IV - A RESPOSTA
Afundei a cabeça na mesa escondendo-me com a tela do notebook. Não importava o quanto tentasse, não conseguia focar no longo monólogo sobre "as aplicações do atributo espacial na qualidade de vida mutável dos seres humanos e mágicos modernos". O professor Reginaldo, um humano sem dons mágicos falava com fascínio visível em cada palavra e por mais interessante que fosse, minha mente ia para basicamente qualquer outro lugar.
Começando pelo milagre responsável por fazer Shire entrar na sala antes da professora, ainda mais considerando como ela literalmente surgiu diante da porta, no exato segundo que o relógio bateu sete da manhã. Engoli em seco. Embora não fosse seu aluno, a aura professoral de respeito emanando daquela mulher era notável. Trocamos um cumprimento de cabeça antes dela seguir caminho. Senti como se um elefante saísse dos meus ombros e me arrastei para a aula tão grato por não ligarem para meu atraso quanto invejando o dom da professora Vera. Contudo, de todas as coisas, isso era apenas a ponta do iceberg da minha alienação, pois todo o foco continuava em Marcos bem como em sua mensagem.
Eu claramente tinha uma decisão importante a tomar. Era um passo muito grande, inevitável sim, mas nem por isso mais fácil.
― Transe com ele ― ordenou Beto enchendo a boca com massa e bacon.
Encarei meu amigo, levemente boquiaberto por ele falar isso tão alto. Olhei em volta. Algumas meninas olharam para nós. Senti as bochechas corarem. Estávamos no meio do refeitório da faculdade dividindo uma fatia de pizza.
― D-dá pra falar mais baixo? ― implorei.
― Por quê? ― indagou o garoto. ― Todo mundo aqui é adulto e já fez isso antes. Grande coisa.
Beto era um ano mais velho que eu. Tinha cabelos platinados e olhos escuros. Seu dom se manifestava continuamente convertendo toda a parte inferior do corpo em um tipo de névoa que o permitia flutuar. Nos conhecemos na faculdade, ele me apresentou o câmpus no primeiro dia e, por algum motivo, gostou de mim. Era bom conversar com outro cara gay além de Marcos, eu o amava, mas haviam coisas sobre as quais não parecia certo discutir com ele. Minhas dúvidas e medos a respeito de nós, por exemplo. Beto era vivido, apesar de tudo. Namorou bastante e conhecia as pessoas, sabia me acalmar. Seria um ótimo psicólogo algum dia. Muito embora precisasse resolver seu problema de discrição.
― Bom ― encolhi os ombros. ― Eu não.
― Por pouco tempo, colega. ― retrucou. ― Você tem um namorado que te ama e quer fazer sexo com você. Qual o problema? Não quer fazer isso com ele?
― Não é que eu não queira... eu só... ― na verdade, não sabia explicar. Parecia haver tantos motivos e ao mesmo tempo nenhum. ― Sei lá.
― Isso é um mau sinal ― ele ameaçou comer mais pizza, mas foi interrompido por Shire.
― Começaram sem mim, então? Bom saber. ― a garota devorou a borda numa mordida.
― A gente tava com fome ― expliquei. ― Desculpa.
― E os sanduíches da sua mãe? ― Shire franziu a testa.
― Acho que o meu pai ajudou ela a fazer ― apontei para a tigela cheia de espuma no canto da mesa. ― Tão com gosto de sabão.
Desde minha infância, meu pai, ocasionalmente, se esquecia de seu dom de limpar tudo que tocava e fazia comida ensaboada. Só fui descobrir que não deveria ser possível fazer bolhas com rosquinhas, aos quinze anos.
― Que droga ― Shire bufou. ― Seu pai devia ficar longe de qualquer comida. Enfim, qual o assunto?
― O Mateus não quer transar com o Marcos ― declarou Beto.
― COMO É? ― Shire praticamente berrou. ― E você ainda não desceu o cascudo nele?
Beto deu de ombros.
― Não é verdade ― sussurrei, irritado. ― Eu só... não tenho certeza se é a hora.
― Não é a hora ― disse Shire. ― A hora foi três anos atrás quando vocês começaram a namorar. Isso aqui ― ela apontou para baixo. ― é um purgatório da castidade onde o tempo não passa.
― Isso mesmo ― Beto se debruçou na mesa. ― Você tem que dar essa bunda e me contar como é. Sua contribuição pro meu diário é inestimável.
― Vo-você tem um diário... ― olhei para ele, confuso. ― de sexo dos outros?
― Claro que tenho, amado ― ele tirou um caderninho vermelho da mochila. ― Já tem trinta e quatro relatos. ― Beto folheou as páginas rapidamente. Tinha até umas gravuras. ― Já que não tenho um cu pra dar, essa vai ser minha referência de relações gays pra minha futura carreira de terapeuta sexual.
