter falado alguma coisa. Me levantei da cama, sentindo todo meu corpo reclamar, e fui até as portas, caminhando até a grande janela do corredor que ficava em frente ao quarto, observando tudo lá fora. Ouvi os passos de Molly e logo ela estava do meu lado, admirando a chuva comigo.
"Eu sinto muito, Olly-" ouvi ela murmurar mas a interrompi antes que ela pudesse fazer um discurso
"Não. Não fale... Não vamos tocar no assunto mais do que o necessário."
Eu soei meio rude, mas não queria ouvir nada, nem mesmo de Molly. Minha dor não iria embora pela empatia dos outros, então pelo menos que eles guardassem suas palavras. Molly assentiu, pedindo desculpas e eu afirmei que não era necessário.
Ficamos em silêncio, olhando a chuva caindo enquanto eu apenas me perdia em meus pensamentos.
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Entrei no salão em que a reunião aconteceria e fui bombardeada de perguntas. Todos, menos Lorell, falavam alto e ao mesmo tempo, me fazendo parar um segundo antes de levantar a mão para pedir por silêncio. Assim que o fiz, todos se calaram e eu me sentei, chamando Molly para sentar ao meu lado, entre mim e Riley.
Lorell não pareceu satisfeita com a ideia, mas não estava ali quem ligasse para ela, e não mudei de ideia ao mandar a garota sentar à mesa.
"Como aconteceu?" ouvi a voz de Riley perguntar em meio ao silêncio
Engoli em seco, sabendo que minha voz falharia, mas falei do mesmo jeito. "Eu não sei. Quando cheguei ele já estava morto."
Todos permaneceram calados e eu olhei nos rostos de cada um, vendo o medo e a curiosidade em cada expressão. Me arrumei na cadeira e resolvi continuar falando.
"Ele tinha informações. Disse que tinha provas de que Ghouls estavam envolvidos nas mortes."
"E onde estão as informações?" Arin perguntou
"Não sei. Não tive tempo de procurar por alguma coisa com ele morto e com a sensação de que havia algo no apartamento quando cheguei."
"Você chegou a ver algo?" a voz calma de Lorell perguntou
Balancei a cabeça. "Saí antes que o dono da presença aparecesse. Renée já havia sido morto. Não fazia sentido ficar e morrer também."
"Mandarei meus Ninphs vasculharem o apartamento." Lorell falou e voltou seus olhos roxos para mim "Sinto muito por sua perda, Olivia."
Soltei uma risada fraca, percebendo a pena de todos ao me olharem. Eles podiam perceber meu estado naquela hora. Tinha certeza de que eu estava mais pálida que o normal e meus olhos estavam cobertos por olheiras profundas. Mas não queria a pena de ninguém. Quando percebi o silêncio na sala e que todos me olhavam, resolvi que tinha de falar algo.
"Renée foi um ótimo líder e professor. Além de um ótimo amigo. Mas agora ele se foi." falei sentindo meus olhos queimarem, mas impedi que as lágrimas caíssem "Alguém como ele não merecia uma morte como aquela. Então tenham em mente que farei qualquer coisa para achar quem fez isso."
Minha expressão endureceu, podia sentir a raiva queimando em meu corpo. Olhei para cada um naquela mesa, fazendo com que eles arregalassem levemente os olhos. Sabia o porquê da surpresa: Meu tom de voz era baixo e minha expressão era dura. Se pudesse apostar, ali, mais do que nunca, eu parecia com a vampira que fui treinada para ser. Fria, autoritária e amedrontadora.
"E se essa pessoa ou coisa cair em minhas mãos..." continuei "Não há força no mundo que me impeça de destruí-la."
༶
Molly tinha me feito prometê-la que iriamos jantar fora aquela noite. Ela ainda estava preocupada comigo e queria me fazer sair do palácio um pouco para tentar me animar. Eu sabia que não iria me animar, mas também sabia que, se não fosse, teria que aguentar Molly me incomodando com perguntas pelo resto da noite.
Consegui um pouco de sangue no palácio antes de sairmos, me alimentando o suficiente para passar os próximos dois dias sem tomar sangue, e peguei emprestado o carro de Macy para irmos até Paris. Felizmente, conhecia as ruas daquelas cidades bem o suficiente para ir sozinha.
A chuva finalmente havia parado e o céu estava aberto, com algumas estrelas brilhando em meio a escuridão. Molly olhava tudo em volta, ainda maravilhada, e eu apenas olhava para a estrada, tentando manter minha mente vazia.
E foi com aquele silêncio que passamos todo o caminho até chegarmos a Paris. Estacionei o carro em uma rua qualquer e começamos a caminhar. A noite estava esfriando lentamente, o frio batia em minha pele mas não me incomodava tanto, ao contrário de Molly. Pelo visto, ela havia esquecido seu casaco e esfregava as mãos nos braços, tentando se aquecer.
Tirei o moletom que eu usava e ofereci a ela, ficando apenas com a regata cinza que usava por baixo. Ela me olhou por um momento, parecendo hesitar. "Você vai ficar com frio."
"Não me incomoda. Tome." estiquei mais o braço para que ela pegasse o moletom
Ela pegou, ainda meio incerta, e o colocou por cima do vestido amarelo que ela usava.
