Capítulo 1
1.920
— "Tiutonio", você tem certeza que isso vai dar certo?
— Mas é claro que eu tenho, menino! – respondeu o homem com uma pontada de indignação e ajeitando dois cartõezinhos dentre os demais que estavam na cesta de vime.
— Não que eu não confie no senhor, não é isso. Mas o senhor também sabe que eu quero muito as minhas...
— Tá, tá...isso eu já sei, garoto. Se você prestou atenção em tudo o que eu disse e fizer do jeito que combinamos, não tem como dar errado.
O homem olhava para o menino com um ar severo ao ajeitar os óculos redondos sobre o nariz aquilino.
— Não sei, não. – retrucou o garoto, cavucando a terra com a ponta do pé e olhando de soslaio para o seu interlocutor. — Tem gente que não anda muito feliz com os seus "serviços", não. Ouvi dizer que tem uns que até...
— Escuta, aqui, ô, garoto – começou o homem em um tom irritado e levando as mãos à cintura. As maçãs do rosto de tez muito clara agora estavam vermelhas como as que boiavam na tina poucos metros à frente. — você já ouviu dizer que uma andorinha não faz verão? Aliás, você, mais do que ninguém deveria saber que quando um não quer, dois não brigam!
— Calma, "Tiutonio"! Você está muito nervoso e isso não combina nada com pessoas como você! – pediu o garoto, erguendo as mãos no ar como que tentando apaziguar o outro.
O homem encarou o garoto, vermelho como um tomate. Passou as mãos pelo rosto e olhou para cima, no que pareceu uma prece silenciosa, antes de voltar a considerar a figurinha à sua frente. Era um menino não muito alto, um pouco acima do peso e que agora parecia genuinamente incomodado. Ora remexia nos punhos da camisa xadrez; ora, na gola que puxava sem dó. No momento seguinte, era a calça escura com remendos coloridos que lhe agarrava nas pernas rechonchudas no melhor estilo "pula brejo".
— O que foi? Esse negócio está me pinicando! – reclamou o garoto assim que percebeu o peso do olhar do mais velho. — Não estou acostumado com essas roupas. Bem diferente das suas... – e apontou para a batina do outro que apenas repuxou a boca antes de tomar a cesta minuciosamente arranjada.
Com um último suspiro e uma olhada para cima, o homem pegou o menino pelo braço enquanto caminhavam pela lateral pouco iluminada da igreja matriz até alcançarem a imensa praça repleta de pessoas, luzes, sons e cheiros.
Aquela era uma cidade pequena, como tantas outras do nosso imenso Brasil, daquelas onde todos os habitantes se conhecem – ou quase isso. Lugar de pessoas humildes e muito religiosas, onde as festas juninas eram aguardadas ansiosamente. Aqueles eventos reuniam a comunidade toda na praça em frente à igreja da Matriz onde barracas que arrecadavam fundos para as obras assistenciais da paróquia eram instaladas por toda sua extensão. Milho cozido, canjica, pé-de-moleque, enfim, uma infinidade de pratos típicos era oferecida aos frequentadores, além de quentão e vinho quente. Um grupo de música composto por sanfona, triângulo, clarinete e violão tocava no coreto alegrando o ambiente. Também havia a barraca da pescaria, da bola na lata, da argola e...claro, a do beijo. A cadeia também estava ali, em canto próximo à lateral da igreja e fazia a alegria de crianças e jovens que gostavam de pregar peças uns nos outros.
Enquanto famílias e os mais velhos concentravam-se a um lado, em bancos e mesas de madeira improvisadas, os jovens se espalhavam por todo o lugar, divididos entre as barracas com brincadeiras, a região do coreto, a cadeia e uma fila interminável...mas não na barraca do beijo! A fila, na verdade, estava na porta da igreja e ia longe, formada por mulheres de todas as idades. Alguém menos desavisado pensaria se tratar de alguma celebridade, embora, naquele tempo ainda não fosse muito comum esse tipo de "persona". Na verdade, aquele ano era especial: um sábado 12 de junho, conhecido como "dia dos namorados" seguido por um domingo 13, dia do padroeiro da cidade, Santo Antônio. E qual a relação daqueles eventos com a fila? Bem, havia uma tradição na cidade de se distribuir o "bolo de Santo Antonio". Como muitas tradições brasileiras, não se sabia quando e como começara, mas ainda assim, era capaz de arrastar uma multidão feminina até a porta da igreja naquela data. Fizesse sol ou chuva, lá estavam as mulheres aguardando sua vez de levar para casa um pratinho de "esperança". Fosse pelo sabor do quitute preparado com tanto esmero pelas voluntárias ou por acreditar que ele realmente pudesse atrair um marido, a cozinha da igreja trabalhava a todo vapor na semana que antecedia as comemorações.