Beto não tinha nada abaixo da cintura exceto névoa branca. Ele não precisava andar, considerando que flutuava e, como um ser mágico, já não "tinha aventuras no banheiro". Portanto, a única coisa realmente limitante de seu poder era a incapacidade de fazer sexo como a maioria dos caras gays. Algo que ele tinha muito orgulho de ser. Quando o conheci, tive pena. Mas ele mesmo não parecia ligar e se recusava a deixar isso controlar sua vida. De várias formas, Beto me inspirava.
― Não sabia que você queria ser terapeuta sexual ― comentou Shire.
― Amiga, eu só entendo de duas coisas nesse mundo ― ele passou o braço pelo ombro dela. ― Analisar pessoas e sexo. Tô apenas somando dois mais dois aqui. E dito isso: Mateus, eu acho que não precisa fazer sexo com Marcos porque ele quer, isso precisa ser bom para os dois, mas são coisas a tratar com seu parceiro. Se não está pronto, diga a ele. Estão juntos há anos, se conhecem há mais tempo ainda e ele nunca te pressionou, não vai começar agora. Meu conselho como seu amigo é esse. ― Shire olhou para ele de olhos arregalados. Às vezes, Beto fazia jus aos dois semestres de psicologia. ― Agora, como autor, eu digo pra pegar aquele homem e meter nele com tudo pra depois me contar como foi. Eu amaria saber como é a sua experiência com seu pênis. Se fizerem oral, não quero saber. Disso, eu tô é cheio e...
― Acho que o gênio do Aladim, aqui, quis dizer que a melhor solução é ser honesto consigo mesmo e seus sentimentos― interrompeu Shire notando meu rubor. ― Com isso não tem erro.
― Ah, quietinha aí, Maria do Carmo! ― Beto espichou a língua para Shire.
― Seu filho da puta, te contei meu nome em segredo ― berrou ela atirando seu material em Beto que saiu voando e dando risada.
Fiquei meio alheio aos dois e tirei meu celular do bolso. A conversa com Marcos me encarando novamente. Engoli em seco. Uma pergunta tão simples, mas tão cheia de significado. Disseram-me para ser honesto comigo mesmo, de fato era tudo que importava. Meu Marcos nunca me forçaria a nada, talvez aquilo de repente fosse apenas o sinal do universo de que a hora havia chegado. Com o coração apertado digitei minha resposta. Aquelas três letrinhas explodindo para fora de mim, um fôlego que nem sabia estar segurando. Depois de enviar, tudo mudaria. Mas se aprendi alguma coisa desde que me apaixonei pelo meu melhor amigo, era como mudanças podem ser boas.
Respirei fundo e enviei.
Ergui o olhar para meus amigos. Beto estava tentando sufocar Shire com sua névoa enquanto ela mudava as roupas dele, naquele momento estava com chapéu de pirata, batina de padre e tutu de bailarina.
― Pessoal... ― falei baixo, mas ainda assim ambos olharam para mim. ― Deus me defenda, eu disse sim.
― Ok, é oficial ― decretou Shire jogando-se na minha cama com a casualidade de sempre. ― Seu namorado está oficialmente bilu tetéia das ideias.
Beto concordou distraído enquanto olhava meus posters de música gospel. Por motivos óbvios, nunca levei meus amigos para casa. Na verdade, Shire foi banida para sempre, porém, seu visual, digamos, "único" junto da personalidade ainda mais e Beto que praticamente tinha a palavra "Gay" escrita na testa, não sobrava nada além de "más companhias" e "influências ruins" aos olhos de meus pais ― minha mãe em especial. ―, contudo os dois acompanharam-me de bom grado. Foi atencioso da parte deles, eu não estava me sentindo em condição de ficar sozinho comigo mesmo.
Marcos respondeu minha mensagem apenas um minuto depois de recebê-la, a essa altura meus amigos tinham esquecido completamente sua briguinha e foram me cercar. Como de costume, Marcos foi objetivo:
"Ok, te pego amanhã às 07h00 na sua casa."
Beto e Shire gritaram enlouquecidos ao meu lado. Todo mundo olhou. Quis ter o dom de Marcos para conseguir simplesmente sumir dali. O resto do dia teve o total de zero aproveitamento, ficamos nossas respectivas aulas falando sobre minha "defloração", bom, eles falaram. Eu fiquei lendo, vermelho como um tomate, morrendo de vergonha. Por fim, perguntaram se podiam ir comigo para casa. Foi um alívio inesperado.
Com meus pais trabalhando e minha irmã no colégio, tínhamos algum tempo de paz. Eu estava naquele maravilhoso período em que o trabalho no restaurante me dava férias, portanto precisava "apenas" estudar.
― Amanhã meus pais vão levar minha irmã no retiro de... alguma coisa, eu sempre esqueço, tem tantos. ― Beto sufocou uma risada, pairando sobre a cama. ― Depois vão ficar num hotel na cidade, vão tirar um tempo pra eles.
― Vão curtir o próprio pecado, isso sim. ― acrescentou Beto.
― Não, cara, por favor! ― implorei. ― Não me faz imaginar isso.