Chegamos às margens do rio Sena e Molly me puxou até um café que estava aberto do outro lado da estrada. O lugar era decorado com mesinhas e poltronas macias e a iluminação era pouca, mas o suficiente para deixar o lugar com um ar confortável. A temperatura lá dentro estava agradável o suficiente para que eu parasse de sentir o leve incomodo do frio, e o cheiro de café inundava meu nariz.
Sentamos em uma mesa próxima à janela, vendo um garçom nos trazer o menu com um sorriso no rosto antes de se retirar. Molly olhou o menu por alguns segundos antes de bufar e olhar para mim. "Quando é que você vai me ensinar francês?"
"Posso lhe dar algumas aulas quando voltarmos para casa." disse, passando as unhas na madeira da mesa, sem realmente dar muita atenção a Molly
Ela pareceu assentir e colocou o menu na mesa, esfregando as mãos um pouco antes de olhar para mim novamente. "Você pode pedir um café para mim?"
Olhei para ela de volta e assenti, levantando a mão para que um garçom pudesse vir anotar o pedido.
"Un café, s'il vous plaît..." pedi, assim que o garçom chegou, e o café de Molly não demorou a chegar
Fiquei observando tudo pela janela: O rio correndo calmamente do outro lado da pista, os carros que passavam na estrada, as pessoas caminhando calmamente. Parecia uma noite tranquila. Uma pena que minha mente não me permitia aproveitar isso por completo.
Virei meus olhos para Molly, que tomava seu café despreocupadamente. Ali, ela me pareceu mais indefesa que nunca. A percepção de que não precisava de muito para que Molly se fosse para sempre fazia a dormência do meu corpo aumentar.
Ela era tão frágil quanto um copo de vidro, e eu precisava mantê-la intacta. Não podia permitir que Molly, de todas as pessoas, se machucassem. Passei a mão no meu cabelo, sentindo o peso da responsabilidade que era cuidar de Molly me atingir.
As vezes me perguntava se ser como Azriel seria melhor. Sem sentimentos, tendo todas as suas forças voltadas para governar. Talvez aquele fosse o motivo de ele ser um líder respeitado. Ele era um Puro, não haviam mais como ele na terra. O primeiro vampiro, e o único de nós que não havia vindo dos humanos.
Infelizmente, a humanidade não parecia me deixar. Minha parte humana ainda existia em algum lugar do meu ser, os vinte e um anos como humana ainda estavam vivos em minha memória. Talvez por isso nunca tivesse deixado Molly, mesmo uma parte de mim sabendo que cuidar dela era perigoso tanto para ela quanto para mim. Minha parte humana não permitiria que eu deixasse a garota sozinha aquela noite, a tantos anos atrás.
Molly pareceu perceber minha inquietação e me olhou curiosa, em silêncio. Ela mexeu um pouco com a xícara de café antes de voltar a tentar puxar assunto.
"Então... Vamos embora amanhã mesmo?" ela perguntou
"Sim. Temos que ir para a Inglaterra. Azriel precisa saber das notícias." comentei
"Eu vou poder conhecê-lo?"
Olhei para a garota e pude ver o brilho nos olhos dela ao perguntar aquilo. Eu havia construído na cabeça dela uma imagem de Azriel que era surreal: um líder justo, preocupado com seu povo. Um herói entre os vampiros. Mas não era bem assim, haviam detalhes que eu não havia dito a ela sobre o vampiro mais velho do mundo. Algumas coisas eu simplesmente não conseguia falar.
"Provavelmente. Mas gostaria que não." falei
Ela franziu o cenho. "Achei que você gostasse dele."
Soltei uma risada fraca e olhei para o rio Sena pela janela, observando as águas que refletiam as luzes noturnas.
"Eu o respeito como líder. O tolero, já que, tecnicamente, minha vida depende disso." virei meu rosto para ela, um sorriso desgostoso ainda em meus lábios "Mas eu o odeio como nunca odiei alguém."
O clima pareceu ficar pesado, os olhos de Molly olhavam os meus com uma surpresa latente neles. Ela parecia procurar alguma coisa neles. Talvez procurasse a causa de meu ódio, uma resposta para aquelas palavras duras, mas ela não acharia. Aquilo era uma coisa que eu não contaria a ela. Ainda não.
"Por que? Achei que você fosse a favorita dele..."
"E sou. Mas ele definitivamente não é meu favorito." disse e passei uma mão no rosto, respirando fundo "Mas não vamos falar disso, por favor. Um dia eu direi minhas razões, mas agora não é uma boa hora... Não creio que eu esteja pronta para falar sobre isso ainda."
Molly não pareceu satisfeita mas concordou em esperar, terminando seu café logo em seguida. Permaneci olhando pela janela, vendo a vida passar do lado de fora, notando que a raiva que lembrar de Azriel me trouxe havia amenizado a dor do luto.
E, com isso, me mantive calada, focando naquela raiva, deixando que lembranças de Azriel inundassem minha mente, aceitando qualquer coisa para esquecer a dor.
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NOTAS DA AUTORA:
Como vocês podem ver, adoro um drama.
Obrigada por lerem!
Próximo capítulo: 06/10!
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