— Garoto? Ô, garoto! Você está me ouvindo?
O menino apenas olhou para o homem que novamente estava vermelho como um pimentão. Há quanto tempo estava falando? Ele simplesmente deixara de escutar no momento em que o cheiro delicioso da manteiga escorrendo por sobre o milho quentinho lhe chegou ao nariz. Dali por diante todas as luzes se apagaram, os sons emudeceram. Era apenas o menino e a iguaria que saía fumegante do panelão na barraca próxima. O estômago reclamou e a voz irritada do homem o trouxe à realidade.
— Claro que sim! Cada palavra. – respondeu o menino com tanta firmeza que causou estranhamento ao homem. Não, ele não ouvira muita coisa, mas não queria causar a ira do outro que já estava tão vermelho que mais parecia...bem...
— Repassando: o envelope com fita azul vai para...
O garoto escutava atentamente as instruções, observando o homem que mais uma vez lhe mostrava cada um dos dois envelopes que deveria entregar, bem como os respectivos destinatários dentre todas as pessoas que estavam ao redor. O menino estreitou os olhos na direção em que o homem apontava, mas não conseguia discernir o semblante das pessoas. Aquilo era um problema! Resolveu, então, marcar "os alvos" por algum detalhe de suas roupas. A mulher estava com um vestido azul e fita vermelha no cabelo; o homem, com um casaco marrom. Não poderia ser tão difícil, certo?
— Você entendeu tudo?
— Ai, Tiutonio! Você sabe mesmo ser chato, hein! – "sou meio cego, não surdo!", pensou o menino tomando a cesta das mãos do outro com um gesto de impaciência, encaminhando-se para o meio da multidão.
— E não me chame mais assim! – Ainda ouviu o outro gritar enquanto se afastava. Viu quando o companheiro a batina e sumiu no meio do mundaréu de pessoas.
O menino voltou a olhar para frente, mais especificamente, para o local onde estava o homem a quem deveria entregar o primeiro correio elegante e estacou de repente ao constatar que ele não estava mais ali. Sentiu o suor começar a descer pelas têmporas quando, ao olhar para os lados, não viu um, mas vários homens de casaco marrom. Passando a mão pela testa, sentiu que ofegava.
— Tiutonio vai enlouquecer! E agora? E agora? – Matutava, estreitando os olhinhos em direção à massa que não passavam de um borrão, salvo os que estavam bem perto. — Eu devia ter contado que não enxergo direito. Se tivesse feito isto antes, não teria causado tanta confusão e perdido as minhas...
Os resmungos do garoto foram interrompidos quando alguém deu-lhe um encontrão, jogando a cesta e todos os cartõezinhos de amor pelo ar.
— Ah, não! – exclamou o menino, tentando pegar os que estavam sendo carregados pelo vento. — Oh, Santa Bárbara! Até a Senhora? – Queixou-se enquanto o desespero aumentava.
— Puxa! Me desculpe, garoto! – disse o rapaz que havia lhe esbarrado, ao mesmo tempo que ajoelhava-se e apanhava os cartões que estavam por ali.
O menino nem deu lhe deu resposta, ocupado que estava em pegar os outros. Assim que terminou de recolher os papéis e acomodá-los de qualquer jeito na cesta, o rapaz se levantou pronto para entregá-la a seu dono apenas para ver que o menino já ia longe no meio da multidão. Ao mesmo tempo, um empurrão vigoroso contra o braço o tirou do eixo.
— Você não tem vergonha de roubar a cesta de correio elegante de uma criança?