― No caso deles, tecnicamente não é mais pecado, chuchu. ― Shire piscou um olho.
― EM NOME DE CRISTO, PAREM! ― gritei. Os dois riram. ― A-amanhã vou ficar sozinho, Marcos sabe disso. Ele pensou em tudo.
― Já disse ― Shire revirou os olhos. ― o Marcos tá doidão, que tipo de psicopata que transar de manhã?
Me conhecendo e sabendo como fico ao acordar, era um ótimo ponto.
― Queridaaa, acho que você quem não entendeu ― cantarolou Beto. ― Isso é obviamente uma tática pra transar o dia inteiro.
Engoli em seco.
― Meu Deus, eu fico cansado só de subir a escada ― coincidentemente estava ofegante ao terminar a frase.
― Ah, vai por mim, baby. Pra isso você tem fôlego ― garantiu Beto. ― Vão compensar todo o tempo perdido.
― Alguns mais do que outros ― murmurei, depois balancei a cabeça. ― N-não sei mais se posso fazer isso ― saí da cama e andei em círculos pelo quarto. ― O Marcos espera que eu aguente todo esse tempo, além disso... Ah, Santo Deus... quem vai fazer o quê? Como os caras sabem disso?
― Bom, isso é algo que só dá pra dizer com o tempo e tem que ser decidido entre vocês dois ― Beto deu de ombros. ― Particularmente, acho que se é para entrar na água, não tem essa de colocar só o pé, o lance é se molhar inteiro.
Beto ergueu as sobrancelhas de forma bem sugestiva. Engoli em seco, quase podia sentir o sangue deixando meu corpo.
― Pega leve aí, bobão! ― disse Shire acertando um tapa na nuca de Beto. ― Vai traumatizar o garoto assim. Tetê, essas coisas de posição, você tem que descobrir com o Marcos. Claro, você só vai saber do que gosta se experimentar, mas esses detalhes específicos são particulares demais. Na primeira vez, deixe a coisa fluir, vão devagar. Encontrem o ritmo de vocês. Pelo menos, foi a minha vaga experiência. Não sou uma pessoa sexual, mas entendo um pouco disso.
Respirei mais calmo. Sentei-me novamente.
― Na verdade, Marcos pode ter uma noção melhor disso. ― desviei o olhar, pensativo.
Um segundo de silêncio dançou pelo quarto.
― Peraí, não vai contar do que se trata? ― indagou Beto. ― Fofoca pela metade pode matar fofoqueiros, sabia?
― Ah! Deixa eu fazer minha cena em paz! ― vociferei. ― Mas sério, desde que essa saga começou... eu... fico tentando não pensar disso pra não estragar tudo, mas cada vez mais, sinto essa coisa crescendo no fundo da mente. Essa... consciência, digamos assim, de que não vai ser igual pra nós dois... porque... o Marcos fez antes.
― Uh! ― Beto fez uma careta. ― Dessa eu não sabia!
― Pera ― Shire encarou-me de modo estranho, parecia... decepcionada? Confusa? Difícil saber com certeza. ― Ainda tá pensando no Lucas? Mateus, já fazem cinco anos.
― Acha que eu não sei? ― senti-me esquentando. ― Acha que não fico bravo comigo mesmo por não conseguir esquecer da merda daquele retiro quando, por sinal, Marcos e eu nem éramos um casal? Acho que não me odeio por isso? Adivinha, eu não gosto desse sentimento. Detesto a mera possibilidade do Marcos ter certas... expectativas as quais posso não corresponder. É uma merda, tá? Mas eu sou assim.
Limpei uma lágrima solitária.
― Ah, Mateus. ― Beto flutuou até mim. Me aconcheguei em seus braços calorosos. Shire uniu-se a nós, do outro lado. Entreguei-me a eles. ― Eu entendo. Entendo mesmo, mas o ex-ficante adolescente do seu namorado não tem nada a ver com você.
― E se eu sei alguma coisa sobre experiências sexuais na adolescência ― adicionou Shire. ― Vai por mim, as expectativas dele são uma droga.
― Além disso, esse Lucas tem cara de ser péssimo de cama ― disse Beto.
― Conhece ele?
― Não, mas tô disposto a odiar gratuitamente um cara aleatório ― Beto sorriu. ― Por você.
― Ele ameaçou expor o Marcos pros pais, caso não aceitasse namorar com ele. ― falei como se não fosse nada.
― Então, espero que apodreça no inferno. ― Beto abraçou-me mais forte. ― Você confia no Marcos, né? Confia de verdade?
― Sim ― nem precisei pensar. ― Com cada célula do meu corpo.
― Então vai ficar bem ― completou Shire. ― Com as pessoas certas, a gente pode enfrentar qualquer coisa.
Abri um grande sorriso. Talvez fosse pela fala ter casado tão bem com o momento, mas nunca antes ouvi algo tão verdadeiro.
Obrigado por lerem até aqui, espero que tenham gostado. Não esqueçam de deixar um comentário e um voto. Até a próxima.
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