A voz feminina parecia, de fato, irritada o que fez o jovem deixar de tentar achar o menino no meio dos frequentadores e voltar seus olhos para o local de onde havia recebido o golpe.
— Enrico Manzani??
— Bartira de Jesus??
Enrico estava surpreso com a presença inesperada da moça; ela, por sua vez, trazia o semblante carregado em uma careta de desaprovação.
— E quando eu acho que já vi de tudo vindo dos Manzani, você me aparece com essa novidade! Acho que não dá para se rebaixar mais, não?
— Eu...o....a.... — Enrico não sabia o que dizer, limitando-se a gesticular com a cesta e buscar o garoto que havia sumido. Definitivamente ele não estava entendendo o que ela dizia.
— Já te passou pela cabeça que esta é uma das poucas vezes que o meu irmão pode ganhar um dinheirinho só dele? Você não teve infância?
Com isso, Bartira tomou a cesta das mãos do rapaz pronta para devolvê-la ao irmão que, conforme Enrico viu, estava há alguma distância, próximo à barraca dos doces e trazia lágrimas aos olhos. Porém, o caminho de Bartira foi bruscamente interrompido.
— Vocês dois estão presos!
— Presos? Como assim? – indagava Bartira enquanto era empurrada pelo "policial".
— Quem mandou me prender? Aposto que foi o safado do João Notório. Ele me paga, aquele safado! – protestava Enrico, também sendo conduzido pelo outro braço.
— E quem é você? – indagou a moça, olhando para trás.
Bartira fazia um esforço tremendo entre continuar caminhando sem cair ao passar no meio de tanta gente e analisar o policial que os guiava.
— Não me lembro de nenhum anão aqui na cidade. – continuou ela, estreitando os olhos.
O "policial" que levava um enorme bigode negro no rosto, tinha os cabelos claros cacheados em um rosto bem redondo de olhos pequenos e castanhos. Ele pigarreou enquanto tomava a cesta das mãos da moça tão logo pararam à porta da cela que ele segurava aberta para que ela pudesse entrar. Bartira tinha a nítida sensação de que ele evitava encará-la.
— Eu-eu...Não sou daqui. Vim da cidade vizinha. – respondeu ele com uma voz esganiçada. Estaria doente?
Sutilmente o "policial" a empurrou, fechando a porta atrás de Enrico que a seguia. Havia apenas os dois na "cadeia" improvisada por galhos finos de árvore e pedaços de chita. Bartira observou o sujeito ainda ressabiada. Ele parecia evitar encará-la e logo se encarregou de chamar o irmão para devolver-lhe a cesta do correio elegante. Pelo menos aquele ponto parecia resolvido quando ela viu o sorriso voltar ao rosto do pequenino ao constatar que todos os seus cartõezinhos estavam ali. O garotinho apenas acenou para a irmã e se foi.
— Ei! Amigo! Quanto tempo ficaremos aqui? – chamou Enrico que permanecia parado ao lado da porta da cela.
— Não sei, não senhor. – limitou-se a responder o outro que parecia mais preocupado em procurar algo no meio da multidão. — Onde será que o outro foi parar? – indagava-se o "policial". — Ah....esse cheirinho de milho está me matando!
Os "prisioneiros" o ouviram balbuciar em uma voz mais fina, quase infantil que os fez olhar entre si em estranhamento, mas logo o "policial" pareceu aprumar-se e deu as costas aos dois.
— Só pode ser castigo ficar presa com você. Ou alguma piada de muito mau-gosto. – lamentou-se Bartira olhando de soslaio para seu companheiro.
— Sou obrigado a concordar com você. Preferia ser picado por mil abelhas do que ficar na sua companhia.
— Como se a sua fosse muito agradável! – disparou Bartira, empertigando-se para encarar o italianinho.
— Pelo menos eu não fico "roubando" as ruas de café dos outros! – replicou Enrico, eliminando a distância entre eles e encarando-a.
Ambas famílias costumavam trabalhar na mesma fazenda de café há alguns anos, sendo remunerados por "rua" colhida. De alguma forma, Bartira sempre era mais rápida e acabava "roubando" as ruas que deveriam ser dele o que lhe gerava um transtorno enorme com o pai. O velho Manzani sempre questionava a eficiência do filho caçula e o dinheiro mais curto no final do dia pela menor quantidade de ruas colhidas.
Assim, tão perto, Enrico pegou-se admirando os traços delicados de Bartira. Sua pele morena, cabelos escuros e fartos, os olhos castanhos que o encaravam desafiadoramente. Desde quando era tão bonita assim? Ela pareceu encolher-se um pouco frente ao seu comentário, mas em questão de segundos voltou a encará-lo com firmeza.
— Eu não roubo nada! Nós precisamos! – soltou, levando as mãos aos lábios, como se tivesse dito mais do que deveria.
— Por que vocês precisam tanto? – indagou o rapaz, analisando-a com atenção. Havia algo mais ali e ele iria descobrir. Aquela família era cheia de mistérios, sempre muito reservada.
— Um burro xucro como você não entenderia. – disse a moça em um tom ácido. Achava que insultando o companheiro, com raiva, ele desistiria de continuar aquela conversa. Aquela proximidade toda começava a incomodar Bartira de uma forma inesperada.
— Tente e veja se eu realmente sou tão burro como você diz. – desafiou Enrico analisando o efeito de suas palavras sobre a jovem. Bartira não era do tipo de fugia do assunto e já que estava tão interessado em continuar ouvindo aquela voz melodiosa... Melodiosa? Desde quando? O assombro o tomara.
Bartira olhou para o chão de palha, parecendo buscar as palavras certas. Ficou em silêncio por tanto tempo que Enrico chegou a pensar que ela o deixaria sem resposta e aquilo lhe provocou um certo desapontamento. Queria perder-se mais uma vez naqueles olhos castanhos de Bartira e num movimento até mesmo ousado devido a total falta de intimidade que tinham, passou os dedos por baixo de seu queixo e a fez encará-lo. Para sua surpresa, a jovem trazia os olhos marejados e tão tristes que o coração pareceu encolher-se no peito.
— O que há? – indagou com tanta doçura na voz que chegou mesmo a causar estranhamento a si próprio.
Bartira respirou fundo uma vez mais antes de começar a falar.
— Tenho uma irmã com problemas. Jaci. Ela nasceu assim. Não se mexe. Passa o dia todo em uma cama ou em uma cadeira de rodas que papai construiu para ela. Uma boca a mais para sustentar e braços a menos para trabalhar. Por isso sempre colho o mais rápido que posso. Para compensar. – explicou Bartira, sentindo o rosto umedecer-se. Irritava-se por se mostrar tão vulnerável na frente de Enrico.
Conviver com Jaci era algo natural para ela, porém, o dinheiro sempre faltando a cada final de mês e o pai, cada vez mais endividado com o dono da venda eram coisas que lhe preocupavam. Assim, começara a colher mais do que podia. O patrão não se importava, desde que a colheita fosse feita e a família Manzani era bem numerosa. Pensava que aquelas ruas que ela, deliberadamente "roubava" de Enrico não lhe fariam falta no final do mês. Pouco se importava em ganhar a antipatia deles mesmo já que aquilo significava viver com menos sufoco. Se não fosse este inesperado arrependimento...
— Não tinha intenção de te prejudicar, Enrico. Só que... – Agora, as lágrimas aumentavam em quantidade.
— Por favor...não chore, Bartira. Pode ficar com as minhas ruas. Eu...eu...não sabia. – Enrico tentava enxugar as lágrimas da moça com os polegares, sentindo o calor e maciez do contato daquela pele aveludada contra suas mãos grossas devido ao trabalho na lavoura.
Bartira, por sua vez, sentia-se acolhida pelo gesto do italianinho. Muito mais do que seria o apropriado, porém, havia algo em sua postura, na forma tão atenta como ele a olhava. Era-lhe impossível desprender-se de seus olhos claros como um céu de verão.
Enquanto isso, do lado de fora, o "policial" continuava a vasculhar a multidão de forma apreensiva. Ficava nas pontas dos pés, espichava a cabeça, mas sua pouca altura mais o atrapalhava do qualquer outra coisa. "Se pelo menos tivesse minhas asas", lamentou-se o garoto. Já não havia sido muito "ética" a forma como surrupiara a cesta de correio elegante do irmão de Bartira, aproveitando-se do minuto de distração do menino que se encantara com uma pipa colorida que voava pelo céu não muito alto. Após, sofrera aquele revés da ventania patrocinada por Santa Bárbara que fizera seus cartõezinhos voarem e agora...simplesmente não conseguia encontrá-los! Quando já estava dando tudo por perdido, tivera a brilhante ideia de se disfarçar de policial e prender os pombinhos. Ah...certamente aquela proximidade num lugar tão pequeno seria mais eficaz do que qualquer correio elegante! Tiutonio ficaria contente com aquele improviso!
— Enrico! O que está fazendo aí? Venha logo, rapaz! A Dora acabou de deixar a barraca do beijo e vai dançar quadrilha! Ela está sem par! É a sua chance!
Um rapaz que Bartira reconheceu como sendo o tal João Notório, primo de Enrico, abriu a cela e de lá arrancou o jovem que mal teve tempo de reagir. Ele era puxado para o meio da multidão, mas seus olhos não se desprendiam dela.
— Mas...onde está o rapaz? Cadê ele? – indagou o policial-anão, encaminhando-se para a prisão que Bartira agora deixava com um ar derrotado.
— Foi dançar quadrilha...com a Dora. – Bartira terminou a frase com um certo desdém. Dora não era exatamente uma pessoa bem quista pelas mulheres da cidade e isto se explicava por sua beleza singular e a fila de rapazes ávidos por conquistar sua atenção.
— Isso não pode ser! Não! Não! – Agora o garoto estava exasperado. Definitivamente, com as flechas era bem mais fácil...se enxergasse direito.
Ele rapidamente tomou a mão de Bartira e a arrastou até o local onde diversas pessoas já se aglomeravam para formar a fila da quadrilha. Seu cérebro trabalhava a mil na tentativa de encontrar uma forma de colocá-los juntos novamente.
De seu lugar na fila, Bartira podia ver Dora agarrada ao braço de Enrico uns bons casais à frente, fazendo-lhe caras e bocas, jogando os cabelos. Aquela imagem simplesmente estava lhe embrulhando o estômago!
— Oferecida! – resmungou baixinho, com o policial nanico ainda agarrado ao seu braço. Estava tentando decidir qual situação era mais constrangedora: aquele seu parceiro ou enfrentar a fila do "bolo de Santo Antonio".
— Criando confusão de novo, garoto?
Bartira desviou os olhos até então congelados sobre Enrico e Dora para o estranho que acabara de parar ao lado de seu par.
— Tiutonio...eu posso explicar. – começou o outro, mas sendo bruscamente silenciado pelo homem mais velho.
Bartira observou seu corpo magro e alto, os cabelos castanhos com uma calvície adiantada na parte de cima da cabeça e a batina rústica que mais parecia um manto. Tinha a sensação de que o conhecia, mas de onde? Se não fosse pelos óculos...
O homem olhou na direção de Enrico, voltou a olhar para Bartira e balançando a cabeça com um suspiro resignado, tomou a moça pela mão. O "anão" seguia logo atrás em uma ladainha que Bartira mal conseguia acompanhar ocupada como estava em se lembrar de onde conhecia seu condutor.
Pararam ao lado do casal e Enrico se assustou com a presença do homem ali, e ainda mais ao constatar quem ele estava trazendo pelo braço.
— Boa noite, meus caros. Considerando que serei o padre desta quadrilha, me reservei ao direito de fazer algumas pequenas modificações. Importa-se, minha jovem?
O homem lhe estendeu o braço em um gesto amigável que Dora, ainda que um tanto contrariada, não pode recusar. Ao mesmo tempo, o "padre" cedeu espaço e sutilmente empurrou Bartira na direção de Enrico. Com um sorriso e um gesto de cabeça, ele se afastou levando Dora consigo e o nanico que seguiu logo depois, agora, no mais completo silêncio.
Ambos ficaram sem saber o que fazer ou dizer até que Enrico esboçou um sorriso genuíno que lhe foi correspondido por Bartira. Aquela dança seria a melhor de que ambos já haviam participado.
Tiutonio entregou Dora a um outro jovem que sorriu de forma ampla quando viu a parceira. A moça, em princípio contrariada, acabou desfrutando da companhia daquele rapaz tímido o qual nunca havia reparado.
O "anão" mal havia se livrado daquele bigodão enorme que lhe fazia coçar o nariz quando, no meio da dança, ouviu-se um burburinho que foi aumentando, aumentando e crescendo assim como o frio na espinha. Sentiu o olhar pesado de Tiutonio em sua direção quando, do outro lado da praça, viu o que parecia ser uma mulher agitando um cartãozinho no ar, o cartão que o garoto procurava. Ela gritava a plenos pulmões:
— Seu safado! cafajeste! Como tem a coragem de me mandar uma mensagem dessas? Sou uma mulher casada!
— Eu? Do que a senhora está falando? – o outro respondia.
— Pois eu vou lhe ensinar a ter mais respeito, seu sem-vergonha!
A mulher avançou para o homem, desferindo-lhe diversas bolsadas. Ele, por sua vez, afastava-se cada vez mais. Mal viu, porém, quando acabou esbarrando em um menino que tinha uma vela na mão. A vela, por sua vez, caiu no meio dos "busca-pés" que em instantes, acenderam-se e saíram perseguindo as pessoas. Por onde passavam, os busca-pés deixavam um rastro incandescente, como se diversas estrelas cadentes estivessem cruzando a festa. A música parou, a quadrilha também, enquanto os convidados corriam para todos os lados buscando se proteger dos fogos de artifício.
Assim que notou o cheiro de pólvora no ar e o primeiro estampido, Enrico olhou para trás no exato momento em que o primeiro cilindro de papelão passou a poucos passos de onde ele dançava com Bartira. Sem pensar duas vezes, jogou-se sobre ela atirando-a sobre o gramado atrás do coreto. Permaneceu com seu corpo sobre o dela, os braços sobre a cabeça na tentativa de proteger a ambos durante os muitos minutos em que os fogos cruzaram a praça ensandecidos. Por um acaso do destino, não havia mais ninguém por ali que não os dois. Sentia o calor que vinha do corpo de Bartira abaixo do seu, inebriava-se com o cheiro de seus cabelos. A um dado momento, afastou o rosto para fitá-la. Seus olhos brilhavam como duas estrelas no céu e sem pensar mais, tomou os lábios da jovem em um beijo quente, apaixonado e cheio de sensações novas para ambos.
— Bendito seja quem roubou a cesta do seu irmão! – disse ele, recebendo um sorriso amplo de sua amada como resposta que o puxou para mais um beijo.
Os pombinhos sequer notaram a presença do padre e do garoto há pouca distância dali e que sorriam satisfeitos.
Quando o espetáculo pirotécnico terminou, ambos se encaminharam para a entrada da igreja.
— Tenho de confessar que não sou muito a favor deste intercâmbio de experiências que andam querendo fazer. Não é por nada, mas está explicado por que a humanidade deixou de acreditar nos seus deuses. – começou Tiutonio enquanto avançavam pela nave da igreja estranhamente deserta.
Passaram por um pote de açúcar em um dos bancos, onde havia uma imagem de Santo Antonio de cabeça para baixo. O homem franziu o cenho e o retirou de lá, limpando-a e posicionando a imagem da forma correta antes de continuar seu caminho até o altar. De fato, algumas mulheres não estavam muito satisfeitas como o companheiro havia dito.
— Você arrumou uma confusão danada, garoto! – O meninote estava prestes a se manifestar quando foi interrompido por um gesto: o homem retirara os óculos de seu rosto e agora encaixava no do menino. — Cupido, você deveria ter dito antes que não estava enxergando. Não teria perdido suas asas e suas flechas.
Cupido olhou ao redor, espantado com a nitidez de tudo.
— Bem...é hora de voltar ao meu lugar. – continuou o homem, olhando para o local vazio acima do altar. — E veja se não vai aprontar mais nada!
— Obrigada, Tio Antonio. – agradeceu Cupido com um sorriso, pronunciando cada palavra. E ante o olhar reprovador, corrigiu: — Santo Antônio
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